Guga Chacra: "Ninguém está a salvo"

por Fernanda Nascimento

O jornalista e correspondente da Rede Globo em Nova York fala sobre o coronavírus, a sensação de insegurança e as transformações que nos esperam

Guga Chacra participou da cobertura de conflitos na Síria e tragédias como o terremoto no Haiti, mas nunca se sentiu tão inseguro quanto agora. “Eu moro longe há muito tempo e viajei bastante. Quando fiquei um ano sozinho no Oriente Médio, em alguns momentos dava uma sensação de solidão. Mas você sempre tem uma opção nessas circunstâncias: ir embora", diz o jornalista. “É uma sensação de segurança muito grande. Mas agora ninguém mais tem essa sensação. Você está, de certa forma, isolado”.

Em meados de março, Guga se emocionou na bancada do programa Manhattan Connection, na GloboNews, ao anunciar a iminência do isolamento imposto em Nova York, cidade onde vive com a mulher e os dois filhos nos Estados Unidos. O correspondente desconfiava que aquela era uma das últimas vezes que poderia ir ao estúdio da Globo, à natação ou levar as crianças de ônibus para a escola. "É aquele momento em que você sabe que, em alguns dias, o mundo vai se transformar", diz o jornalista. Confinado em seu apartamento em Nova York, de onde participa da cobertura da pandemia na Rede Globo, Guga bateu um papo com a Trip.

Você já cobriu conflitos, guerras, desastres. Qual é a diferença em noticiar uma pandemia como esta? Fiz grandes coberturas como repórter: Síria, Gaza, Líbano, terremoto no Haiti. Quando você vai para um lugar desses você sabe aonde dá e aonde não dá para ir. Isso dá uma ideia melhor de proteção. E você sabe que ficará nesta cobertura por um período e depois volta para sua normalidade. Se você está em Damasco, pode cruzar de volta para o Líbano em quarenta minutos. Se quer ir embora de Gaza, é só cruzar para Israel. Você sempre tem uma noção de segurança. E sabe que a maior parte do mundo está em situação melhor do que a que você está. Agora, o mundo, ou grande parte dele, corre risco. Ninguém está a salvo. 

Como é ser jornalista nessa hora? O coronavírus é um assunto que todo mundo está acompanhando neste momento, sem exceção. A gente, que vai noticiar e comentar, tem que estar mais bem informado que a maior parte da pessoas. Não sou especialista nem infectologista, mas preciso estar antenado em relação às políticas adotadas pelos países, como estão as curvas, quais as perspectivas. Eu monito sem parar o número de vítimas no mundo, especialmente na Itália, nos Estados Unidos, na China, na Coreia. Quando eu falo de Oriente Médio, de conflitos ou eleições americanas, são assuntos sobre os quais trago uma bagagem anterior muito grande, de coberturas e matérias que fiz. O coronavírus é novo. Você tem que ficar acompanhando, tentando ler estudos sobre o assunto. O que facilita é saber como é cada governo, quem é o premiê da Índia, por que ele está tomando certas medidas... 

No mês passado você virou notícia nas redes sociais porque se emocionou durante o programa Manhattan Connection. Como se sentiu? Por ser comentarista, tenho um pouco mais de espaço para agir desta forma. Eu também tento ser mais próximo das pessoas. Tem gente que adota um perfil mais reservado. Eu não ligo de falar da minha vida pessoal ou mesmo mostrar os sentimentos numa situação como aquela. E foi espontâneo, não planejei nada. Foi na circunstância da conversa que veio aquele momento. Eu sabia que eram os últimos dias que iria para o estúdio. Sabia que em uma semana minha vida não seria mais a mesma, e que Nova York não seria mais a mesma. Era aquele último momento em que você sabe que, em alguns dias, o mundo vai se transformar.

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Quando você ouviu falar do coronavírus pela primeira vez? Eu tinha escutado um pouquinho na época do Réveillon. Aí veio a história da morte do Soleimani, no Irã, que foi muito grande. E logo depois lembro que vi algo sobre o coronavírus, mandei para os meus editores e falei: acho que vamos falar bastante disso nas próximas semanas. Mas não imaginava que seria algo de dimensão global. O grande susto foi na época do Carnaval, quando houve um crescimento abrupto na Itália. Até então você ouvia falar de um caso em Nova York, uma pessoa que veio do Irã. E aí veio o pânico geral. Mas não se imaginava que ficaríamos nesse confinamento. 

