Manoel Soares: por cima do medo, coragem

por Milly Lacombe

A trajetória de Manoel é uma improbabilidade. Jornalista e apresentador do programa da Globo ”É de Casa”, o filho de dona Ivanete Pereira falava com as estrelas enquanto sonhava em brilhar como elas

Manoel Soares é uma usina de emoções. Um homem de dois metros de altura e olhos que contam histórias. A impressão que se tem, depois de conhecê-lo, é que ele conta apenas o que acha que suportamos escutar – evitando revelar todo o universo de conhecimento e de experiências que existe nele. Um dia, aos poucos, vai fazer isso. Não tem mesmo porque ter pressa: sua trajetória pública e de sucesso está apenas começando. 

Apresentador de TV à frente do É de Casa, que ocupa as manhãs de sábado na Globo, ele percorreu uma longa jornada desde que nasceu, em 18 de junho de 1980. Viu o pai ser assassinado, perdeu grandes amigos, viveu em situação de rua. Mesmo assim, diante de uma realidade que para quem é branco e rico é uma distante obra de ficção, Manoel foi feliz: brincou na rua, aprendeu a fazer pudim, bolo, rimas. Memórias de dor foram superadas por memórias de comunhão: com a mãe, com irmãos, com a mulher e com os seis filhos.

Segundo dona Ivanete, sua mãe, o talento de Manoel para as artes se manifestou muito cedo a tal ponto que ele, ainda pequeno, disse a ela: “Mãe, um dia vou trabalhar na TV”. Ela foi a única que acreditou nele e, mesmo diante do improvável, repetia: “Meu filho, por cima do medo, coragem”. Dona Ivanete e Manoel são amigos e companheiros que sobreviveram ao impensável e hoje estão na liderança de um outro projeto de Brasil: um país inclusivo, inteligente, decente e corajoso. 

Solta a voz, Manoel.

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Trip. Vamos começar com a sua infância. Onde você passou a infância?

Manoel Soares. Eu sou natural de uma favela baiana chamada Baixa Fria, que fica dentro de um outro complexo de favelas chamado Boca do Rio, na cidade de Salvador. A rua que eu morava era uma rua chamada João Nunes da Mata, e ela tem um aspecto de quilombo: aquelas ruas que só tem uma entrada e é abaulada por dentro, então você não tem outra saída. Eu não morava nessa rua por acaso. Morava ali por conta da função que meu pai exercia naquele contexto, e ele precisava morar em um lugar que tivesse só uma entrada e só uma saída, e essa era a rua João Nunes da Mata. Eu visitei a rua agora, depois de grande, e vi que ele não era tão grande quanto na minha imaginação; na minha imaginação ela era enorme, gigantesca, parecia a Avenida Rio Branco ou a Avenida São João, de São Paulo. 

Por que ele precisava morar numa rua que só tivesse uma entrada e uma saída? Por conta das emboscadas. A gente morava nessa espécie de forte porque meu pai precisava de um lugar que ele tivesse controle de entrada e saída, já que ele era um dos líderes da criminalidade naquele contexto. Então, esse formato é uma herança das estrutura de quilombo e na nossa comunidade amplamente negra, como é a Bahia, toda a liderança popular e clandestina acaba assumindo um pouco dessa geografia. 

E você morou lá até quantos anos? Morei até 1988, quando tinha oito anos de idade.

Com a sua mãe e seus irmãos? Com minha mãe e mais três irmãos. Em 1988, minha mãe fez a grande fuga.

A gente já volta para essa grande fuga. Antes me diz que tipo de garoto você foi. Eu sou o segundo mais velho do nosso 'clãzinho'. Obviamente, eu tenho muita memória de dor porque as memórias das dores gritam muito mais alto na vida. Mas eu me lembro que brincava muito na rua, minha mãe sempre nos autorizou. Como aquele era um território controlado, a gente podia brincar livremente e isso era muito precioso. E tinha algumas coisas que a gente fazia quando chovia. Como a rua alagava, e alguns profissionais que moravam por ali trabalhavam no Hospital Roberto Santos e tinham que trabalhar de calça e sapato branco, eles andavam em cima das pedras. Meus irmãos e eu rasgávamos o colchão – o colchão da década de 80 não é como o colchão de hoje, revestido de pano, era só espuma – pegava esponja, tirava a pedra do lugar, colocava num pedaço de colchão com alguns farelos de pedra em cima para que quando as pessoas viessem andando elas afundassem o pé na esponja. Fazíamos isso direto, e dava um rolo danado, mas como a gente era filho do “dono”, ninguém podia brigar com a gente, xingar a gente. E aí, você vê como de maneira muito intuitiva e infantil a criança começa a se valer nesses códigos de liderança e de superioridade impostas no território. 

