Karim Aïnouz lança o premiado documentário Aeroporto Central

por Nathalia Zaccaro

Com os cinemas fechados, filme estreia diretamente nas plataformas de streaming e diretor reflete sobre a angústia de um futuro incerto

Depois do enorme sucesso do longa A vida invisível, o cineasta Karim Aïnouz se preparava para estrear nos cinemas o documentário Aeroporto central, vencedor do prêmio da Anistia Internacional da Mostra Panorama, no 68º Festival de Berlim. Os planos do diretor — assim como os de quase todo mundo — foram interrompidos pela pandemia da Covid-19, que fechou as salas de cinema por tempo indeterminado. O filme é lançado hoje, 24, direto nas plataformas de streaming.

Aeroporto central acompanha dois refugiados do Oriente Médio que, enquanto aguardavam respostas do governo alemão sobre seus pedidos de asilo, viveram em abrigos de emergência construídos em antigos hangares de um aeroporto desativado no centro de Berlim. "As pessoas no filme não têm nada, só o futuro, mas que é completamente incerto e sobre o qual elas não têm inferência. Me interessava muito a paciência frente ao desconhecido", diz Karim.

Apesar de ter sido produzido em um contexto totalmente diferente do atual, as reflexões provocadas pelo documentário sobre expectativa e futuro refletem de maneira profunda as angústias despertadas pela pandemia. "Quando foram abortados os lançamentos em salas de cinema, fiquei incomodado. Nunca lancei nada diretamente em streaming, mas agora pode ser interessante. A situação que estamos vivendo e a que os personagens enfrentaram são semelhantes, mesmo que por razões distintas", diz o diretor. 

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Radicado na capital alemã, Karim teve seus atuais projetos cancelados por conta do isolamento, mas, ao contrário dos profissionais brasileiros, recebeu apoio federal.  "Há duas semanas a indústria criativa alemã inteira recebeu ajuda financeira do governo. Esse apoio existe por uma razão clara: o setor criativo tem papel central no processo de reimaginar o futuro."

Trocamos uma ideia com ele sobre o drama dos refugiados, as diferenças entre produzir cinema documental e de ficção e os impactos da pandemia na indústria cultural. Se liga:

Trip. Por que a história deste aeroporto te interessou?

Karim. Ela é fascinante. Ele foi construído na década de 20 e foi importante durante o período nazista. Depois da guerra, virou um lugar que permitia que comida chegasse à cidade. Lembro de ter viajo por ele em 2004 e fiquei impressionado com a arquitetura e a dimensão. Em 2010, quando fui visitá-lo de novo, tinha sido desativado e virado um parque. Meu primeiro encantamento foi com essa perspectiva de um lugar de aviação militar, depois civil e de que uma hora para outra foi conquistado pelos cidadãos e virou um espaço público de recriação. Mas depois fiquei impressionado quando os hangares dos aviões militares foram transformados em abrigo para pessoas que escapavam da guerra no Oriente Médio, da Síria, especialmente. Isso me despertou a vontade de fazer o filme. A ironia da história de uma arquitetura construída para uma coisa e utilizada para outra completamente distinta, quase oposta. Mas também foi por uma indignação pela maneira como a mídia estava cobrindo as pessoas que estavam fugindo do conflito. Eu fiquei feliz pela maneira como a Alemanha acolheu as pessoas, mas incomodado com a grande mídia os tratando como se fossem uma massa de vírus infectante que estava entrando no continente europeu. Eu tentei contar o meu lado da história através de dois personagens tentando uma vida nova, deixando tudo para trás. 

Como foi o contato com os personagens? No primeiro momento, ninguém queria falar na frente da câmera. As pessoas estavam exaustas de serem entrevistadas. Fiquei muito tempo visitando abrigos e conhecendo essas pessoas, criando laços de troca e de amizade, até começarmos a trabalhar juntos. Eles queriam ser documentados, tinham esse desejo e isso foi se tornando mais necessários porque crescia a minha impressão de que as pessoas que estavam chegando estavam sendo vilanizadas. O ápice foi em 2016, quando houve um ataque terrorista a um mercado e o primeiro suspeito foi um cara que morava no abrigo e estava correndo para pegar o metrô. Não tinha sido ele, mas o abrigo foi invadido pela polícia. Foi um momento muito violento.  A presunção de culpa que existe sobre homens jovens árabes, solteiros era algo que já estava presente no documentário e tentei sublinhar isso ainda mais. 

