por Arthur Veríssimo
Trip #225

Caio Tattoo realizou o sonho de viver de tatuagem numa época em que sua arte era coisa de marginal

Caio Tattoo realizou o sonho de viver de tatuagem numa época em que sua arte era coisa de marginal. Rabiscou Monique Evans, Rita Lee e, agora, Arthur Veríssimo também, que foi até o Rio conhecer o cara e relembrar sua infância, passada bem em frente ao estúdio de Caio

Revisito minha infância caminhando pela rua Francisco Otaviano, artéria vital entre o Arpoador e Copacabana, zona sul do Rio de Janeiro. Tudo ali continua nostálgico: o forte de Copacabana, o visual, as pedras, as árvores, o mar e o edifício onde nasci – da maternidade, fui direto com meus pais para o número 60 dessa rua. O visual do imóvel é o mesmo, com suas características antigas e o gramado impecável. Identifico a janela no quarto andar, onde me esgueirava quando pequeno. Como é prazeroso nostalgizar e voltar aos lugares onde a vida foi desfrutada com muita intensidade.

Uma onda de contentamento invade meu espírito. Sinto-me revitalizado, resgatando as raízes e a vida nesse cantinho de Copacabana. Minhas memórias se aquietam. Tenho um compromisso em frente ao edifício. O local é a mitológica e pioneira Galeria River, meca das primeiras lojas de surf, skate e esportes de ação no Rio e no Brasil. Ela já existia no comecinho dos anos 70, quando gente como Caetano Veloso, Gal Costa, Elis Regina e Jorge Ben Jor frequentava a primeira loja alternativa de lá, a AnikiBobó, famosa pelas calças coloridas boca de sino e pelos cintões. Ao lado dela, estavam um açougue, uma lavanderia, uma casa lotérica e outros estabelecimentos do gênero. Na virada dos 70 para os 80, com o fortalecimento da cena do surf na cidade, as lojas do ramo começaram a dominar a galeria. Hoje, ela é quase um minishopping com diversas lojas de identidade semelhante, focadas no público jovem.

Sua localização é nevrálgica, dando continuidade ao calçadão que liga o Leme ao Leblon. Seres humanos de todas as quebradas do Rio e do planeta passam por ali. O zum-zum-zum é intergaláctico. A fauna das criaturas é um caldeirão de etnias. Procuro na galeria um dos estúdios de tatuagem mais antigos do Brasil, há 35 anos instalado na Galeria River: é o legendário Caio Tattoo. Na frente da fachada da loja, um enorme painel brinda os clientes e curiosos com fotografias de Caio ao lado dos mais notórios tatuadores do mundo. Vejo, por exemplo, uma foto de Caio colado com o mestre dos mestres, Horiyoshi, ainda na puberdade. A antessala da loja está lotada de clientes. O clima é de contentamento, curiosidade, desejo. Todos querem ser tatuados. Num canto, observo nosso anfitrião explicar com detalhes os cuidados higiênicos que o recém-tatuado tem que ter com sua pele.

Caio se aproxima e iniciamos nossa conversatina. Seu corpo ostenta trabalhos de Filip Leu, Tin Tin, Maurício Teodoro e outros monstros. Ele olha minha pele e cirurgicamente identifica trabalhos de Maurício, Marco Leone e exclama: “Caramba, você tem um Horiyoshi!”. Mostro para ele minha primeira tattoo, realizada pelo ancestral Fred. Caio levanta a manga e revela um desenho do mesmo Fred, feito no início dos 80. Estou em casa. O fluxo da loja não para. Gente entrando, marcando hora e sendo tatuada. Os negócios, ao que parece, seguem de vento em popa.