E o Manoel poeta, o cara que faz rimas e é hiper-sensível, nasceu quando? Tem um fato que é muito nítido na minha lembrança. Uma vez eu estava sentado na frente de casa, devia ter cinco anos, e eu conversava com o céu. Na minha imaginação eu sinto que as estrelas estavam me respondendo, por mais que agora pareça piração, mas, pra mim, as conversas com as estrelas eram tão nítidas quanto a minha conversa com você agora. E essa não foi uma conversa direcionada por ninguém: via aqueles pontos brilhantes, sentia que ali existia uma linha de comunicação e falava com elas. Eu não estava falando com Deus, eu estava falando com aqueles pontos brilhantes, e eu conseguia sentir alguma resposta. Confesso que até hoje eu não sei se elas falaram de verdade, também não sei o que elas disseram, mas eu sei que essa conversa me acompanha até hoje. E o pior, eu nem sabia quem era Olavo Bilac, né, gente. Mas com certeza eu tinha perdido o senso.

O que você dizia para as estrelas? O contexto que nós vivíamos era um contexto cáustico e eu não me recordo exatamente da mensagem, mas acho que era um diálogo quase confessional. Existiam muitos questionamentos, muitas perguntas. Imagina: você mora numa rua de pouca iluminação pública e quando você tem pouca iluminação o céu estrelado ganha mais estrelas, fica uma cortina de furinhos, e aquela cortina, quase como se fosse um telhado de zinco todo furado, era isso que o céu era para mim. Eu realmente acreditava que aquele cintilado das estrelas era direcionado a mim. Ou seja, eu era arrogante desde criança, achando que as estrelas brilhavam por minha causa.

Agora me conta o que você chama de 'a grande fuga'? Em 1988, o mesmo ano da nossa Constituição, minha mãe tomou a decisão de sair da casa em que nós morávamos e abandonar meu pai, o que era muito difícil porque meu pai tinha uma estrutura de observação de toda a redondeza. Então, como é que uma mulher ia sair com quatro filhos daquele lugar? E era um contexto de violência, um contexto de agressividade em que meu pai praticava machismo agregado a todo um cuidado, o que produzia uma síndrome de Estocolmo na minha mãe. A partir de uma conexão evangélica, minha mãe conseguiu reunir forças para se desconectar disso, mas ela não conseguiu criar uma saída conciliatória, então precisou fugir. 

Como ela fez isso? Ela fez um acordo com as mulheres da comunidade que comungavam com ela da necessidade da fuga e, a partir daí, distribuiu nossas roupas em sacolas de supermercado. São muitas sacolas e umas 40 mulheres da comunidade saíram andando com elas como se estivessem indo ao mercado. Minha mãe saiu com a gente só com a roupa do corpo, como se fosse para um congresso evangélico. Todas essas mulheres se encontraram com minha mãe na rodoviária. As roupas das sacolas foram colocadas em quatro sacolões grandes, e minha mãe saiu pra uma viagem com os quatro filhos – levando em consideração que a mais nova tinha quatro meses e o mais velho tinha doze anos. A viagem levou quatro dias em um ônibus que saiu de Salvador rumo a São Paulo.

Você passou a segunda infância em São Paulo? Em uma cidade chamada Laranja Paulista, no interior de São Paulo. Começamos morando num lugar classe média baixa, mas, obviamente, não se sustentou e a gente migrou rapidamente para uma favela chamada Vila Zalla, mais conhecida como Canta Sapo, porque tinha um córrego no meio e os sapos, durante a noite, gritavam muito alto. Isso é interessante porque o processo de animalização do povo negro transita também na animalização do território negro. Do mesmo jeito que a pessoa negra não tem nome – é Pelé, é Joãozinho, é Feijão, é Jabuticaba – o território negro não tem nome – é Buraco Quente, Canta Sapo, Canta Galo. Ninguém coloca apelido em Copacabana, ninguém coloca apelido no Morumbi, as pessoas colocam apelido em territórios enegrecidos para promover um processo de desumanização não só do indivíduo, como do território. Hoje eu consigo ler isso com mais precisão.

