Marmelada profissa

Trip vai a Orlando para a final do WrestleMania, bem-vindo ao mundo do esportentrenimento

Trip vai a Orlando para a final do WrestleMania, onde marmanjos em cadeiras de rodas com uma quedinha por frango frito se amontoam para ver musculosos bronzeados se passarem por lutadores: bem-vindo ao mundo do "esportentrenimento"

 

por bruno torturra, de orlando

Joshua Hill não passa as férias com a família, não senhor. E todo ano é a mesma briga em casa, na remota Deerfield, Tennessee. A mulher, Courtney, arranca os cabelos. Os gêmeos Lendell e Jeremiah estouram a garganta de tanto chorar. Inveja pura, Joshua garante. Todos queriam estar na sua pele naquele fim de março, na fila do Citrus Bowl, na cidade de Orlando, prontos para uma noite épica que só toma lugar no tempo uma vez a cada 12 meses. O WrestleeeeeeeeeeMania. Leia-se: a mais importante noite da luta livre televisiva mundial.

Poderíamos dizer que Joshua, um veterano da Guerra do Golfo, veio torcer para John Cena, o anabolizado lutador depilado com pinta de mariner que nunca sorri. Ou que ele, sendo um confesso fã de terror extremo, prefere ver a vitória de Undertaker, o atual campeão que "veio do mundo dos mortos". Talvez, nostálgico do tempo em que era um jovem dentro de seu peso ideal, tenha vindo para ver a despedida do "lendário Ric Flair". Ou veio só comer frango frito com amigos, ou desfrutar prazeres masculinos na Flórida, ou simplesmente fugir um pouco da sua ruidosa e ingrata família. Mas o fato é que esse pai de um lar não existe na. vida real. Joshua Hill é só um nome num tolo roteirinho que veio a calhar para esta reportagem. Afinal, você, leitor, não há de se importar. Ora, bolas, isso é mais que jornalismo. Isso é ENTRETENIMENTO.

Entretidos, deveras, estavam os bastante reais 70 mil Joshuas Hills de ambos os sexos e de todas as idades que se picaram para Orlando. Quatro dias de eventos antes da grande final do domingo. Todos unidos em gritos e uivos e com algo mais em comum. Um amor de fã por esse. esporte? Por essa novela? Por esse negócio? Por essa farsa? Ninguém sabe ao certo explicar o produto oferecido pela WWE, a empresa dona do esquema todo. Quem melhor define é Carl, o responsável pela expansão do negócio na América Latina: "É esporte-entretenimento. Roteirizado, claro. Mas tão real quanto, digamos, futebol.". Então tá, Carl.

 

Gigantes do ringue

No Brasil muita gente conhece o wrestling americano na pele de "lutadores" mais antigos como Hulk Hogan. Ou na memória dos pegas da Rede Record nos anos 80 com Michel Serdan, Coringa do Sete, gente assim. Uma referência ingênua, inofensiva até, mas que cai por terra quando entramos no olho do furacão do WWE, e as cifras e toda a simbologia começam a vir à tona. Uma empresa de mais de US$ 1 bilhão de faturamento anual, mais de 150 performers/lutadores, 20 roteiristas de lutas/personagens e hordas de marqueteiros/produtores pelo mundo. Uma marca global que promove mais de 300 eventos ao vivo por ano e lança todo tipo de merchandising.

O primeiro evento do WrestleMania foi uma noite na filial do House of Blues, um simulacro caríssimo de um barraco do Mississippi. Centenas de fãs, contavam-se nos dedos as moças na casa, pagaram para assistir a um desafio de implicações filosóficas e semânticas. Lutadores de wrestling no palco travando brigas em videogame, devidamente narradas e comentadas ao vivo. Essa combinação de lutadores fajutos quebrando o pau virtualmente tinha algo de real. O resultado da peleja não parecia armado.

O local do WrestleMania muda, em geral. Ano passado foi em Detroit, Michigan. Mas não dá para imaginar lugar melhor do que Orlando, a cidade-enterteinment. Nem lugar mais perfeito para a manhã de autógrafos do que um canto do Universal Studios, mais exatamente na Nova York de madeirite. Homens, em geral maiores de 30 anos e acima do peso, tatuam nos braços (tattoo temporária, claro) logos e nomes de lutadores. Depois fazem fila para as assinaturas de autoproclamadas lendas do esporte.

Com palavras hiperbólicas, rufam tambores para uma noite de gala, o Hall of Fame do wrestling. Milhares de pessoas não chegam a lotar a quadra do Orlando Magic. Mas o gargarejo está cheio, e os telões cintilam a glória desses gladiadores sem cicatrizes.

O host que primeiro sobe ao palco é The Rock, hoje Dwayne Johnson, ator que fez seu nome nos ringues da luta livre. "É hora de honrar os homens que trilharam o caminho primeiro. Os homens que abriram a estrada para nós, super stars!" Pelas próximas três horas, toda uma Orlando de pompa entra e sai do palco criando suspense para o "maior de todos", Ric Flair. Clipes, fotos e spots em áudio anunciam sua chegada. Quando entra um senhor de cabelo amarelo e bronzeado de peroba, cinco minutos de palmas seguem. E, cronometradas, duas horas de monólogo de agradecimentos.

 

Cadeiras de rodas

Nunca subestime o ser humano. Por todo o estádio Citrus Bowl, 70 mil almas, sold out, pipocam cadeiras de rodas. A princípio só parece curioso que tantos deficientes se interessem por um esportentrenimento. Mas a coisa fica realmente curiosa quando tantos deles se erguem vez ou outra para urinar, caminhar até uma barraquinha de camisetas ou comprar um frango frito. A maioria é obesa, mas nem todos. Em comum, a disposição de viajar pelos Estados e a preguiça de usar as pernocas que Deus proveu. E, claro, o amor aos homens de músculos tão hipertrofiados quanto as panças nas arquibancadas.

A princípio o lugar da imprensa era em um camarote/cela, onde só se podia enxergar a luta pelos telões e escutar os golpes pela sonoplastia. Alguma insistência e algum caô me colocaram na boca do ringue, best seat in town, ao lado de. Macaulay Culkin.

Macaulay, o que faz aqui?

"Sou fã de wrestling, desde pequeno."

OK, aceito. E Snoop Dogg vem ao palco anunciar uma luta. Tudo fica claro quando os primeiros super stars desferem seus golpes depois de uma apoteose de fogos de artifício e hard rock: a luta é o anticlímax. Os golpes não passam nem perto dos oponentes, suas caras de dor não convenceriam nem um diretor do Zorra total. A trilha sonora some e o próprio público pára de gritar assim que a luta começa.

A luta final, a sétima delas, foi um desafio triplo, em que depois de falsos nocautes e falsas reviravoltas vence o falso morto-vivo. Undertaker confirmou seu cinturão. De volta ao ônibus da mídia latina, avisto Joshua. Ele está com viseira, camiseta e uma sacola cheia de merchandising do WrestleMania 24.

"E aí, Josh?!", pergunto pela janela.

"Agora só ano que vem.", suspira sem um sorriso.

"E ano que vem, traz a família?"

"Ora, esse povo preguiçoso já tem mais do que merece", e chacoalha seus relógios dourados de plástico, fazendo um alto e inexplicável barulho de cascavel.

 

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