por Fernando Luna

Nascido no morro, Luiz Melodia conquistou o asfalto, ganhou fama de maldito e se tornou o artista mais subestimado da música brasileira

#BaúdaTrip Na edição 100 da revista, em maio de 2002, o entrevistado das Páginas Negras foi bem especial: Luiz Melodia. Então com 51 anos, o genial compositor de "Pérola negra" era (como ainda é) um dos artistas mais subestimados da música brasileira. "Sou muito simples. Talvez pague um preço por isso", ele disse na época. Luiz Melodia morreu nesta sexta-feira (4/8), aos 66, no Rio de Janeiro. Abaixo, a entrevista, pela primeira vez no site. 

O sucesso de Luiz Melodia sempre foi menor do que sua obra. Aos 51 anos de idade e 30 de carreira, ultrapassou apenas uma vez a marca das 100 mil cópias vendidas. Foi em 1999, com Acústico ao vivo, que, como o próprio nome indica, reúne dois formatos eminentemente comerciais. Seus outros dez discos, porém, apresentam uma quantidade considerável de canções com potencial para ocupar o topo das listas de mais pedidas: "Pérola negra", "Estácio, Holly Estácio", "Magrelinha", "Ébano", "Felino" e "Cara a cara", para ficar nas mais óbvias. Algumas de fato chegaram lá, como "Juventude transviada" ("Lava roupa todo dia/ que agonia"). São exceções, raras demais para um autor de tantas músicas com vocação popular, acessíveis e românticas – no bom sentido. "Eu mesmo não entendo", espanta-se o cantor e compositor nesta entrevista, realizada no apartamento simples e confortável que aluga no Jardim Botânico, bairro nobre do Rio de Janeiro, enquanto a reforma de sua casa em São Conrado não termina.

Nascido no bairro carioca do Estácio, terra natal da primeira escola de samba do país, Melodia passou a infância e a adolescência no Morro de São Carlos, hoje uma das favelas mais violentas do Rio. Naquele tempo, a agitação se resumia aos bailes em que Luiz Carlos dos Santos e seus amigos da banda Os Instantâneos tocavam hits da Jovem Guarda e dançavam twist – coisas da classe média, quase uma heresia em território de bambas como Ismael Silva. Quando o garoto cresceu e, já com o sobrenome artístico pelo qual seria conhecido, gravou seu primeiro long-play, Pérola negra, houve quem pusesse reparo. Como podia um negro pobre fazer uma música que, embora popular e brasileira, não fosse samba?

Mas Melodia nunca deixou que lhe dissessem qual é o seu lugar. Sem negar o balacobaco-telecoteco-ziriguidum, foi além dele. Desse modo, criou – e continua a criar – um repertório que concilia a cultura da periferia negra e pobre com a dos bairros brancos de classe média. Difícil pensar em outro cantor tão à vontade para gravar músicas de Zé Keti, a voz do morro, e de Cazuza, a voz do asfalto. Talvez isso ajude a entender por que Melodia não é o mais pedido nas rádios, não é disputado pelos programas dominicais de televisão, não recebe discos de platina. Se, nas cidades partidas em que se transformaram os grandes centros urbanos do Brasil, não há lugar para a ideia de um país integrado, também não poderia existir espaço para uma obra que a realiza – ainda que poeticamente.

Luiz Melodia só será grande quando o país for grande.

Trip. Você é o menos popular dos cantores populares?
Luiz Melodia. A Jane [Reis, mulher do cantor há 25 anos] diz: "Engraçado falar que você é um compositor de elite, enquanto tem coisas completamente populares para tocar". Inclusive artistas ficam sem entender [por que não faço sucesso]. Uma vez comentou o Djavan, Caetano Veloso também. É uma incógnita na cabeça das pessoas. Eu mesmo não entendo.

Depois de 30 anos de carreira e 11 discos, você se considera devidamente reconhecido? Não tive esse privilégio. Continuo não tendo esse privilégio, que acho que minha obra merecia. Durante um tempo, pode ser até que esteja enganado, fui boicotado: não recebi muita atenção das gravadoras por onde passei. Tenho uma obra que não é muito extensa, mas acho que merecia muito mais atenção. Tem que ter merchandising em cima do artista, tem que investir grana. Isso nunca aconteceu, a não ser quando comecei minha carreira.