Você é uma improbabilidade, não é, Manoel? Eu gostaria de não ser, mas não sou filho de uma estrutura criada para que eu existisse. Sou filho de uma boa vontade branca e de uma resistência negra. A pequena brecha que existiu entre a resistência pacífica de pretos e a compreensão intuitiva de brancos criou, no cenário em que eu existo, uma fenda muito fina e eu fui um espermatozóide que passou por essa fenda e acabou entrando, fecundando e virando essa criança que você está vendo aqui hoje.

Vamos falar um pouco da heroína dessa história toda? Você tá falando da senhora Dona Ivanete. A minha mãe é uma força da natureza, ela não é um ser. Sempre que vejo minha mãe noto uma egrégora de eternidade pairando sobre ela. A gente tá falando de uma mulher que nasceu em 1960, viveu um contexto de escravização até os nove anos de idade, com todas as mazelas psicológicas, corporais e sexuais de você ser propriedade de alguém. Até os nove anos a minha mãe não tinha nome. Deram a ela o nome de 'Fulustreca', e esse nome é o nome como as pessoas falavam com ela. Quando ela exigia um nome digno as pessoas batiam na boca dela com madeira. Mesmo assim, minha mãe consegue sair viva desse contexto, vai morar em Salvador, de Salvador vai para São Paulo, se envolve com um homem de pele clara, esse homem tem um relacionamento com ela e quando descobre que ela está grávida sugere que ela se atire do Viaduto do Chá. Por isso que eu digo que ela é uma força da natureza. Minha mãe sobreviveu quando não existia feminismo negro, ela sobreviveu quando não existia ainda narrativa, quando Judith Butler era só uma ideia. Quando Simone de Beauvoir estava queimando sutiãs, minha mãe nem sutiã tinha para usar. Ela é algo que a história brasileira vai ter que estudar. Ela viveu a escravização e o WhatsApp na mesma vida. Qualquer pessoa que vive a corrente e a digitalização na mesma existência e mantém a sanidade merece um lugar privilegiado na história. Espero que um dia a história reconheça o valor da Dona Ivanete porque ela é muito mais do que as pessoas, por enquanto, conseguem entender e assimilar.

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Como a gente faz para não cair na tentação de romantizar a história de potência da Dona Ivanete? Porque ninguém deveria passar pelo o que ela passou. Por outro lado, temos que celebrar a vida dessas mulheres periféricas que fazem o que a Dona Ivanete fez. Já existe um manual de instruções de como você pode tratar a mulher negra, lutadora, batalhadora com dignidade. É só tratar ela com o mesmo respeito que tratou as mães judias durante o período do Holocausto e dos campos de concentração. Eu adoraria que os autores de audiovisual no Brasil não se sentissem à vontade em colocar uma mulher negra sendo chicoteada no tronco, ou uma mulher negra fazendo sexo oral num senhor de engenho branco. Quem foi que deu a esses homens o direito de colocar a minha avó chupando o pau do avô deles e alegar que isso é um retrato da realidade da época? A maneira como muitas vezes, travestido de boa intenção, se trata a mulher negra, a mãe negra, seja nas obras de audiovisual ou nas narrativas cotidianas, expressa um racismo estrutural narrativo e isso faz toda a diferença na vida.

