por Henrique Goldman
Trip #114

Nosso colunista-viajante reencontra a bunda, a feijoada e o futebol, em plena Oxford Street

Londres, 8 horas da manhã. Estou indo para o serviço, no centro da cidade, e pego a condução, o busum 98, verme-lho, desses de dois andares. Sento no meu assento preferido no segundo andar, na frente do ônibus, em cima do motorista. Gosto muito de olhar para a vida assim, aqui do alto deste ônibus. Observo a humanidade nas calçadas com distanciamento, como se eu viesse não de um outro país, mas de outro sistema solar. As pessoas têm um jeito triste de andar aqui em Londres. Ninguém se olha na cara, ninguém fala alto, ninguém ri. Chove e é como se Deus estivesse mijando em suas cabeças humilhadas.

Reparo um estranho outdoor presente nos pontos de ônibus. É a fotomontagem de uma enorme bunda feminina, gostosa e redonda. Duas polpudas nádegas são na verdade duas laranjas suculentas mal cobertas por uma tanga verde-e-amarela. O slogan da publicidade da nova marca de suco de laranja é "Squeezed in Brazil", espremido no Brasil. Será uma mistura de suco de bunda com laranja?

Me lembro de um outro outdoor que vi na Itália. Era a publicidade de um tipo de calcinha que supostamente arrebitava a bunda. E, em letras garrafais, o slogan "L'effetto Brasile", o efeito Brasil. É incrível como os países ricos têm tesão pelo Brasil. É aquele tipo de tesão que mauricinho tem por "gutcha", tesão do patrão pela empregada.

Para os antigos romanos, o fígado era a sede da alma humana. Até a Revolução Francesa, no ocidente imperava a concepção católica segundo a qual o coração é o órgão essencial, onde a carne e o espírito se encontram. A reforma lute-rana, a queda da aristocracia-coração e os grandes avanços científicos foram sintomas da ascensão da burguesia-cérebro.

No Brasil, a bunda desbancou cérebro e coração e assumiu um status hegemônico. Muitas vezes nós usamos a bunda até para pensar. Na cosmovisão brasileira, a bunda é o fulcro sagrado da humanidade: numa bunda gostosa se unificam o divino-ideal-metafísico e a mais absoluta carnalidade.

A maioria dos escravos trazidos para o Brasil veio de Angola. Qualquer viajante brasileiro que tenha se aventurado pela África pode observar em Luanda o mesmo, idêntico estilo de bunda sassaricante e peralta que se encontra em Ipanema. Aquela bunda-jeans provocadora e linda. Bunda imaculada que não tem vergonha de ser bunda, bunda mágica de todos os sonhos, bunda rainha safada. Não sou historiador nem antropólogo, mas as nossas origens históricas talvez possam explicar esse culto da bunda.

Deus-bunda

Anglo-saxão não reverencia o deus-bunda; dá mais ênfase ao deus-peito. Italiano também curte bunda, mas segue um estilo diferente do nosso, estilo clássico-piemontês, que consiste numa bunda mais rebaixada, tala larga, menos profunda e empinada, forma pêra-bandolim.

Desço do ônibus 98 em plena Oxford Street. Dou de cara com um rapaz soturno e maltrapilho. Sem o menor entusiasmo, ele segura uma placa de papelão com o seguinte anúncio em português: "Promoção Feijoada - pão de queijo, feijoada completa, copo de guaraná e cafezinho por 5,5 pounds (23 reais). Jogos do campeonato de futebol brasileiro via satélite. Servimos também porções de coração de frango e lingüiça calabresa importada do Brasil".

O rapaz que segura a placa é de Minas Gerais. É incrível como tem mineiro espalhado pelo mundo. Aqui em Londres eles controlam o tráfico da feijoada na Oxford Street e redondezas. Não é piada, dizem que os agentes da imigração britânica são instruídos a ficar especialmente de olho nos mineiros, principalmente nos de Governador Valadares, por causa de seus imigrantes.

Na hora do almoço vou à tal promoção. O pão de queijo é ruim, a feijoada é chutada e sem couve. O guaraná, de uma marca esquisita que nunca vi no Brasil. Mas tinha uma moçada bacana. Gente humilde que vem para Londres estudar inglês, trabalhar em restaurantes, fazer faxina. Gente com saudades de casa.

Na TV, passava a reprise do jogo do Santos contra o Guarani. Tinha até esquecido que era santista. Eu, que há vinte anos não via meu time jogar, me vi aos berros quando o reserva Douglas e o atacante Elano marcaram os gols da vitória. E, de repente, aqui nesta galáxia distante, me sinto em casa.

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