Sou conduzido por Caio a uma pequena loja, que mais parece os clássicos vestíbulos do Red Light District de Amsterdã. Só falta sair uma beldade fazendo striptease. O local é o casulo onde Caio trabalha e guarda uma infinidade de álbuns de fotografias. Nossa conversa é permeada por lembranças dos primórdios da tatuagem artística no Brasil. À medida que vou viajando no maravilhoso arquivo, Caio vai contando histórias e causos. 
Vejo imagens de Lucky Tattoo, de Santos, provavelmente o primeiro cara a levar a tatuagem a sério no Brasil, e de vários outros pioneiros do Rio e de São Paulo. Encontro registros da Tattoo You, de Marco Leone, no bairro paulistano da Vila Madalena, por onde passaram tatuadores como Chichio, Fred Gregersen (filho de Lucky), Luiz Segatto, Hercoly, Genziana e tantos outros. Há ainda uma belíssima Monique Evans e o casal Rita Lee e Roberto de Carvalho sendo tatuados por Caio.

Ele afirma que essas e outras personalidades foram responsáveis por tirar a tatuagem da marginalidade. Além da familiaridade e camaradagem espontânea em nossa entrevista, percebo que ele parece com alguém. Sim, Salabim! Ele é a cara e o cavanhaque do movie star Al Pacino!

Caio nasceu em 1951, em São Paulo, mas mudou com 10 anos para o Rio. Ele não se faz de rogado e conta com profunda emoção o início de sua saga: “Os pioneiros no Rio foram eu, o Thyes e o Boris. A tatuagem começou na minha vida em 75, mas o despertar foi em 73, quando percebi algumas pessoas tatuadas na praia. Um sujeito chamado Sabiá apareceu com um trabalho colorido e disse que havia feito com o Lucky, em Santos. Fiquei determinado. Minha cabeça não parava de borbulhar de vontade e me despachei para lá”.

Fast-food

A viagem mostrou-se uma epopeia. Tatuagem naquela época só existia no cais do porto, era coisa da marginália e de marinheiros. Hoje em dia, virou um modismo efervescente. “Tem mais loja de tatuagem do que farmácia”, diz Caio, para em seguida voltar ao túnel do tempo: “O surfista e ‘menino do rio’ José Artur Machado, o Petit, foi um dos garotos de boa aparência que deflagraram a tatuagem, com seu dragão tatuado no braço por Lucky Tattoo, imortalizado por Caetano Veloso. Depois, alguns surfistas surgiam com tatuagens de panteras, cogumelos, flores e outros símbolos da contracultura. Eu precisava de uma máquina. Arrumei um barbeador e adaptei, tipo MacGyver. Dois anos depois, um amigo foi para Nova York e trouxe minha primeira maquineta”.

No começo o grosso da clien­tela eram os marinheiros, tanto os brasileiros quanto 
os estrangeiros. Hoje, dá de tudo em sua loja. “Banalizou. Todos os acessórios estão disponíveis na internet. A loja de tatuagem mais parece rede de fast-food”, solta. Sinto a nostalgia pegando fundo na alma do mestre Caio, tal qual acontecera comigo ao reviver minha juventude carioca. Ele reafirma que no passado existia a magia da peregrinação, de ir até o estúdio distante do tatuador: “Os tempos são outros. No século passado, existiam respeito e hierarquia entre os antigos tatuadores, assim como os códigios de ética dos samurais. Hoje em dia, tatuador virou artista, designer, estilista, joalheiro... esqueceram o ofício. Muitos se acham Leonardo da Vinci, Vik Muniz”.

Caio é um ícone da contracultura tupiniquim. Convive como um camaleão com a galera de todas as gerações do surf, de esportes de ação, música, artes marciais e capoeira. Durante muitos anos, foi parceiro do mestre de capoeira Camisa e é sensei nessa arte. Suas duas profissões foram tratadas com preconceito durante muito tempo. Agora, são o suprassumo do estilo de vida e sonho de muita gente.

Para registrar nosso encontro, pedi para ser tatuado. Escolhi um pequeno símbolo que diz respeito ao meu pai.

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