Por quê? Era uma novidade. Depois, em meados dos anos 70, a coisa ficou estranha, ganhei o rótulo de maldito, que não vendia discos. Eu, Sérgio Sampaio, Jards Macalé rompemos com coisas, não aceitamos modismos, não abria mão [do meu estilo]. Até hoje não abro mão. Tudo bem que não tenho os privilégios que muitos têm na mídia, mas faço o que quero, gravo o que estou a fim.

Continuam chamando você de maldito, um rótulo estranho para alguém casado há 25 anos, com dois filhos, vivendo num apartamento tranquilo no Jardim Botânico… [Ri] Pois é. Fiz por onde, trabalhando, sempre trabalhando. De vez em quando dizem que nego insistentemente o rótulo de maldito. Acho muito engraçado, porque não faço esforço nenhum, simplesmente não acho nada [desse rótulo]. É impossível alguém passar por cima quando você faz um trabalho consistente. Acho que estou bem pra caramba.

E como você acha que deveria se chamar o documentário que estão produzindo sobre você? [Silêncio] "Ébano" seria bacana. É um nome forte, tão forte quanto a madeira. A madeira ébano é pau de dar em doido, madeira negra. Acho bonita a força dessa madeira. E tem instrumentos de ébano. Clarinete é feito de ébano.

É forte, mas sem perder a ternura. É lógico, tem uma doçura. É exatamente isso. O filme ainda não está em andamento total porque estamos tentando arranjar grana para financiar. Conseguimos 20 mil até agora, o que é pouquíssimo. A responsável é a Karla Sabah. Estamos há algum tempo nessa, mas os ânimos estão legais. É uma mistura de documentário com longa, inclusive vou fazer até um papel, um personagem que é meu pai.

O seu pai era músico e queria que você fosse doutor. Qual era sua expectativa em relação a seus filhos? Nunca forcei barra nenhuma, nem em relação ao Mahal, nem ao Hiran, que é o mais velho. O Mahal é rapper, tem muito talento. Escreve umas letras surpreendentes, bem mais sofisticadas que as minhas. Intelectual demais, até.

Cita de Aristóteles a Marx. Ele tem um potencial fantástico. Desde os 13 anos ele mostrava essa tendência para a música. Não é nem pelo fato de me ver.

É difícil acreditar que você não teve influência nenhuma. Influência posso ter tido, mas não seguiu as coisas que faço, MPB, por exemplo. Ele é mais chegado no rap, no experimental. Senta no computador e fica até de manhã mexendo e tal. É lógico que Luiz Melodia pesa, tenho que ter um fiapo de influência aí, senão ficaria estranho.

Que tipo de pai você é? Rapaz, faço o possível para ser legal, para dar oportunidades ao meu filho. Sempre procuro conversar, logicamente. Até porque com os nossos pais era difícil ter um contato assim direto, sentar. Pelo menos eu não tive essa oportunidade de o pai sentar para falar de coisas que eram também básicas para vida. Sempre que posso, converso com meus filhos. Se eles me deram acesso também, né? Não vou ficar forçando a barra.

Você conversava sobre drogas com eles? Falo do que vivi, do que sei.

Você fuma em casa? Fumo, mas não com o Mahal. O Mahal é ele e a turma dele. Se tiver de fumar, fuma, não quero envolvimento.

Você se lembra da primeira vez que usou alguma droga? No São Carlos [morro carioca onde Melodia passou a infância e a adolescência], fumava pra caramba. Era muito divertido, ríamos muito, muito. Uma coisa até sadia, de uma certa forma. A gente usava uma maconha boa, de melhor qualidade, chamada Manga Rosa. Subiu uma barreirinha para fumar escondido, uns amigos vigiando.