O filme reflete muito sobre essa espera por um futuro incerto. Ideia que está bastante viva em nossas rotinas durante a pandemia. Você percebe algum paralelo? As pessoas no filme não têm nada, só o futuro, mas que é completamente incerto e sobre o qual elas não têm inferência. Me interessava muito a paciência frente ao desconhecido. Das três mil pessoas que estavam ali nenhum tinha garantia de que poderia ficar na Alemanha para construir uma vida nova, mas existia uma serenidade e uma no futuro impressionantes. Isso pode ser uma lição bonita pra gente testemunhar com o documentário, apesar de não ter sido essa a intenção quando eu fiz. Quando foram abortados os lançamentos em salas de cinema, fiquei incomodado. Nunca lancei nada diretamente em streaming, mas pode ser interessante. A situação que estamos vivendo e a que os personagens enfrentaram são semelhantes, mesmo que por razões distintas

A vida invisível, seu último filme, é uma ficção superproduzida, muito diferente de Aeroporto central. O que te interessa nesse formato mais simples de documentário? Gosto muito de documentário porque é quase uma reação física a um estado de coisas. Para mim, esse filme é fruto da indignação que eu estava sentido pela maneira como os solicitantes estavam sendo tratados. É uma reação física de pegar a câmera e ir lá documentar uma situação. Para a ficção cinematográfica, você precisa de toda uma estrutura entre você e o filme. O documentário te permite um gesto mais visceral. 

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Como documental e ficcional se misturam na sua obra? Sempre trabalhei com terrenos híbridos. Meu primeiro filme foi sobre a minha avó, mas tinha um elemento de ficção. Viajo porque preciso volto porque te amo é documental, no sentido de que nunca fizemos um take 2 de nenhum plano. Fiz também um outro documentário na Argélia sobre as manifestações pró-democracia. Eu tenho navegado entre ficção e documentário. Acho que um alimenta o outro. A maneira como você conta uma história de ficção ajuda a organizar o relato documental, que traz oxigênio para a ficção e a coloca em perspectiva. É bom ver que você não precisa complicar tanto as coisas, perceber que dá pra fazer um filme com três pessoas na produção e uma na montagem. Uma coisa é inspiradora para a outra. Escolhi os protagonistas do documentário a partir da experiência de escolher ator para ficção, se tem fotogenia, carisma, como é a relação com a câmera. Tanto faz se é personagem de ficção ou não, sempre é um corpo e uma alma na frente da câmera. Sempre faço um teste de elenco em que peço para a pessoa olhar em silêncio para a câmera por três minutos e acho este o teste mais certeiro.

Como está sendo a sua quarentena? Muito privilegiada. A maneira como Angela Merkel tem conduzido as coisas na Alemanha é impressionante. É um dos países com o menor índice na relação entre infectados e óbitos, isso traz uma calma. A Alemanha  passou por momentos horrorosos de guerra e destruição e demonstra uma maturidade que tem ajudado a entender a situação. A partir desse lugar de privilégio, minha rotina tem sido sobre pensar em como vai ser daqui pra frente, como a gente vai continuar vivendo. E isso é muito diferente do que está acontecendo na maior parte do mundo, onde as pessoas estão vivendo o pânico e desespero por conta desse vírus que é muito mais nocivo do que a gente poderia imaginar. O que tem acontecido no Brasil, por exemplo, é de uma irresponsabilidade criminosa. E o que acho mais complicado é como a elite brasileira tem compactuado com essa insanidade.

O setor cultural foi duramente atingido pela crise. Isso te impactou? Será que eu estaria falando com você agora com essa calma se eu não tivesse como pagar meu aluguel do mês que vem? Acho que eu não estaria nem falando, estaria fazendo outra coisa. Há duas semanas, a indústria criativa alemã inteira recebeu ajuda financeira do governo. Eu recebi o auxílio, já que tive todos os meus projetos do ano cancelados. Esse apoio existe por uma razão clara: o setor criativo tem papel central no processo de re-imaginar o futuro. 

E o que você tem pensado sobre o assunto? Tenho lido muito sobre o que pode ser o mundo daqui pra frente. Pensando sobre quais histórias e relatos vamos querer ver depois desse momento e refletido sobre o papel do cinema. Acho que ele vai voltar mais forte do que nunca, não só como forma de expressão, mas como consumo. Acho que assim que a gente puder vamos estar todos dentro de uma sala vendo um filme com calor humano. Uma coisa interessante que tem acontecido nas últimas semanas na Alemanha e nos Estados Unidos é a volta dos drive-ins, que estão bombando. Não acho que o cinema vai virar só streaming, pelo contrário. Acho que vamos querer estar juntos o máximo que pudermos. 

Créditos

Imagem principal: Juan Sarmiento/Divulgação

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