Como que, dentro desse cenário, você se apaixonou pela TV? Tentei ser servente de pedreiro, não deu certo porque pra você ser servente de pedreiro precisa ter aquela munheca solta para pegar a massa na colher e jogar na parede. Eu não tinha aquele jogo de munheca, então não consegui. Boa parte dos meus familiares trabalham com construção civil e são muito bons no que fazem, mas eu não consegui. E o cimento cortava minhas cutículas e machucava o meu dedo, então eu odiava ficar mexendo no cimento. Aí, eu vi que eu tinha habilidade em mexer com coisas mecânicas e eletrônicas. Num determinado momento da minha vida, me aproximei da criminalidade. Não cometendo crimes, mas fazendo limpeza em armas para pequenos bandidos da minha comunidade. Nessa época eu pensei: "Poxa, então vou virar bandido". Eu tinha dois objetivos naquele momento, que era o de todo o jovem: perder a virgindade e o mais rápido possível. Dentro desse caminho, eu vi um amigo meu morrer: o Catatau tomou dois tiros no pescoço e um tiro no rosto. Eu assisti a mãe dele tentando recolher os pedaços de cérebro dele no chão e colocar de volta na cabeça enquanto ele dava os últimos movimentos de vida. Aí eu cheguei à conclusão que eu não queria ser bandido porque eu não queria dar aquilo para minha mãe. Minha mãe saiu da Bahia com a intenção de nos tirar da chance da criminalidade. Eu não podia fazer isso com ela. E eu tinha uma característica: em todos os ambientes que eu estava, principalmente em ambientes escolares, a frase mais dita nas salas de aula era: "Cala a boca, Manoel". Eu gostava de falar. Então fui aprendendo que o que diziam ser meu pior defeito – falar demais – era a única coisa que eu sabia fazer. E o pior: eu fui gago por muito tempo da minha vida.

O que te curou? O violão que me tirou um pouco da gagueira. Mas se não tivesse sido a gagueira eu não teria implantado a arte na minha vida, e eu acho que eu sou um cara auditivo e a música tem uma função especial. 

Você aprendeu a tocar sozinho o violão? A gente aprende a tocar violão pra perder a virgindade porque ninguém quer dar pra gago, né? Então vamos tentar fazer alguma coisa para perder a gagueira, porque tínhamos essa meta de perder a virgindade.

Quando que você começou a fazer umas rimas? Com uns 11 ou 12 anos comecei a ver o Gabriel O Pensador e os Racionais MC's falarem coisas que eram proibidas e isso mexeu comigo. Tentei colocar as músicas dos Racionais na escola e fui hostilizado porque as professoras diziam que aquilo era música de bandido. 

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Que música? [Manoel pega o violão e começa a tocar "Fim de Semana no Parque", dos Racionais]

Chegou fim de semana todos querem diversão/ Só alegria nós estamos no verão, mês de janeiro/ São paulo, zona sul/ Todo mundo à vontade, calor céu azul/ Eu quero aproveitar o sol/ Encontrar os camaradas prum basquetebol/ Não pega nada/ Estou há 1 hora da minha quebrada/ Logo mais, quero ver todos em paz// Um, dois, três carros na calçada/ Feliz e agitada toda prayboyzada/ As garagens abertas eles lavam os carros/ Desperdiçam a água, eles fazem a festa/ Vários estilos vagabundas, motocicletas/ Coroa rico boca aberta, isca predileta// De verde florescente queimada sorridente/ A mesma vaca loura circulando como sempre.

[Para de tocar e coloca o violão de lado] Onde na minha vida eu poderia chamar uma mulher branca de vaca? Eram essas mulheres que hostilizavam a minha mãe, eram essas mulheres que deixavam a minha mãe humilhada, eram os maridos dessas mulheres que assediavam a minha mãe no ambiente de trabalho. Eu via essas mulheres dando resto de comida pra gente comer, eu sofria todo um ambiente de hostilidade, mas eu não tinha a oportunidade de chamar aquela mulher de vaca. E aí, quando você tem uma música como "Fim de Semana no Parque", que diz "aquela vaca loura", automaticamente, por mais que isso seja um reflexo do machismo estrutural e parte da narrativa cultural daquela época, funciona também como uma espécie de exorcismo para um coração machucado. Então a rima entra na minha vida como um tradutor de sentimentos, a rima passou a ser a minha 40 engatilhada e com ela eu podia disparar balas verbais e dar um destino para aquela habilidade narrativa que me acompanhava desde a escola. A partir daí tudo começou a se transformar. 

O que a sua mãe fazia nessa época? A minha mãe sempre trabalhou em serviço braçal: de dia ela fazia faxina em casas e de noite ela trabalhava como gari. 