E quando foi a última vez que você usou alguma droga? De vez em quando fumo um baseado, é o que eu mais curto. Toda vez que posso, dou um tapinha. Quando vou a Penedo [interior do Rio de Janeiro] gosto de queimar unzinho, é um lugar maravilhoso.

Qual é o papel da maconha na sua vida? Diversão, inspiração? Diversão. Inspiração não dá certo. Tenho que estar normal para escrever, para compor, senão é um bode do cacete. Se fumar, esquece, escreve uma coisa e dali a pouco está pensando em outra. Normalmente, se me der ideia, eu já ponho aquilo mesmo, sem me preocupar se tem sentido ou não… Imagina fumando ou usando outras drogas mais fortes! Destas, sempre tive pânico. Usei cocaína por alguns anos, mas curti muito. Quando começou a virar paranoia, me afastei. A Jane ficou grávida do Mahal, então começou a virar passado. Depois nunca mais, só um fumozinho.

Mas e aquele episódio em 1994, quando você foi detido com cocaína? Aquilo foi alguém que deixou no carro. Fui pegar um amigo que ia tocar percussão comigo e veio uma pessoa junto. Estava indo dar uma canja no show do Zé Keti, na Plataforma [churrascaria e casa de shows do bairro carioca do Leblon], quando fui parado [pela polícia]. Mas, como se resolve tudo… E era mixaria, mas o s caras queriam uma grana absurda, sempre essa corrupção policial. Mas tinha uma grana, não lembro quanto, e ficou tudo bem.

A tendência é que a lei diferencie o usuário de droga do traficante, que hoja são tratados mais ou menos do mesmo jeito. Você acha que esse é o caminho? Desde que não esteja agredindo ninguém, o cara pode fumar à vontade, usar à vontade. É ele com ele, não está influenciando ninguém. Sou a favor das descriminação, pelo menos do fumo.

Falando nisso, seu outro filho, o Hiran, é delegado de polícia, não é isso? [Ri] Não, não é mais, não. Ele é advogado, e apareceu uma oportunidade quando ele se mudou para o Tocantins. Resolveu fazer um curso e depois me ligou dizendo que já era delegado. Como o Hiran é chegado numa grana… Mas ele desistiu, não passou de ilusão. Agora ele está construindo o escritório de advocacia dele, em Vitória.

Como é sua relação com ele? O Hiran não mora comigo, então contato pessoal é só durante as férias. Mas é muito bacana estar com ele, é uma outra coisa, diferente do Mahal. O Hiran é de uma cidade provinciana, Vitória, todo cheio de preconceitozinho bobo, até devido à educação que a mãe lhe deu. Mas também dá para bater um papo tranquilo.

Você ainda tem contato com a mãe dele? De vez em quando falo com ela, quando ligo para o Hiran. Às vezes, quando ela vem ao Rio, a gente se encontra. Mas só nessas condições o papo.

Ela sumiu quando estava grávida do Hiran, e só reapareceu dois anos depois. Deve ter sido um baque. [Seco] É. Mas eu preferia nem comentar isso, numa boa. Foi uma época muito difícil da minha vida. Já é coisa passada, nunca falo a respeito disso, foi um acidente da vida humana. Ela viajou, foi embora e eu nunca mais soube do menino. Depois nos reencontramos e ficou tudo certo, deu pra ir.

Desde essa época, comecinho da sua carreira, você sempre se vestiu bem. Foi influência da sua mão, que é costureira? Minha mãe, sem sacanagem, foi uma costureira de mão cheia. Trabalhava bonito mesmo. Sempre curti desenhar as minhas roupas, e dava para ela fazer minhas bocas-de-sino, minhas blusas cheias de gueriguéri.

Era um visual muito afirmativo, não? Nos anos 70, você, o jogador de futebol Paulo César Caju, o Tony Tornado eram símbolos desse estilo. Pode crer, era muito afirmativo. Tinha essa coisa da elegância do black. As festas nos subúrbios eram mais lindas ainda, as pessoas faziam questão de estar naquela posição elegante. Eu achava o máximo, muito legal.

