O documentário ”Framing Britney Spears”, produzido pelo The New York Times, explora as consequências nefastas da fama da estrela pop nos anos 2000
É uma experiência intensa assistir ao novo documentário da Hulu “Framing Britney Spears”, em especial se você, assim como eu, é da geração que foi o público-alvo da cantora no fim dos anos 1990 e início de 2000. A produção do The New York Times não revela nenhum fato novo, mas a edição em ordem cronológica provoca uma bem-vinda reflexão sobre misoginia na cultura de celebridade.
Em 1998, Britney Spears alcançou a fama do dia para a noite aos 16 anos com Baby One More Time, até hoje um dos singles mais vendidos da história. A canção fora antes oferecida pelo compositor Max Martin a outros intérpretes, como Backstreet Boys, Five e TLC. O documentário argumenta que havia na indústria o consenso que meninas não vendiam – o que não é exatamente verdade, vide o sucesso estrondoso das Spice Girls. Tampouco era um problema comercial atrelado a uma jovem estrela feminina solo. Alanis Morissette, então com 21 anos, bateu recorde de vendas com as canções raivosas e sexualmente carregadas de seu álbum de estreia, Jagged Little Pill. Já Britney foi moldada para incorporar as contradições da feminilidade padrão americana, insinuante porém dócil, virgem porém sexual.
Essa visão tem origem no puritanismo religioso cristão que enxerga as mulheres como putas ou santas – o famoso “madonna-whore complex”, fenômeno observado por Sigmund Freud. A mulher ideal precisa constantemente se equilibrar entre esses dois extremos, recatada sem ser pudica, sensual sem ser libertina. Marilyn Monroe, outro ícone com destino trágico, incorporava bem essa dicotomia, com curvas de mulher e voz de bebê. “Olhe para esse rosto, poderia pertencer a uma criança de cinco anos de idade”, disse o ator e diretor Laurence Olivier sobre Monroe.
Toda a obra de Britney é trabalhada neste eixo que é visto de forma mais evidente em I’m Not a Girl, Not Yet a Woman. É desse mesmo álbum a faixa I’m a Slave 4 U, escolhida para sua mais emblemática apresentação ao vivo, no MTV Video Music Awards de 2001. Ali, Britney versa sobre sua pouca idade enquanto performa uma dança insinuante com uma cobra nos braços. Mais adiante, o tema também reverbera no videoclipe de If U Seek Amy (2008), que intercala imagens de uma suruba com a vida conservadora de uma dona de casa. Se Alanis Morissette mostrava uma visão subversiva do sexo para suas jovens fãs, Britney representava a sexualidade hegemônica, não-ameaçadora, calcada no olhar masculino.
Ainda assim, não foi o suficiente para que os jornalistas poupassem Britney. No documentário, podemos ver os inúmeros comentários invasivos e sexistas que permearam sua carreira antes mesmo que ela fosse maior de idade. Aos dez anos, durante um show de talentos, o apresentador com idade para ser seu avô pergunta: “Você tem namorado? Você seria minha namorada?”. Anos depois, já adolescente e famosa, querem saber sobre sua virgindade, os seus peitos, as possíveis cirurgias plásticas ou suas roupas curtas demais. O slut-shaming era explícito e constante.
Em 1999, Britney posou para a capa da Rolling Stone, fotografada por David LaChapelle: sutiã, microshorts, suéter de zíper aberto, deitada na cama, segurando um boneco Teletubbie. Em suma, uma ninfeta, a Lolita dos sonhos do Humbert Humbert do romance de Vladimir Nabokov. Na época, Britney declarou: “Bem, sou uma menina, é normal que eu queira me sentir sexy, isso faz parte do que é ser uma menina”. Em 2003, a cantora articulava esse episódio de outra forma para uma entrevista à GQ: “David LaChapelle me enganou: ele veio, fez as fotos, foi muito legal, mas eu não tinha ideia do que eu estava fazendo, afinal, eu tinha 16 anos. Eu estava no meu quarto, com um pequeno suéter, e ele pedia para tirar um pouco mais do suéter. Eu era tão ingênua, eu realmente gostava de bonecas, na minha cabeça era apenas isso, eu com as minhas bonecas. Hoje eu olho para trás e penso: que diabos foi isso?!”
