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Mítia: Caixote de Exu

Por Redação

em 21 de setembro de 2005

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Como lembra o Caetano Veloso numa canção luminosa, Santa Clara é a padroeira da televisão. É. Mas o padroeiro é o Diabo. E eu não estou querendo criar nenhuma frase de efeito. Nenhuma sacadinha antitelevisiva. Nem muito menos demonizar os meus colegas de auditório. Também não é minha vontade ficar batendo na tecla óbvia de que o tom catastrófico da programação, do Datena ao Galvão Bueno, transforma a TV numa janela para o inferno. Não é apenas a isso que me refiro. Não estou usando nenhuma linguagem figurada. Acho mesmo que, se a TV e toda a mídia têm um padroeiro, é ele. O Diabo.
Então deixa eu voltar às origens deste raciocínio. No começo dos anos 90, os pioneiros da internet compreenderam que a rede tinha o destino inevitável de tornar-se a mídia de todas as mídias. E elegeram para ela um deus, um regente. O escolhido foi Hermes, o Mensageiro, a divindade grega que tem asas nos pés e habita as encruzilhadas. Não poderia ser outro, afinal, tanto na trama externa de servidores e receptores quanto na linguagem binária intrínseca a todo aparelho informático, a internet é uma encruzilhada fractal e veloz. Assim é toda a mídia. Neste labirinto de encruzilhadas, Hermes viu atualizada a sua vocação para deus da informação.
A personalidade de Hermes na Grécia mítica lança uma luz esclarecedora sobre os modos da mídia atual. Os traços marcantes do caráter hermético já estão definidos nos instantes seguintes à sua vinda ao mundo. Recém-nascido, Hermes logo escalpela uma tartaruga e utiliza seu casco para amplificar o som das cordas musicais. Assim, ele inventa a lira. Muito mais que suas eventuais qualidades musicais, artísticas, o que é realmente revolucionário nessa invenção é sua capacidade de amplificação, seu poder de comunicação. Ao contrário da flauta de Pan – exclusivamente sonora e voltada ao desfrute artístico – a lira é usada para acompanhar e difundir o canto descritivo de Hermes. Com a lira, Hermes narra o mundo. A tecnologia flintstone usada para inventar a lira é a bisavó da mesma tecnologia que criou os instrumentos musicais, mas também a máquina de escrever, a câmera ou o computador. O instrumento mítico criado pelo Mensageiro é, sobretudo, um veículo de comunicação. Uma mídia.

Show é Poder
O segundo ato de Hermes é bem mais ousado que o ataque a uma tartaruga. Com fome de carne, ele decide roubar o gado de Apolo, o mais tradicionalmente poderoso dos filhos de Zeus. Para realizar seu crime, Hermes não usa os métodos tradicionais de ataque bélico ou furtivo. Ao contrário, o matreiro conta justamente com os poderes hipnóticos da lira. Com um pocket show misto de música e história, ele bota cães de guarda para dormir e coloca sentinelas gigantes num estado de torpor, afogando-os num mar de esquecimento. Depois, no confronto direto com Apolo, ele obtém seu respeito justamente pela impertinência e humor com que o ameaça. Em vez de aniquilar o bebê truqueiro com sua temível fúria, Apolo ri fascinado com os poderes encantatórios da lira. Hermes passa com louvor neste primeiro teste do ‘quanto vale o show’. No final, respeitado como criador e detentor de uma nova forma de poder, o Mensageiro acaba conquistando Apolo. E vai além. Com a lira sempre em punho, ele compõe uma ‘teogonia’, em que canta e narra a história de todos os deuses gregos.