A gente falou de “Ébano” e lembrei também de “Pérola Negra”, “Negro Gato” e outras músicas suas que falam do negro de uma maneira muito lírica. Hoje, o discurso dos rappers, do seu filho inclusive, é muito mais contundente. O que mudou? Ficou mais dura a realidade, mais cruel. O negro está questionando o tratamento diferente que recebe, o fato de não ter negro na televisão e nos cursos superiores. Isso fez com que a música ficasse mais agressiva.

Você acha que a situação do negro está mais complicada do que há 30 anos? Ele está mais informado. Antes, a ignorância era maior. Agora, estão falando tudo, os preconceitos, de certa forma, estão diminuindo. Então, é natural que estejam mais ousados no que escrevem, sem papas na língua. Acho interessante a maneira como rapper escreve, o Mahal, o D2.

Você já se sentiu tratado de maneira racista? Assim, explicitamente, não lembro. Mas deve ter havido situações que eu nem percebi. Em qualquer posição que você esteja, esse ranço vai perdurar por muito tempo.

Você se preocupava em tratar de questões raciais no seu trabalho? Não, nunca foi uma coisa ferrenha assim. Às vezes escrevo umas coisas, como “Ébano”. “Negro Gato” não é minha, mas me identifico muito com a letra. Estou pensando em fazer uma canção sobre o negro no poder, essas coisas básicas de que o país precisa. Se o negro estiver integrado, o país cresce, porra.

Em quem você está pensando em votar para presidente? Quem sabe o Lula… já fiz shows na campanha dele, já votei nele.

O que você, que gosta de cinema, achou da premiação inédita de três negros, Denzel Washington, Halle Barry e Sidney Poitier, no último Oscar? O reconhecimento foi bacana, mas tardio, como quase tudo que acontece com os negros… De qualquer forma é um passo à frente, é com isso que a gente se fortifica. Hoje é lá, amanhã é aqui. Você vive num país miscigenado e nem moreno você vê em outdoor, é loucura, velho!

E, quando vê, é só jogador de futebol ou cantor de pagode ou de samba. Pois é… Quando desci do morro, reclamavam por eu não fazer samba. Até hoje quando sou apresentado a alguém que não me conhece, perguntam se sou sambista. Nada contra, é maravilhoso, já fiz sambas, mas não é pelo cara ser negro e nascido no morro que vai ser sambista, né?

Você ainda tem parentes e amigos morando lá no Morro de São Carlos? Tenho, vira e volta estou lá. Fico muito deprimido, a ponto de chorar. Pô, filho de amigo meu, tudo no tráfico, com pouco tempo de vida. Os lugares onde eu corria, brincava na minha infância… Você retorna e vê meninos com armas pesadíssimas. [Enfático] Toda vez que vou, não adianta, continuo chocado. Mas vejo meus amigos, tomo uma cervejinha com meus camaradas, almoço com minhas [quatro] irmãs, que ainda moram lá. Minha vontade é de tirar minhas irmãs de lá, elas corre perigo a todo instante.

Ainda dá pra reconhecer alguma coisa do Estácio que você cantou, quando você volta lá? Ah, não, é bem diferente. Costumo até brincar: se alguém quer me matar de amor, que não me mate no Estácio.

É mais fácil morrer de bala perdida… Pois é, uma pena. Se puder, se ganhar uma grana., tiro minhas irmãs de lá imediatamente.

Você ainda se sente parte do morro? Com certeza, nasci lá, minhas raízes estão lá. Tanto que, no Carnaval, fizeram um bloco em minha homenagem, o Muvuca.

Os meninos do tráfico reconhecem você? Reconhecem. Um dia desses estive lá e conversei com eles, tudo cheio de revólver e eu no meio. Nunca ouso dar sermão, até porque não funcionaria mesmo. Às vezes os caras estão drogados pra caramba, não se sabe qual vai ser a reação.

