”Ainda que a perda de direitos trabalhistas e civis não afete a sua vida, é tempo de entender que nascer em berço privilegiado gera oportunidade, e oportunidade gera responsabilidade”
“Que tipo de cegueira, de surdez, de ideologia poderia me impedir de estar interessado no que é provavelmente o mais crucial assunto de nossa existência”, respondeu o filósofo francês Michel Foucault quando perguntaram por que ele tinha tanto interesse em política. E seguiu “[Como não me interessar] por um assunto que trata da sociedade em que vivemos, das relações econômicas dentro das quais ela funciona e do sistema de poder que define as formas, permissões e proibições de nossas condutas?”
Tudo a nossa volta é política: da roupa que escolhemos vestir antes de sair de casa, aos cosméticos que escolhemos usar, ou não usar, aos alimentos que decidimos ingerir, ou não ingerir, aos relacionamentos que topamos ter, ou não ter, ao voto que depositamos, ou não depositamos, nas urnas. Tudo, absolutamente tudo, é política.
Política é a forma como enxergamos o mundo, as relações e o futuro que queremos ajudar a construir, seja o nosso, o da família, o de uma comunidade ou do planeta. Desgostar de política não é, portanto, uma opção. E, se existe um consenso nessa fase tão tumultuada de nossas existências, ele é o de que as coisas não andam assim tão boas.
Desigualdade histórica, guerras, fome, genocídios, risco de bombas nucleares serem detonadas, deslocamento em massa de seres humanos que tiveram suas cidades e países devastados, crescente militarização da polícia, vigilância imposta pelo Estado e por corporações e, a mãe de todas as ameaças: o aquecimento global e o fim da possibilidade de vida decente na Terra.
Seremos, se isso acontecer, a primeira espécie a extinguir a si mesma, um feito que, infelizmente, não deixará registros. Somos, ironicamente, nosso próprio meteoro.
Então, se hoje você decidiu apoiar a greve geral que tenha sido por um motivo maior do que “Fora Temer” ou “Volta Dilma”. Porque a bem da verdade a crise é muito mais profunda do que sugerem os meios de comunicação, e a perda de todos os nossos direitos trabalhistas é uma pequena, ainda que muito importante, parte dela.
O capitalismo, como praticado hoje, é um sistema que tortura não apenas o planeta mas também as pessoas que vivem nele.
Somos torturados ao sermos privados de exercer nossas capacidades criativas executando trabalhos sem sentido, torturados ao sermos destituídos de nosso direito ao lazer, ao ócio, à contemplação, torturados ao sermos doutrinados a acreditar que o trabalho é o dever maior e única fonte de moral, ao sermos encorajados a contrair dívidas porque, dizem, é importante adquirir coisas pelas quais levaremos anos pagando já que, dessa forma, não teremos escolha a não ser aceitar a escravidão de exercer trabalhos mecânicos, que pagam mal e não têm significado, e somos torturados outra vez ao sermos obrigados a nos submeter a elementos de repressão, coerção, opressão e destruição.
Vivemos sob os olhos vigilantes de um Estado que espiona, sob os porretes de uma polícia equipada para ir à guerra e treinada para proteger o poder público e privado de qualquer tentativa de manifestarmos nossa crescente frustração, sob a cada vez maior hegemonia corporativa que nos transforma em instrumentos de consumo e nos suga a humanidade.
“O ser humano não foi feito para trabalhar 50, 60, 70 horas por semana. Nem sei se foi feito para trabalhar para outros seres humanos”
Milly Lacombe
O ser humano não foi feito para trabalhar 50, 60, 70 horas por semana, e eu nem sei se, na verdade, o ser humano foi feito para trabalhar para outros seres humanos. Mas, ao sermos condicionados a viver assim nos entregamos aos mais variados escapismos, topamos usar todo o tipo de droga, aceitamos felizes os convites para que nos alienemos, assistimos às mais variadas porcarias na TV para não ter que pensar, porque pensar é dolorido, e sentir passa a ser ainda mais dolorido. Não suportamos mais sentir. Extraídos de nossa humanidade, absortos de nós mesmos, passamos a ser meios, e não mais um fim, não mais humanos.
Olhe as pessoas a sua volta no fim do dia no metrô. Observe como se movem cabisbaixas, como não falam, não sorriem, não vivem. Fazem o caminho de volta para casa sabendo que em algumas horas estarão naqueles trilhos outra vez, e que tudo vai se repetir como ontem.