de gutemberg a bill gates
Assim, Hermes acaba se tornando ele mesmo um deus, o último dos deuses do Olimpo, entronado graças a seus truques. Truque, em grego, é neste caso techné, raiz da palavra tecnologia. Na história de Hermes, uma nova tecnologia gera um novo poder. Você já viu esse filme. Assim como seu padroeiro grego, a mídia é um poder que historicamente nasce e renasce de uma nova tecnologia. Tem sido assim de Gutemberg a Bill Gates. O mito primal de Hermes é também profundamente revelador do modus operandi do poder midiático. Em vários aspectos.
Em primeiro lugar, lembra que a mídia gera hipnose e esquecimento, o que foi relembrado milênios mais tarde quando o genial Jean-Luc Godard disse que ‘a televisão produz o esquecimento a 30 quadros por segundo’. Em segundo lugar, mostra claramente que a fusão arte/mídia é geradora de um enorme poder político, o que fica ululante quando se observa as relações, ora fecundas, ora promíscuas, que se estabeleceram entre os artistas populares do nosso tempo e os meios de comunicação. Em terceiro lugar, o encontro mítico entre Hermes e Apolo também realça a relação ambivalente que a mídia mantém com o poder tradicional estabelecido operando. É justamente como uma narradora crítica do poder que a mídia torna-se um poder em si, numa relação que desde sempre alterna confronto e aliança. Isso fica óbvio
quando, na história recente, observa-se o relacionamento de admiração e temor mútuo entre celebridades e empresários ou entre os grandes veículos de comunicação e os governos. É tudo basicamente ‘Apolo e Hermes’. O lado de lá com suas armas, o lado de cá com suas artimanhas, seus truques.
Hermes é o grande truqueiro da mitologia grega. E toda mitologia tem seu truqueiro. A entidade é basicamente a mesma. Muda apenas o nome. Na mitologia romana, Hermes é Mercúrio. Na nórdica, Hermes se chama Loki. Na apache, Coiote. Na iorubá, Exu. Quando os escravos africanos trouxeram Exu dentro de suas cabeças para o Brasil e entraram em contato com o imaginário católico, ele foi imediatamente identificado com o Diabo. É uma associação obviamente equivocada. O mal ou o bem não existem em estado puro na cultura iorubá ou em qualquer uma das culturas pagãs. Nelas, o mal e o bem convivem como na alma humana, sempre miscigenados. Exu não é exclusivamente mau como o Diabo da mítica ocidental. Ele é apenas sacana. Mas há várias coincidências. Exu, como Hermes, é quem cuida das comunicações entre os deuses e os homens. É ele quem desce à Terra e sobe aos céus num leva-e-traz contínuo entre o meio humano e o meio divino. Nesse sentido, ele é como o anjo caído. E quem já leu Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, sabe que o Diabo, como Exu, mora na encruzilhada.

PEGADINHA DO DIABO
Se tanto a sabedoria quanto a ignorância popular tendem a identificar Exu e o Diabo como a mesma entidade, não é por falta de razões. Por um lado, Exu pode não ser tão mau quanto o Diabo das religiões monoteístas. Por outro, é o próprio Diabo que pode não ser tão mau quanto imaginam os monoteístas. Eu é que não sei. Em todo caso, um olhar mais atento às encruzilhadas eletrônicas da mídia vai encontrar o truqueiro mais vivo do que nunca, independente de qualquer lógica moral. Para o bem ou para o mal. Quando o Faustão faz uma pegadinha, lá está Exu. Quando uma revista semanal pega no pé de um político desonesto, lá está Exu. Quando João Kléber faz um teste de fidelidade, lá está Exu. Quando o Fantástico coloca uma câmera escondida para desmascarar algum esquema de corrupção, lá está Exu. Quando algum revolucionário tenta invadir uma estação de TV para derrubar o governo de seu país, lá está Exu. Quando um jornal revela as fitas de alguma conversa telefônica grampeada, lá está Exu. Quando uma Paquita coloca as pernas de fora para seduzir pré-adolescentes, lá está Exu. Quando o Zeca Camargo faz algum esfomeado comer um olho de bode, lá está Exu. Quando um vírus penetra no seu computador, lá está Exu. Quando o Ratinho faz qualquer coisa, lá está Exu. Lá está Exu, Loki, Coiote, Hermes ou o Diabo. Lá está o padroeiro da mídia.

PALAVRAS-CHAVE
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