Isso tem solução? [Rápido] Pelo amor de Deus, tem que ter! Até porque a ousadia está demais, não só a dos bandidos, como também a dos policiais. Mas projetos como o Mangueira do Amanhã funcionam. É preciso implantar coisas assim em todas as favelas, dar auto-estima à garotada. Muitos poderiam deixar o tráfico. Os empresários deveriam participar, eles estão cercados pelos morros, que podem descer todos juntos de uma hora para outra. Já está acontecendo, é uma pauleira, velho…

Você já foi assaltado? Não, nunca. Às vezes brincam comigo por causa dos brilhantes nos meus dentes. Mas a vida está tão desesperadora que nego pode querer arrancar… Deus meu livre!

Já esteve perto de morrer alguma vez? Rapaz, só tive essa sensação em Salvador, ali próxima à casa do Caetano Veloso, em Amaralina. Ficava sempre na casa dele e tomava banho na prainha que tem por ali. Sofri um aperto grande no mar, quase me afoguei umas duas vezes, perdi uma pulseira, perdi um dente que não era dente, um dente postiço. O Toni, meu cunhado na época, me disse para ter calma, me deu instrução para deixar o corpo ser levado para areia pelas ondas. Não vou mais a essa praia…

Você era muito próximo do Caetano, em particular, e dos baianos em geral – Gal Costa, Maria Bethânia, Waly Salomão. O que aconteceu que vocês se distanciaram? Foi cada um para o seu lado. Encontro mais com a turma baiana em Salvador, nas festas de final de ano. Aqui no Rio, dificilmente encontro com eles, nem vou na casa. Antigamente tínhamos uns jantares. Agora mudaram também as relações deles, as mulheres. Acho essas meninas muito mais frescas de você lidar, numa boa. É diferente de quando era a Dedé [Gadelha, ex-mulher de Caetano, hoje casado com Paula Lavigne], era muito mais aberto. Mas toda vez que encontro o Veloso é festa, é sempre legal.

Antes do Caetano, você conheceu a Gal. Como era seu relacionamento com ela, já muito conhecida, quando você mal estava começando? Era bacana. Nesse tempo eu estava quase saindo do Exército. Ligava do quartel para falar com a Gal, mas nunca falava! Quando ela atendia, eu ficava mudo, pagava o maior mico, morrendo de vontade de falar. A gente não se conhecia muito assim, me dava uma vergonha…

Ela era uma menina bonita. Acho ela linda, fantástica. Depois ficamos muito amigos, ia direto na casa dela. Fazia carinho nas pernas, aquelas pernas bonitas… Era tudo novidade para mim, aquela zona sul e tal, aquela liberdade das pessoas, as mulheres sentadas com a calcinha aparecendo… Desbunde total! Eu era tímido, mas elas não eram! [Risos]

Mesmo próximo aos tropicalistas, você nunca foi identificado com o movimento. O fato de nunca ter feito parte de algum grupo dá sensação de solidão? Ah, dá. Não tenho uma turma. O que era da minha turma faleceu, o Sérgio Sampaio, um puta compositor. Se fizesse parte de um grupo seria mais fácil. Ninguém segura um bando de animais atacando, né?

Você tem amigos? É muito difícil esse negócio de amigos, mas tenho alguns. Parece que são, nas horas difíceis é que você vê. É, tenho alguns amigos. Muitos dos amigos de infância morreram, mas restam alguns.

Como você enfrentou a morte do Cazuza e da Cássia Eller, dois amigos seus? Muito chato, o Cazuza era camaradão, a gente estava sempre junto nas noites. Ele ligava para a Jane no meio da noitada, inventava histórias, dizia que eu estava com uma namorada. [Risos] Com a Cássia não era diferente. Quando a gente se encontrava, ficava completamente à vontade, dava risada. Até tive vontade de dar umas pegadas nela… [Risos]

Pegou? Não, nunca aconteceu. Não cheguei a falar com ela coisa desse tipo. Mas se rolasse, não ia ser mal. [Risos]

Tem um outro amigo seu, o artista plástico Hélio Oiticica, que deixou uma obra em que está escrito “seja marginal, seja herói”. Serviria como lema para você, não? [Ri] É, ele gostava da marginalidade.

E você, gosta? Acho maravilhoso, “seja marginal, seja herói”. Mas um marginal benéfico, né?

