por Henrique Goldman
Trip #186

Ao proibir as mulheres de usar a burca, a França se iguala ao Irã, que obriga o uso do véu

Nós, filhos dos anos 60, assistimos com horror à derrocada de tantas conquistas libertárias. Os entusiastas da contracultura jamais poderiam imaginar que a esta altura do campeonato tanta gente voltaria – e de forma tão radical e intolerante – a abraçar as religiões. Para complicar as coisas, como reação a esse neofundamentalismo religioso, nasce uma outra fé. Uma fé que não quer ser e não sabe que é religião: a religião do racionalismo ateu, do secularismo ocidental que tantas vezes se comporta com a intolerância digna do Talibã.

Desde 2004, um decreto-lei fascistoide proíbe nas escolas francesas o uso do hijab, o véu tradicional usado para cobrir a cabeça das mulheres islâmicas. Agora, um novo projeto de lei proposto pelo presidente Sarkozy pretende banir totalmente, em todo e qualquer espaço público, o uso da burca, o véu que também cobre o rosto das religiosas.

Um terceiro véu hipócrita mal esconde o preconceito de quem favorece essa lei alegando defesa dos direitos da mulher e falsos princípios democráticos. O argumento é mais ou menos assim: a religião muçulmana degrada as mulheres ao forçá-las a cobrir a cabeça e o rosto. Cabe ao heroico Estado francês defendê-las.

Se imposto, o véu pode realmente ser um fator degradante para uma mulher e é uma coisa que não me atrai. Mas é igualmente degradante tolher uma mulher – ou mesmo um homem – da liberdade de escolha, do livre arbítrio para vestir-se como bem quiser.

Ao proibir o uso do véu, a França de Sarkozy ameaça igualar-se – na intolerância e na burrice – ao Irã de Ahmadinejad, que obriga o uso do véu. É incrível como quase sempre os inimigos se parecem tanto. Esse alarmante caso francês é só um exemplo da crescente intolerância europeia contra tudo o que é estrangeiro ou diferente.

Gulags soviéticos

Em nove países europeus é considerado crime, punível com prisão, negar o fato de que durante a Segunda Guerra Mundial houve o holocausto – o extermínio de 6 milhões de judeus nas mãos dos nazistas alemães. Criou-se até um termo em inglês para esse tipo de contraventor: Holocaust Denier, ou Negador de Holocausto.

O fato de que o genocídio realmente ocorreu é comprovado em mil maneiras, para quem quiser ver. A coisa me toca pessoalmente, pois minha própria avó perdeu sua família inteira em câmaras de gás. Mas por que não é crime negar a escravidão? Ou negar os Gulags soviéticos e o extermínio dos tútsis em Ruanda?

Muito mais do que os negadores de holocausto e burcas, há de se temer as leis criadas para censurar. Dizer ou vestir alguma coisa, por mais absurda que seja, não pode ser crime. É sacrossanto o direito – inclusive o dos imbecis, dos racistas, dos hipócritas, dos nossos piores inimigos – de se expressar. Sem defender esse direito, ficamos cada dia mais parecidos com eles.

 

*HENRIQUE GOLDMAN, 47, cineasta paulistano radicado em Londres, é diretor do filme Jean Charles. Seu e-mail é hgoldman@trip.com.br

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