O limbo etário imposto à Britney se estendeu até mesmo quando ela já havia alcançado o principal marco da vida adulta, o casamento com filhos. Mas, agora, a situação se invertia e, de repente, ela era uma criança incapaz de comandar a própria vida. Os paparazzi estavam sempre à espreita em busca de uma falha parental. Britney dirige o carro com o filho no colo sem cinto de segurança: irresponsável. Britney segura ao mesmo tempo o bebê e um copo de vidro, e tropeça: perigo. A narrativa propulsionada pelos paparazzi culminaria na perda da guarda das crianças e na decisão judicial que colocou seu pai como responsável por tomar conta de suas decisões pessoais e financeiras. Em 2008, Britney tinha 26 anos e havia perdido por completo o controle de sua vida. Desde então, seus fãs criaram o movimento #FreeBritney – tema principal do documentário. Afinal, como uma mulher adulta que ainda é ativa e bem sucedida no trabalho pode ser considerada incapaz? E não há conflito de interesses quando a própria existência da tutela garante grandes quantias de dinheiro aos advogados responsáveis pela decisão do caso?
A imagem de Britney Spears como a princesinha do pop estava intacta até o término de seu namoro com Justin Timberlake, em 2002. O cantor entendeu que tinha em suas mãos a oportunidade perfeita para sua promoção pessoal – e deu certo, hoje é uma figura respeitada, longe do seu passado no N’Sync. Em Cry Me A River, Timberlake optou por realizar um videoclipe em que uma sósia de sua ex-namorada faz papel de vilã. Não satisfeito, ele a ridicularizou no palco de uma premiação e fez comentários vulgares sobre a vida íntima do casal, ambos sob aplausos do público.
Em 2003, Britney foi entrevistada pela respeitada jornalista Diane Sawyer. Ali, ela foi pressionada para contar o que havia feito de errado dentro do relacionamento – porque é lógico que o erro seria de Britney, e não Justin –, foi confrontada pelas capas de revista onde aparecia com roupas curtas, tudo isso justaposto com a declaração da então primeira-dama do Estado de Maryland, Kendel Ehrlich: “Se eu pudesse, daria um tiro em Britney Spears”. Sawyer parece quase concordar com a primeira-dama: “É difícil ser mãe, e manter o mau exemplo longe das crianças”. Britney, aos prantos, pede para parar a entrevista, sem sucesso.
A partir daí, foi como se o superego, o freio psíquico que ajusta os ímpetos e desejos às demandas sociais, tivesse dado lugar ao Id, o elemento psicológico definido pelo princípio do prazer, os desejos mais primitivos, a libido em estado puro. Em 2004, durante um momento impulsivo, casou com seu melhor amigo em Las Vegas – separaram-se em poucos dias. No mesmo ano, casou-se com o dançarino Kevin Federline, com quem teve seus dois filhos, e divorciou-se logo depois do nascimento do caçula. Paris Hilton e Lindsay Lohan passaram a ser suas fiéis companheiras na noite e eram fotografadas com frequência alteradas. No dia seguinte, Britney aparecia no Starbucks de ressaca, meio inchada, sem maquiagem, com as unhas mal feitas, roupas velhas e botas UGG. Naquele ponto, a cantora tinha dinheiro suficiente para contratar uma boa stylist para ajudá-la a performar como alguém da classe alta como era praxe no show business. Mas Britney não quis – ou não conseguiu – encarnar mais esse personagem predestinado a ela.