O que é marginalidade benéfica? Uma marginalidade mais positiva, não a que prejudica o próximo. Ser marginal na música é fazer coisas interessantes, aproveitar a liberdade e fazer sucesso.

O sucesso veio no início da carreira, com Pérola Negra, de 1973, uma das estreias mais brilhantes da música brasileira. Você tinha 22 anos. Começar tão alto assim acabou se tornando um peso? Não, nunca me inibiu nem me deixou com o compromisso de fazer um disco ou uma composição [à altura]. É lógico que foi emocionante ver a Gal Costa cantar “Pérola Negra” no show [ela gravaria a música no disco Fatal - Gal a todo vapor, em 1971, que despertou o interesse do público e da crítica por Melodia]. Mas minha música também deu um “toque” na Gal. Não tive crise nenhuma, continuei escrevendo e compondo normalmente, como faço até hoje.

Além da Gal, várias cantoras gravaram músicas suas, como Cássia Eller, Bethânia, Zizi Possi, Sandra de Sá. O que você acha que interessa tanto às mulheres no seu trabalho? Será que não é uma coisa que coincide, não, velho? Nunca nem reparei nisso, será que não é coincidência? Apesar que estão fazendo um projeto só com canções minhas e já tem várias mulheres, como a Zélia Duncan. Gosto da minha música cantada por elas.

Falando nas mulheres, por que tantos músicos precisam delas para administrar suas carreiras? Você, o Caetano, o Lobão, o Gil… Estou muito agradecido por ter a Jane. Quando eu trabalhava com outros empresários, principalmente  no início da minha carreira, as coisas aconteciam como eu pensava. Até me sentia um pouco logrado.

Por quê? Eu tinha um talento, acreditava que tinha um talento e não precisava mais me afirmar. Já tinha lançado um disco que as pessoas, críticos etc. elogiavam. Acreditava que dava para seguir uma carreira legal. Não tenho a manha de ficar sozinho.

Há quanto tempo Jane cuida da sua carreira? Sabe que nunca contei? Acho que tem uns 15 anos que trabalhamos juntos. Foi a melhor coisa que aconteceu.

Não é complicado misturar trabalho e casamento? Não. Com sinceridade, nunca teve uma complicação, um atrito grave. Talvez a única complicação que possa ter é na hora de ir para os shows. Dá aquela vontade de continuar dormindo ou de continuar batendo um papo com os amigos… Ela fica: “Vambora, tá na hora!”. Ao mesmo tempo, tenho alguns privilégios. Se o show é às nove e meia, ela me deixa dormir ou descansar até às nove e quinze.

Quando cheguei aqui, você estava tirando um cochilo. Quantas horas você dorme por dia? É que fui dormir muito tarde ontem. Depende muito, de repente passo a noite tocando violão ou compondo, aí posso dormir às quatro horas e acordar ao meio-dia, é muito variado. Mas quem lida com música é assim; nunca deito às nove horas da noite.

Como vocês, juntos há 15 anos, lidam com a fidelidade? A gente faz o possível. [Risos] Vira e volta recebemos cantadas, tanto eu quanto ela. Lógico que a gente tem ciúme um do outro, ela naturalmente mais ainda porque sou um cara público e vira e volta as meninas vêm em cima. Às vezes é uma descaração. Mas a Jane nunca foi uma pessoa de rodar a baiana.

E quando ela é o alvo? Esperneio completamente, fico mal-educado. Com ela e com quem está cantando, vou logo perguntando qual é, o que está acontecendo. Mas se tiver de acontecer é impossível impedir.

Já aconteceu com um dos dois e vocês tiveram que sentar para conversar? Já aconteceu muitas vezes da gente conversar a respeito. Para a relação ser bacana, o jeito é você sentar e conversar. Não é à toa que estamos juntos há 25 anos, né? Dou graças a Deus por estar com ela há 25 anos. É difícil um casal assim. Estou casado há 25 anos e ainda beijo a Jane na rua. As pessoas se surpreendem, ficam encantadas.