O que você diria para alguém que lê essa entrevista e fala "olha lá, gente, está vendo, é só se esforçar. O Manoel se esforçou e conseguiu". Eu diria para essa pessoa ler a entrevista de novo do começo porque vai ver que ela não leu com a devida atenção. Eu sou uma árvore que cresceu numa parede de vidro no meio do deserto. Para eu estar aqui muitos sonhos morreram em becos. Qualquer possibilidade de sucesso ou de ganho financeiro que eu tenha veio adubada de uma realidade delicada. Eu adoraria que o contracheque que eu ganho hoje comprasse um novo nervo ciático para minha mãe ou desse dois discos novos para a coluna dela, e não vai dar. Os sonhos que a minha mãe abandonou nesses últimos 50 anos para que eu ficasse vivo não vão voltar. Eu fui abençoado por estar blindado pela guerrilha instintiva e intuitiva de uma herdeira direta do Quilombo de Palmares chamada dona Ivanete Pereira. 

Quando você era garoto tinha um herói na TV? Não. Eu tinha pessoas que eu era obrigado a me referenciar com ressalvas. Óbvio que eu gostava do Mussum, mas eu não conhecia a obra de Antônio Carlos Mussum como líder do Originais do Samba, eu conhecia ele como o Mussum e toda vez que ele era sacaneado, toda vez que ele era humilhado, toda vez que ele era ridicularizado, eu ficava ofendido. Depois de um tempo, já adolescente, assisti "Um Tira da Pesada" e vi o Axel Foley, o personagem do Eddie Murphy, que era um negro malandro, inteligente, que passava a perna no branco e falei: ‘É isso que eu quero ser’. Mas ele tinha um problema: ele era polícia e eu não podia ser polícia porque polícia e preto não era uma coisa que combinava, pelo menos não naquela realidade. 

Teve um herói brasileiro? Teve um dia em que estava assistindo o ‘Xou da Xuxa’ e entrou um homem de terno. Quando ele entrou todo mundo aplaudiu e ele era um homem negro, em um terno claro, cabelo super alinhado. Ele passou pela Xuxa e ela fez reverência. Aquela mulher loira fazendo reverência para um homem negro era uma imagem muito emblemática para alguém que vive num ambiente de exclusão. E o homem negro, num gesto cheio de ternura mas sem aproximação, acenou a cabeça para a Xuxa, olhou para o público, abriu as mãos e cantou: [Manoel abra os braços e imita] "Tantas palavras, meias palavras/ Nosso apartamento/ Um pedaço de saigon". Nessa hora eu falei: "Meu Deus do céu, quando eu crescer eu quero ser igual esse maluco". Talvez o Emílio Santiago tenha sido a primeira pessoa que eu vi de pele escura com dignidade na tela de uma televisão. Naquele momento meu coração fez uma promessa dizendo que se um dia eu tivesse na tela de uma TV eu me entregaria para as pessoas com a mesma dignidade que o Emílio Santiago se entregou. 

Você conheceu ele pessoalmente? Eu tenho a alegria de poder ter dito tudo isso a ele antes da sua partida. 

Quando você encontrou com ele? A primeira vez foi engraçada. Eu fui trabalhar na TVE, no Rio Grande do Sul, que era um lugar cheio de pessoas de pele clara e onde eu era o único negro. Era um trabalho informal, eu estava com uns 17 anos, e eu decidi dizer pra todo mundo que eu era sobrinho de Emílio Santigo. Disse que ele era irmão da minha mãe e que o tio Emílio ia muito lá em casa. As pessoas então começaram a me tratar diferente por eu ser sobrinho do Emílio. Tudo foi bem até que eu descobri que o Emílio ia dar uma entrevista na TVE. A TVE fica na Rua Correia Lima e o carro que levaria ele sairia da Rua Rádio TV Gaúcha, onde era a RBS. Era um trajeto de três minutos de carro e eu super nervoso porque a minha farsa de quase dois anos seria descoberta numa fração de segundos. Desesperado, decidi pedir para a assessora de imprensa do Emílio para ter acesso a ele antes de ele chegar porque eu precisava muito falar com ele. Um absurdo. E ela me disse: "Você pode ir no carro com ele". Era a minha chance. Nesse trajeto de três minutos eu entrei no carro, ele tomou um susto mas me disse para ficar e aí eu confessei que falei para todo mundo que ele era o meu tio porque senão eles não iam me tratar bem e agora eu precisava que ele mentisse por mim. 