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Talvez não seja exatamente assim para você, mas olhe bem para essa senhora sentada ao seu lado, essa que carrega duas sacolas cheias e pesadas, usa um sapato com um saltinho quase imperceptível, uma saia na altura da canela, tem a pele morena, o cabelo oleoso preso em um rabo-de-cavalo, o olhar voltado para o chão. Repare como ela parece exausta, como de seus olhos não sai muita vida. No que estará pensando? Pelo que estará sofrendo? É justo que tiremos dela os poucos direitos que conquistou? Justo que ela tenha que trabalhar ainda mais horas, talvez ter ainda mais empregos, correr alucinadamente de um para o outro sem ter com quem deixar os filhos, apenas para pagar as contas e nada além disso?
“É tempo de entender que nascer em berço privilegiado gera oportunidade, e oportunidade gera responsabilidade, e responsabilidade”
Milly Lacombe
Ainda que a perda de direitos trabalhistas e civis aparentemente não afete a sua vida, é tempo de entender que nascer em berço privilegiado gera oportunidade, e oportunidade gera responsabilidade. Como sugeriu o linguista e ativista Noam Chomsky, significa desafiar sistemas de doutrina que nos são impostos, sistemas criados para dominar as massas. Agora é a hora em que os privilegiados não podem se calar.
Ou, nas palavras do filósofo político John Raws: “A distribuição natural de justiça (riqueza e poder) não é justa ou injusta; como não é injusto que uma pessoa tenha nascido dentro de uma certa posição social. Esses são apenas fatos naturais. O que é justo ou injusto é a forma como as instituições lidam com esses fatos”
Que arranquem a fórceps direitos trabalhistas que conquistamos com suor já é suficientemente cruel, mas que deixemos de aproveitar a ocasião para refletir mais profundamente a respeito das atuais relações de produção alcança níveis ainda mais profundos de crueldade.
É hora de entender que não basta que nos devolvam o que nos está sendo tirado, hora de entender que não estamos aqui para trabalhar 60 horas por semana a fim de acumular riqueza nas mãos de uns poucos, enquanto esses poucos vivem dos juros que os bancos ganham com as dívidas que pagamos pela casa na qual mal ficamos porque é preciso voltar para o trabalho.
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“A maioria dos homens e das mulheres hoje em dia vive vidas infrutíferas em benefício de uma pequena elite”, escreveu o professor britânico Terry Eagleton. Para ele, trata-se de uma época em que o estado político está preparado para usar de violência a fim de manter as coisas como estão, e que muitos dos pensamentos, e dos mitos e da cultura dessa época oferecem algum tipo de legitimidade a essa situação.
Lutar para que nossos direitos sejam mantidos é apenas a primeira das lutas. Outras precisam vir, ou para sempre ficaremos lutando a mesma luta porque direitos podem ser dados e retirados, como estamos vendo.
“É preciso que conquistemos igualdade, e igualdade é muito diferente de uniformidade”
Milly Lacombe
É preciso que conquistemos igualdade, e igualdade é muito diferente de uniformidade. Somos diferentes, e essa é nossa beleza. Igualdade tampouco é ganhar todos a mesma coisa, ou ter o mesmo tipo de carro ou de moradia ou vestirmos o mesmo macacão acinzentado. Igualdade é ter oportunidades iguais para que desenvolvamos nosso potencial, seja ele qual for.
Porque todos nós, absolutamente todos nós, temos um potencial e fomos fabricados com capacidade criativa, que é o que nos difere dos demais animais. É, portanto, apenas humano que sejamos livres para exercer nossas capacidades criativas.
Entender que estamos todos ligados, que o sofrimento alheio é também o nosso, que a perda de direitos do trabalhador afetará negativamente o patrão a despeito do maior lucro que ele venha a ter, é o primeiro passo para a verdadeira transformação. Porque enquanto nos percebermos separados aceitaremos nos entregar à escravidão, ao controle, à vigilância, à competição.
A partir daí, aí sim, poderemos lutar a derradeira das lutas: a que nos levará a ser, finalmente, livres, sabendo que ser livre não é fazer o que bem entendermos quando bem entendermos, mas educar nosso pensamento em nome de um mundo justo e humanitário. Essa é, como sugeriu o escritor David Foster Wallace, a Liberdade com L maiúsculo – a Liberdade de ver o outro:
“Sobre a liberdade mais preciosa, vocês pouco ouvirão no grande mundo adulto movido a sucesso e exibicionismo. A liberdade verdadeira envolve atenção, consciência, disciplina, esforço e capacidade de efetivamente se importar com os outros – no cotidiano, de forma trivial, talvez medíocre, e certamente pouco excitante. Essa é a liberdade real. A alternativa é a torturante sensação de ter tido e perdido alguma coisa infinita”
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Imagem principal: Carolina Ito