Na letra de “Pérola Negra” tem uma cantada ótima: “Tente entender tudo mais sobre o sexo/ pegue o meu livro, querendo te empresto”. Você foi muito mulherengo? [Risos] Não, sou muito tímido. Mesmo solteiro, não tive muitas namoradas. Fiquei três anos casado com a mãe do Hiran. Nos separamos, namorei pouco, mas logo depois conheci a Maria da Glória [segunda mulher de Melodia]. Quando nos separamos, viajei para Salvador e conheci a Jane…

Você parece mesmo ser bem quieto, bem tranquilo. Na música “Congênito”, tem um trecho que diz “se a gente falasse menos, talvez compreendesse mais”. No seu último disco, Retrato do Artista Quando Coisa, você musica um poema do Manoel de Barros com o verso “os silêncios me praticam”. Sou bem calado, não falo muito, não. A não ser que esteja de ressaca! [Risos] Aí, saio ligando para os amigos todos, é uma festa.

Sua ressaca é assim? É uma ressaca leve, não é ressaca daquelas “aiiiii” [coloca a mão na cabeça]. É uma coisa bem mais… elegante. Se é que existe ressaca elegante! [Risos]

No palco você se transforma, tem uma performance furiosa. É outra coisa! O palco é um espaço que domino, fico cheio de garra. Muitas vezes saio do hotel meio dormindo, mesmo no camarim ainda fico assim… Quando subo no palco é uma coisa divina, que me faz muito bem.

É uma concretização do reconhecimento que às vezes falta? Claro. Agora mesmo em São Paulo fiquei arrepiado com a recepção do novo disco, do novo show. Na cama do hotel fiquei sabendo por telefone que estava lotado. Ai, maravilha.

Essa sensação de ser admirado é fundamental ou você faria música mesmo se fosse para nunca mostrar a ninguém? [Silêncio] Compor para não mostrar para ninguém não dá. Quero mostrar cada trabalho que faço, cada coisa que componho. Estar no palco mostrando meu trabalho, depois de 30 anos de carreira, é a maior alegria que posso ter, legal pra caramba.

E os 50 anos de idade, foram difíceis de encarar? Não, não. Acredito que vou lidar bem com o envelhecimento. Tenho expectativas muito legais de uma vida serena e, se possível, até mais distante do Rio. Estamos construindo uma casa em Penedo, um lugar maravilhoso. E nada de cortar coisíssima nenhuma do envelhecimento, acho um horror pessoas que se cortam sem deixar as marcas de seu tempo na Terra.

O que você faz para continuar magrelo como aquela sua música? De vez em quando ando, faço esteira, mas acho um saco. A minha mesmo é futebol e alimentação balanceada. Há algum tempo não faço exercício nenhum, a não ser no palco. Perco litros e litros de água durante um show. Talvez seja isso que esteja segurando minha onda.

De onde saiu o seu jeito de dançar? É uma coisa espontânea. No morro tinha muita festa, era impossível não dançar. Eram os anos 60, época do twist. Nunca ensaio um passo ou uma dança, é sempre na hora. Fica mais interessante, surpreende mais, até a mim mesmo. Só que exige um preparo físico terrível!

Em que posição você joga bola? Ponta-direita, um ponta razoável.

Você bate bola no campo do Chico Buarque? Lá é aos sábados. É bacana, muitos amigos, às vezes um jogador dá uma canja. Sem pancadaria, não vão pessoas estranhas. Ronaldinho mesmo um dia estava jogando lá, ele e a mulher, a mulher também jogou. Teve uma época que eu tinha um time, o Estácio Holly Futebol Clube. Uma rapaziada do Estácio, que escolhi a dedo. Nosso time só ganhava de nove a dois, dez a três, o Chico ficava injuriado. Eu era o juiz.

Juiz?! Meu time era melhor que eu, então… Mas até tem um tempo que não jogo futebol.

Por quê? Preguiça mesmo. E agora, viajando com show, chego pregado. Quero mais é descansar ou ver uma televisão, ir ao cinema. Gosto muito de cinema, ontem mesmo fui assistir a Terra de Ninguém [que ganhou o Oscar de filme estrangeiro]. É bacana, gostei. Agora, a show vou pouco, pouquíssimo. Nem sei qual foi o último.

