Para fazer um ajuste conceitual do discurso futebolístico, nosso colunista escreve os dois primeiros verbetes do que pode vir a ser um pequeno dicionário filosófico do esporte
Por Francisco Bosco*
O escritor Paul Valéry costumava dizer que antes de se proceder a uma investigação teórica é recomendável “uma limpeza da situação verbal”. Pouco visitada pelos filósofos, a área discursiva do futebol anda precisando de um bom ajuste conceitual para clarificar suas figuras de jogo. Eis aqui então os dois primeiros verbetes do que, com o tempo, pode vir a ser um pequeno dicionário filosófico do futebol.
• O gol contra – Outro dia ouvi um comentário do acaciano ex-juiz José Roberto Wright, dizendo que o juiz Leonardo Gaciba errara ao dar um gol para o atacante do Santos, quando teria que o ter atribuído a um zagueiro do Atlético Mineiro, que assim teria feito um gol contra.
Mesmo sendo o comentador de replay que é, Wright ainda assim errou, porque o erro é filosófico, irredutível a todos os ângulos e imagens. No lance em questão, o atacante do Santos cabeceia para o gol, a bola desvia no defensor atleticano e vai morrer no fundo das redes, enganando o goleiro do Galo. Há uma tendência politicamente correta em curso que consiste em o juiz evitar ao máximo reconhecer um gol como gol contra.
Bobagem, gol contra é gol contra, mas é preciso saber discernir entre um erro e um acidente, uma falha de ordem técnica e uma fatalidade sem culpa. O que define essa diferença é o caráter ativo ou passivo do jogador suspeito de ter feito o gol contra. Por exemplo, se, na cobrança de um escanteio contra o seu time, o defensor tenta tirar a bola de cabeça e acaba metendo-a dentro do próprio gol, eis um gol contra inapelável. Mas, por outro lado, se um atacante chuta e a bola desvia num defensor antes de entrar, eis uma fatalidade, um golpe de azar, um mau dia do horóscopo – gol a favor, defensor absolvido.
• O chute de bico – Do ponto de vista técnico, o chute de bico é um procedimento dependente do contexto, da situação concreta de jogo em que o jogador opta por seu emprego. Assim, ele pode ser tanto um índice de precariedade técnica – se for utilizado numa situação em que não é recomendado – quanto um recurso técnico de grande eficácia, recurso fundamental dos jogadores de alto nível, sobretudo atacantes. Dessa sua ambivalência constitutiva é que nascem os mal-entendidos a respeito de seu valor técnico. Mas não tem mistério algum: o chute de bico deve ser utilizado nas situações, e somente nelas, em que o jogador não dispuser de espaço suficiente para “armar” o chute com o peito, a parte interna ou externa (trivela) do pé. Esses últimos procedimentos são geralmente recomendáveis porque garantem ao chute maior precisão e potência, mas eles requerem um posicionamento do corpo e um movimento da perna a desferir o chute que precisam de mais espaço para ser bem executados.
Quando a margem de manobra é pequena, quando um ou mais defensores estão colados no atacante, de forma que este não possa “armar” o chute, levando a perna bem para trás, de onde virá a força do petardo, resta ao atacante o recurso do chute de bico, que não necessita de movimentos amplos de perna nem de posicionamentos equilibrados do corpo. O chute de bico é como o golpe que a Noiva aprende em Kill Bill 2: deve ser desferido em espaços exíguos – e tem a marca da fatalidade. O chute de bico é ainda sob um outro aspecto uma arte dos espaços escassos: só se deve utilizá-lo nas proximidades do gol, pois apenas em curtas direções podese garantir sua precisão. De dentro da área, ele é reto, direto e inapelável; a longa distância, é provável que saia pela lateral.
*FRANCISCO BOSCO, 32, é escritor, ensaísta e letrista, autor de Banalogias e Da Amizade. Seu e-mail é franciscobosco@terra.com.br
O escritor Paul Valéry costumava dizer que antes de se proceder a uma investigação teórica é recomendável “uma limpeza da situação verbal”. Pouco visitada pelos filósofos, a área discursiva do futebol anda precisando de um bom ajuste conceitual para clarificar suas figuras de jogo. Eis aqui então os dois primeiros verbetes do que, com o tempo, pode vir a ser um pequeno dicionário filosófico do futebol.
• O gol contra – Outro dia ouvi um comentário do acaciano ex-juiz José Roberto Wright, dizendo que o juiz Leonardo Gaciba errara ao dar um gol para o atacante do Santos, quando teria que o ter atribuído a um zagueiro do Atlético Mineiro, que assim teria feito um gol contra.
Mesmo sendo o comentador de replay que é, Wright ainda assim errou, porque o erro é filosófico, irredutível a todos os ângulos e imagens. No lance em questão, o atacante do Santos cabeceia para o gol, a bola desvia no defensor atleticano e vai morrer no fundo das redes, enganando o goleiro do Galo. Há uma tendência politicamente correta em curso que consiste em o juiz evitar ao máximo reconhecer um gol como gol contra.
Bobagem, gol contra é gol contra, mas é preciso saber discernir entre um erro e um acidente, uma falha de ordem técnica e uma fatalidade sem culpa. O que define essa diferença é o caráter ativo ou passivo do jogador suspeito de ter feito o gol contra. Por exemplo, se, na cobrança de um escanteio contra o seu time, o defensor tenta tirar a bola de cabeça e acaba metendo-a dentro do próprio gol, eis um gol contra inapelável. Mas, por outro lado, se um atacante chuta e a bola desvia num defensor antes de entrar, eis uma fatalidade, um golpe de azar, um mau dia do horóscopo – gol a favor, defensor absolvido.
• O chute de bico – Do ponto de vista técnico, o chute de bico é um procedimento dependente do contexto, da situação concreta de jogo em que o jogador opta por seu emprego. Assim, ele pode ser tanto um índice de precariedade técnica – se for utilizado numa situação em que não é recomendado – quanto um recurso técnico de grande eficácia, recurso fundamental dos jogadores de alto nível, sobretudo atacantes. Dessa sua ambivalência constitutiva é que nascem os mal-entendidos a respeito de seu valor técnico. Mas não tem mistério algum: o chute de bico deve ser utilizado nas situações, e somente nelas, em que o jogador não dispuser de espaço suficiente para “armar” o chute com o peito, a parte interna ou externa (trivela) do pé. Esses últimos procedimentos são geralmente recomendáveis porque garantem ao chute maior precisão e potência, mas eles requerem um posicionamento do corpo e um movimento da perna a desferir o chute que precisam de mais espaço para ser bem executados.
Quando a margem de manobra é pequena, quando um ou mais defensores estão colados no atacante, de forma que este não possa “armar” o chute, levando a perna bem para trás, de onde virá a força do petardo, resta ao atacante o recurso do chute de bico, que não necessita de movimentos amplos de perna nem de posicionamentos equilibrados do corpo. O chute de bico é como o golpe que a Noiva aprende em Kill Bill 2: deve ser desferido em espaços exíguos – e tem a marca da fatalidade. O chute de bico é ainda sob um outro aspecto uma arte dos espaços escassos: só se deve utilizá-lo nas proximidades do gol, pois apenas em curtas direções podese garantir sua precisão. De dentro da área, ele é reto, direto e inapelável; a longa distância, é provável que saia pela lateral.
*FRANCISCO BOSCO, 32, é escritor, ensaísta e letrista, autor de Banalogias e Da Amizade. Seu e-mail é franciscobosco@terra.com.br