por Luiz Alberto Mendes

MAR

O sol estava em chamas no céu. O carro rolava na rodovia, solto, qual tivesse vida própria. Meu coração estava aos pulos. Corria o ano de 1995, estava preso há vinte e dois anos. Estava autorizado a passar as festas de fim de ano com minha família. Como já não tinha família, um amigo estava me levando para a praia.

A tensão da áspera espera da saída se diluía lentamente, ao longo da estrada. Partíramos na madrugada e já estava virando manhã. Meu amigo, ao volante, me observava. Parecia querer absorver, viver minhas emoções. Parecia decepcionado. Eu estava fechado, sem manifestar nenhuma daquelas alegrias que era de se esperar.

Como era praia mesmo? O tambor das lembranças disparava flashes surrealistas. A sensação era de estar caindo, sem conseguir ver o chão. A imaginação embaralhava recordações e fantasias. Meus quarenta e dois anos saturados de pesadelos. Sorri, pensando no amigo. Olhei, era um bom amigo, tentei colaborar.

Aproximávamos. No vento, mar, maresia. Despi-me do mutismo lentamente. Tudo que me cercava, contagiava. Minha vida se dilatava, somando, armazenando, incessantemente. O carro voava e meu peito se inflava ao vento. Devagar fui me embriagando de intensidade. Minha garganta ferida de gritos rouquejava. As palavras fugiam, longamente.

Chegamos na casa. Construída em madeira escura, de muitos quartos e divisórias envernizadas. As filhas do amigo, com seus respectivos namorados, nos aguardavam. Estavam prontos para a praia. Vesti shorts e sunga. Meu corpo branco não me envergonhava. Estava muito bem condicionado.

Barra do Sahi, São Sebastião, São Paulo. Areia branca e tão fininha que escorregava entre os dedos; dava vontade experimentar para saber o gosto.

Ajudei a montar guarda sois e estender esteiras. Parei quando as mulheres tiraram as saídas de praia. Estremeci. Ambas esculturais. Bundas redondas e lizinhas. Se encostasse o rosto acho, sentiria o frescor, o geladinho da noite. Os sexos estufavam; dava para quase sentir o corte fatal. Seios saltavam fortes e revoltos, querendo escapar daquela prisão de tiras coloridas. Minha alma estalou-se nos olhos e o sangue foi seqüestrado pela virilha. Infelizmente, já estava de sunga. Cruzei as pernas, tentando inutilmente desaparecer com o refém.

Estavam na maior naturalidade, andando à minha volta. Aquelas nádegas rosadas e sexos intumescidos estavam sempre a palmo de minha boca. Quase podia sentir o cheiro e já salivava o sabor. Ninguém percebia meu desespero. A gravidade da situação ameaçava me engolir. Nem sei por que, o desejo era de explodir em lágrimas.

O sol, anônimo, exagerava seu brilho mole. Eu suava com a alma entre os dentes e o sexo esticado até a barriga. A vergonha me fazia ver todos olhos em mim. Saquei uma toalha do lado, nem sei de quem, em defesa pessoal. Precisei de toda coragem do mundo para levantar e sair correndo como se mil diabos me perseguissem. A consciência estava toda no sexo fugindo para fora da sunga. Com as mãos procurei mastros e velas que pesavam em meus ombros. Nada. Só areia e água pela frente.

A água salgada me invadiu pela boca, nariz e ouvidos. Duras, as ondas quebraram minha boca em golpes de água e sal. Afoguei, retorci. Voltei à praia tossindo e cuspindo água. No ouvido ecoava som de mil caracóis.

Quando sentei na areia, estava perfeito. Olhei o pessoal ao longe. Lembrei implacáveis noites de insônia, grades e muralhas. Abri os braços e os pulmões, como quem abre janelas e portas. Levantei e corri. Folha leve, ao vento voava. A mais brilhante pincelada de luz me dirigia.

A dor, inteira como pedra, sólida como uma mão fechada, de décadas, da vida toda, se desmanchava como a areia sob meus pés. Pequenos, delicados segundos, entre a dor e a felicidade; entre eu e o nada. Meu peito ameaçava explodir flores e sangue pelo universo todo. Estava pleno, era tudo e nada me faltava. Ultrapassava o limite, era o limiar.

Cai esgotado de vida e êxtase. Fora precipitado como estrelas perdidas, minha vida, pela primeira vez, parecia estar em minhas mãos. Não sabia o que fazer com ela. Estava sendo engolido pela boca azul do céu. Entre a alegria e a gravidade da tristeza; entre o sofrimento e a paz das ondinhas brilhando na areia; entre a lágrima e o sorriso grande de amor; entre a angústia e a vida iluminada que me cercava. Entre a poesia e o fim, havia o mar e seus segredos de sal.

Luiz Mendes

Composto em 04/l0/2002, quando ainda preso, e revisado hoje;

07/08/2009. Fazia 22 anos que não via o mar. Todo o texto é da

imaginação de uma pessoa enlouquecida de saudades do mar.

 


 

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