E música? Ah, ouço direto, é outro prazer que tenho. É engraçado, ouço Elza Soares há anos, são canções que ainda fazem com que eu… [arregala os olhos] Cássia Eller e Ângela Ro Rô também. Mas tem discos que recebo de certos artistas que nem ouço, sabia? Não vou nem comentar pra não ficar mal. Para a rapaziada moderna não tenho muito saco, numa boa. Tenho discos da velha-guarda que escuto direto, tipo Anísio Silva. Chet Baker ouço bastante, principalmente quando estou melancólico.

Você já passou por algum período de depressão? Depressão não, mas já fiquei muito triste com esses meus trabalhos que não acontecem. Uma obra que você faz, que você passa noites em claro no maior entusiasmo, pensa até em termos de seu disco atravessar o mundo… O barato é que você compõe, velho. Isso revigora tanto, sabia? Nunca precisei fazer análise.

Só há 3 anos, com o Acústico ao Vivo, que reúne duas fórmulas muito comerciais, você conseguiu vender mais de 100 mil cópias. Qual é a sensação quando o público não responde a um disco seu? Procuro não ficar deprimido, mas que é uma coisa muito negativa, é. Tenho discos que achava bacanas, como Pintando o Sete e 14 Quilates, que foram lançados e deixados de lado. É como se Luiz Melodia fosse um hobby das gravadoras, que depois dispensam o cara. É engraçado porque tinham pessoas que não vendiam coisíssima nenhuma, mas continuavam contratadas. Essa coisas era estranha, velho. Essa relação comigo.

E sua relação com a mídia? A Globo já ajudou duas músicas suas a virarem sucessos nacionais. “Juventude Transviada” e sua versão de “Codinome Beija-Flor”, que tocaram nas novelas Estúpido Cupido e O Dono do Mundo. Agora que você mora aqui do lado da sede da emissora não aparece mais nos programas dela. Briga de vizinhos? Não sei. Uma vez o [diretor da Globo] Maurício Sherman me agrediu violentamente. Eu fui tocar ao vivo. Naturalmente comecei a dançar, e ele ficou puto porque eu estava saindo do enquadramento: “Seu filho da puta”. Foi uma confusão, o cara me agrediu dessa maneira. Agora estão me chamando, mas fiquei um tempo sem fazer coisas…

Você se sente desperdiçado? Rapaz, às vezes passa na minha cabeça um desperdício, não só meu como de outros artistas. Cassiano é um talento, o Cláudio Zoli também… [Pausa] Não me sinto totalmente desperdiçado, não. Tenho 30 anos de carreira, sempre em atividade. Nunca fiquei totalmente desaparecido. Ainda atuar depois de tanto tempo é, porra, legal pra caramba.

Além dessa satisfação, o que mais a música proporcionou para você? A liberdade de fazer o que quiser, quando quiser. Não assino contrato há não sei quantos anos, faço um disco e tchau. Essa liberdade é muito bacana. Em relação a coisas materiais… [Ri] Não tenho muita coisa, mas acho que tenho o suficiente. Mas se houver oportunidade de ter mais coisas é lógico que quero. E, principalmente, que meu trabalho seja reconhecido, fora e dentro do Brasil, cada vez mais, cada ano mais. Não faço muito esforço, mas trabalho para isso acontecer.

Você busca o sucesso? Eu me assusto com o sucesso, sempre me assustei. É constrangedor demais. Você fica na obrigação de estar toda hora na televisão, toda hora não sei onde, passa na rua, é aquela coisa chata… Gosto de ter uma vida simples, sou um pessoa muito simples. Talvez até pague um preço por isso.

Qual você acha sua posição na música brasileira? Acho que estou bem, que sou intocável.

Intocável porque não toca no rádio ou porque está acima de qualquer suspeita? [Ri] Não toco com frequência, mas toco, sim. Acho que estou, sim, acima de qualquer suspeita.

Créditos

Imagem principal: Christian Gaul

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