A princesinha da América era “white trash” de Kentwood, cidade de dois mil habitantes na divisa da Louisiana com Mississipi, coração do “Bible Belt” – região protestante americana batizada, em tradução livre, de Cinturão da Bíblia. Antes, a menina-mulher namorava com o galã quarterback Justin Timberlake; agora, vivia uma relação errática com um dançarino subalterno, exposta no reality show “Britney e Kevin: Chaotic”. Era como se ela se recusasse a ascender de classe mesmo com todo o dinheiro do mundo. Dessa forma, o classismo somava-se à misoginia que permeavam o sentimento do público em relação a Britney. Seu declínio era irresistível: é isso que acontece com más meninas, que desafiam a narrativa, que fogem ao roteiro, que pecam.
Sua busca pela liberdade foi tão desastrada quanto um passarinho que escapa da gaiola e não consegue voar muito longe – e quem poderia culpá-los? É como se Britney estivesse compensando pelos anos que passou correspondendo a expectativas alheias. O padrão de feminilidade ideal é impossível até mesmo para aquela que foi construída para ser seu principal modelo. É simbólico que tenha escolhido raspar a cabeça na frente das câmeras: seu cabelo comprido loiro e liso representa a beleza, a desejabilidade, o privilégio, a branquitude – e, segundo o conto bíblico de Sansão, a força. Wesley Morris, crítico do The New York Times, analisa esse momento no documentário: “Ela está essencialmente dizendo: ‘Não está mais aqui o que vocês estão procurando. Essa pessoa foi embora porque vocês a destruíram’”.
Nesse momento, fica difícil para quem está assistindo ao filme imaginar outro destino para quem encarou esse tipo de trajetória, e tão jovem. Numa entrevista para a Vogue em 2020, Billie Eilish disse: “A fama me fez compreender o surto de Britney Spears em 2007. Eu já me preocupei se eu me tornaria esse estereótipo que é encarado como inevitável para jovens artistas. Ano passado, eu estava passando por um momento muito difícil e fiquei preocupada se eu teria um surto e rasparia minha cabeça”.
Tal qual a personagem retratada, “Framing Britney Spears” parece proporcionar um intencional espaço em branco para que o espectador projete suas teorias afetivas ou sociológicas sobre a artista – e esse texto não é exceção. Nós queremos pensar que não somos mais aqueles que se regozijaram com a derrocada da princesinha do pop, através do lucro ou do consumo. Aqui e ali, pipocam mea-culpa de diversas figuras do entretenimento americano que juram de pés juntos que aprenderam sua lição. A comediante Sarah Silverman, que teve sua cota de comentários maldosos a respeito de Britney, declarou: “Eu peço desculpas. Eu poderia dizer que estava apenas fazendo meu trabalho, mas soaria muito ‘julgamento de Nuremberg’. Por isso, assumo total responsabilidade”.
É difícil que se repita algo parecido com o escrutínio gratuito sofrido por Britney Spears. Mas foram as circunstâncias que mudaram, e não nós. As redes sociais tornaram obsoleta a figura do paparazzi, um veículo é passível de sofrer boicote caso se comporte de maneira insensível, e somos mais bem informados a respeito de doenças mentais. Portanto, não faz sentido apontar culpados, assumir sua responsabilidade pessoal, e tentar ajustar isso com jornalismo mais humano. Isso tudo é paliativo. O que está em jogo é a cultura de celebridade, que é o casamento perfeito entre o capitalismo e a reprodutibilidade técnica.
Recentemente, os paparazzi declararam que não sentem remorso pelo sofrimento que causaram a Britney, afinal, era muito dinheiro – uma fotografia rara podia valer até 500 mil dólares. “Este é um jogo que interessava aos editores, aos agentes, aos artistas e aos produtores. É sistemático”, explica Rick Mendoza, que clicou as infames fotografias do surto de Britney. O formato mudou, a essência continua a mesma, e não é preciso ser um gênio para perceber as consequências psíquicas de uma sociedade obcecada por fama, agora versão 2.0. Em 2005, Britney Spears era um produto que foi descartado assim que perdeu a utilidade. Hoje, talvez faça mais sentido substituir a hashtag #FreeBritney por #SomosTodosBritneySpears.
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