E ele? Falou: “Como é que você me coloca nessa situação?”, e eu: “O senhor não precisa dizer nada, só não negue”. E ele não me disse nem sim nem não. Eu suava litros. Num ato de generosidade ele sustentou a minha falácia e eu acho que ele compreendeu que, por algum motivo, naquele momento, ele era a minha rota de fuga da invisibilidade. Depois a vida me deu a chance de entrevistar ele e agradeci a generosidade. A última vez que eu encontrei com ele foi em Salvador, ele já estava bem cansado, e eu pedi para ele cantar pra mim. E ele cantou só pra mim sentado num banco: "Por quantas noites eu me vi desencantar/ Enquanto os palcos desabavam sobre mim/ O meu amor então beijava o meu olhar/ Dizia: Vamos lá! Levanta e vai cantar!// E eu sabia que tinha de ir/ Pra amenizar toda a dor da cidade/ E eu pousava nos pianos por aí/ Tal qual um sabiá pousava num flamboyant". O meu grande herói da infância era um negro, homossexual, elegante, bonito e cantor chamado Emílio Santiago. 

Por que você foi para Porto Alegre? Porque minha mãe se deu conta que eu estava flertando com a criminalidade e me mandou para Porto Alegre para trabalhar com um tio. Trabalhei com esse tio por quase um ano até a gráfica onde a gente trabalhava falir. Aí eu não quis voltar para o rabo da saia da mãe e também na minha cabeça eu tinha rompido com as FARC e ia ser arriscado voltar. Claro que não era isso, era só com uma boquinha de tráfico da esquina, só que na cabeça de um jovem tudo é maior. Fiz muitos bicos e acabei na condição de rua por uns quatro ou cinco meses, ali no viaduto Birici. Coincidentemente esse viaduto fica em frente ao mercado Carrefour onde o João Alberto foi assassinado. Aliás, ontem eu passei por lá e foi muito emblemático que de um lado da rua estivesse o início da minha história e do outro lado da rua o fim de uma outra história. Mas voltando: nessa época eu ficava encostado no viaduto e passou uma equipe de televisão. Eles estavam fazendo matéria sobre a semana da Consciência Negra e me chamaram para dar entrevista. Depois da entrevista alguém da equipe falou: "Como é que a gente pode te ajudar?". E eu: "Me dá um trabalho". Funcionou. Eles me chamaram para montar e desmontar arquibancada. Depois fui fazer faxina no estúdio, vez ou outra atendia o telefone e falava: "TVE, boa tarde", e os caras: "Olha lá o faxineiro atendendo telefone! Que faxineiro maluco, cara". Daqui a pouco me ensinaram como imprimir um texto e tal e quando eu vi eu já estava corrigindo alguma letra no texto, que era o gerador de caracteres. A partir daí eu saí da rua, comecei a ganhar R$ 150 por mês e quando vi estava na televisão. 

Você manteve contato com o seu pai? Não. Meu pai foi assassinado alguns anos depois numa situação super delicada: ele saiu para atender um telefonema meu depois de quase dez anos de distanciamento e foi morto. Durante muito tempo, eu me culpei dizendo que se não tivesse marcado o telefonema nada teria acontecido, mas se não fosse naquele momento ele teria sido assassinado em um outro, né, porque, infelizmente, é o contexto. 

São memórias de guerra, Manoel. O mundo tentou me dar memórias ruins por conta do racismo estrutural, mas minha mãe guerreou com o mundo e venceu. Eu tenho memórias ótimas, sei fazer pudim, sei fazer bolo, sei fazer carrinho de rolimã, sei pular corda, sei brincar, sei cantar. Eu tive uma infância linda: sei identificar cantos de pássaros, minha mãe me ensinou muita coisa linda e o meu povo me ensinou muita coisa linda. As memórias tristes que eu tenho na minha vida me foram dadas pelos brancos e por esse mundo que o branco criou. Não vou dizer que a minha infância foi triste porque isso é injusto com a Dona Ivanete. 

Você tem seis filhos. Quantos anos você tinha quando você foi pai pela primeira vez? Eu tinha 22 anos de idade. 

Você tem a chance de dar para o seu filho o que seu pai não pôde te dar. Nas minhas primeiras experiências de paternidade eu entendia que eu estava parindo soldados e não seres humanos porque eu já estava na energia da militância. Eu treinava o meu filho para ser um homem sem medo, um animal de guerra. Eu acho que os meus primeiros filhos sofreram demais com isso. Hoje, nas minhas últimas paternidades, eu me preparo mais para o afeto. Eu acho que o mundo mudou, mas eu também mudei, então a gente vai para um outro lugar. Mais importante do que dar para os meus filhos tudo que eu não tive é dar tudo o que eu tive: experiências de vida, percepções e visões de mundo que me transformaram num cara que está dando entrevista para a Trip. 

Todos os filhos são homens? Tenho cinco homens e uma mulher e quero adotar mais duas meninas porque eu acho que eu devo ao universo uma paternidade de menina mais responsável. 

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A gente está falando de uma estrutura de poder que sustenta e organiza a nossa sociedade, que é o racismo, mas tem ainda uma outra que é o machismo. Como você se desconstrói desse lugar? Não tenho a mínima ideia. Eu posso dizer como eu tento me desconstruir, porque ninguém sabe qual é o caminho para desconstrução machista. A primeira coisa é você vencer a barreira da objetificação da mulher enquanto coisa, depois você passa por um processo de reconhecimento da intelectualidade dessa mulher. E depois você reconhece ela como ser humano. Pra isso você precisa despertar a mulher que mora em você porque quem se conhece não se odeia. Eu sou 50% mulher. Então, sim, eu passei pela fase de usar vestido dentro da minha casa e meus filhos tinham que me respeitar usando saia. Eu ia ao supermercado com o vestido da minha esposa, e eles tinham que entender que isso ia acontecer e que isso não contornaria o meu caráter. 

Você foi mesmo de vestido? Sim, e até hoje tem roupas da minha mulher e da minha filha que eu uso sem problema nenhum. Mas isso não é para educar o meu ambiente, mas para educar a mim mesmo. Eu fui ensinado que vencer o machismo não era só bom para mulher, era bom pra mim. Então, eu não estou lutando para abandonar o machismo para favorecer as mulheres, eu estou lutando para abandonar o machismo para que eu possa ficar um pouco mais vivo porque o que mata o homem negro no Brasil é o machismo: o machismo que vem da bebida, o machismo que vem da bala, o machismo que vem de todos os lugares. Então quanto mais mulher eu permitir me tornar, mais vivo, possivelmente, eu vou ficar. Uma coisa eu sei: a revolução é preta e usa sutiã e calcinha. 

O que é paternidade para você? A paternidade me devolveu aquilo que o racismo tirou. O racismo me transformou num animal, a paternidade me devolveu a humanidade. A paternidade é o mais próximo que eu vou chegar de uma relação divina, ver os meus olhos impressos em outro rosto, sentir meu coração batendo em outro corpo, sentir gosto de banana pela primeira vez. 

Como você chegou à Globo? Da TVE, fui para a RBS, fiquei lá por quase vinte anos no total, até que um dia eu decidi que ia abandonar a comunicação e montar uma franquia de pão de queijo para vender nas paradas de ônibus. Mas em 2016, ao vivo no programa, a Fátima Bernardes espantou todo mundo e me convidou para integrar a equipe dela. Do nada ela diz: "Eu quero esse rapaz aqui, eu quero esse rapaz comigo". E eu vim trabalhar na Globo. Mas, quando eu chego, tenho que começar do zero porque no Rio Grande do Sul eu já tinha um território. Aí eu tomo algumas decisões sobre o que eu quero fazer da minha vida. Eu me dou conta, por exemplo, que a Globo não tinha algo que eu achava importante, que eram as periferias de São Paulo, e eu me proponho, de maneira muito arrogante porque ainda sou aquele menino que fala com estrelas, a promover um processo de conciliação comunitária entre a maior emissora de comunicação da América Latina e uma das maiores cidades do mundo. Fico feliz porque ambos os lados me acolhem com muito respeito e decidem aceitar o convite. E essa conciliação acontece, a gente começa a entrar com TV ao vivo de dentro de territórios como Capão Redondo, como Paraisópolis, como Heliópolis, sem qualquer rechaçamento. E a gente começa a fazer um território de positividade, de visibilidade, quebrando muitos estigmas. 

Sua mãe me contou que você, quando era pequeno, dizia que ia trabalhar na TV. Eu falava que tinha vontade. Mas achava que ia ser ator. Os meus primos e amigos, movidos pela lgbtfobia estrutural, diziam que eu ia virar viado na TV e que eu tinha mesmo é que aprender a virar um concreto. E eu ficava triste, mas minha mãe me dizia: “Manoel, por cima do medo, coragem”. É o bordão da vida dela. E ela dizia que eu ia conseguir. Então, quando eu estreei [como apresentador] no “É de Casa” [no dia 12 de setembro de 2020] eu fiz questão de dedicar a ela essa conquista.

Quer contar um pouco do livro que você está escrevendo? Desde a morte de George Floyd comecei a notar que os brancos estão muito confusos porque eles são herdeiros de uma dívida absurda que eles não sabem como lidar. Alguns deles preferem se relacionar com essa dívida de maneira inadimplente e revoltada, ficam esperando que a dívida caduque e seu nome saia do Serasa da humanidade, só que não sai assim. Por amor ao meu povo eu decidi tratar o branco com afeto porque, a cada branco que consegue se reposicionar socialmente, são 10, 15, 100 negros que vão sofrer menos. Baseado nisso, eu escrevi um tratado que tem como título "Para o meu amigo branco", onde eu, de maneira direta e afetiva, tento levar ao branco um ponto de reflexão sobre a sua condição e não sobre a minha. Boa parte dos livros na questão racial estuda e faz uma autópsia social do negro. Eu decidi fazer uma autópsia social do branco e mostrar para ele como desde a sua primeira infância, desde a sua segunda infância, sua pré-adolescência, sua adolescência, sua vida adulta, sua maturidade, ele recebeu inputs racistas, e de como ele precisa se desvencilhar desses inputs se quiser, de fato, ser outra pessoa. No meu livro, eu faço o convite para que as pessoas olhem para dentro de si porque acho que esse é o melhor caminho. Se eu conseguir mudar o seu coração, o coração do nosso amigo leitor, naturalmente eu estou ajudando o meu povo. 

O que você gostaria que a gente que é branco entendesse sobre racismo? Que a humanidade quer colocar a bandeira branca da paz nas relações étnico-raciais, só que quer colocar uma bandeira branca num corpo todo ferido, todo machucado, e quando essa bandeira branca é colocada nesse corpo ela fica suja de sangue e aí as pessoas ficam bravas. Se você não quer a sua bandeira branca suja de sangue, cure as feridas do corpo que você está cobrindo com ela. Porque enquanto você colocar a bandeira branca no corpo sujo de sangue, a sua bandeira vai ficar manchada. É isso.

O que mais você gosta de fazer? Eu gosto muito de compor, faço músicas para os meus filhos, dedico uma música para cada um. Gosto de ficar brincando com vídeo, adoro fazer vídeo no celular, ficar editando e tal, e estou me especializando nisso. Hoje tenho uma ilha de edição no celular que pode gravar e colocar em qualquer emissora como se tivesse sido editado em uma grande estrutura. E emagrecer: a gente sempre acha que precisa emagrecer, então eu acho que eu preciso emagrecer. E tô batalhando para não ser só o militante, sabe? Eu queria tanto ter preocupações normais, queria tanto falar bobagem, queria tanto que essa nossa entrevista fosse sobre bobagem... Mas eu ainda preciso colocar o meu corpo a serviço dessas mensagens. Espero que os meus bisnetos, quando derem entrevista para você, que eles possam falar se a Capitu traiu ou não. 

Seria bom se a gente chegasse nesse Brasil, Manoel. Pra encerrar vamos falar de Dinorá Silveira Rodrigues, esse outro mulherão na sua vida? Sim. É a segunda força da natureza que conheço, com uma capacidade de resiliência e de absorção de impacto absurda. Se eu não quebrei até agora é porque ela é o amortecedor que me leva, porque o mundo bate forte, viu? Quando o mundo bate forte, eu caio, e quando eu caio, eu não quebro. E quando eu estou deitado na cama, ela diz: "Meu preto, o que é que há?/ Levanta e vai cantar/E eu sabia que tinha que ir/Pra amenizar toda a dor da cidade/E eu pousava nos pianos por aí/Tal qual um sabiá pousa num flamboyant".

Créditos

Imagem principal: Mylena Saza

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