Como você está vivendo o isolamento? Não vou mais para o escritório da Globo e estou trabalhando de casa, como a maior parte das pessoas que podem fazer isso. Então acabo entrando no ar daqui. Claro, sinto falta da interação com os colegas de trabalho, do dia a dia. Mas é importante para a minha saúde e para a deles. Fica em casa! – agora é isso aí. A vida é isso: saio no máximo para ir ao supermercado ou passear bem rápido com o cachorro e fico aqui com meus filhos e minha mulher. Estou me exercitando de casa também. Sempre nadei e obviamente não existe piscina aberta em Nova York. Mesmo que houvesse, não iria.

Sua rotina mudou? É estranho, é bem diferente do trabalho normal. Claro que sinto falta de tudo, mas no final a gente vai se acostumando. Minha rotina é basicamente assim: eu entro no ar mais pro final da tarde, a partir das 17h, 18h de Nova York. Então eu leio bastante de manhã e no horário do almoço, que é quando sai o número de mortos na Itália. Nesse período fico bastante com meus filhos também. E no intervalo entre um programa e outro, depende do dia. Em Nova York a gente tem menos espaço dentro de casa do que no Brasil. Isso tudo pesa, mas ao mesmo tempo você sabe que está todo mundo assim. Claro que tem gente que está no confinamento em situação melhor que a minha – em uma fazenda ou em uma casa grande –, mas ao mesmo tempo têm pessoas que estão em situação muito pior. Todo mundo está nessa, na maior parte do mundo. Na Índia, 1,3 bilhão de pessoas foram colocadas em confinamento. A gente sabe que é o único jeito de evitar que o pico da doença seja muito alto. E que, portanto, quando acabar o isolamento, os hospitais terão como comportar os casos mais graves. Depois você pode ir reduzindo o isolamento paulatinamente. A gente não vai voltar ao 'normal' antigo no médio prazo. Vamos encontrar uma nova normalidade. Vai entrar num novo 'normal', aos poucos, mas os hospitais precisam estar preparados.

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É difícil viver isso distante do Brasil? Eu moro longe há muito tempo e viajei bastante. Quando fiquei no Oriente Médio sozinho por um ano, em alguns momentos dava uma sensação de solidão. Mas eu pensava: se eu quiser ir embora, eu vou agora. Faço check out do hotel, vou para o aeroporto e pego um avião. Então vou ficar, né? Ninguém está me prendendo. Você sempre tem essa opção nessas circunstâncias: ir embora. Morando no exterior, em Nova York, você sabe que qualquer coisa que acontecer no Brasil é só pegar um voo à noite e na manhã seguinte você está em São Paulo – são 4 voos diários. É uma sensação de segurança muito grande. Mas ninguém mais tem essa sensação. Você está, de certa forma, isolado. Isso se aplica aqui e ao Brasil também. Normalmente, em cidades como São Paulo e Nova York, se você tiver um problema de saúde, um acidente em casa, você sabe que pode ir para o hospital e será amparado. Agora, neste período que estamos, ninguém tem essa mesma segurança. Uma pessoa infartada vai ter que disputar respirador com os pacientes da Covid-19. Toda essa redução na segurança é muito dura. 

Como os países têm lidado com a pandemia? Os países da Ásia estavam mais preparados porque tiveram o problema da Sars no ano passado. Japão, Coreia do Sul, Taiwan e Singapura – que é mais fácil porque é uma cidade-Estado extremamente rica. A China conseguiu agir com muita firmeza, mas porque é uma ditadura e acabou impondo determinadas restrições que seriam inaceitáveis em democracias. Na Europa, Espanha e Itália agiram tardiamente e obviamente não conseguiram controlar a epidemia em regiões como Lombardia, no caso da Itália, e Madri, na Espanha. Alemanha, Holanda e outros países da Europa estão controlando de forma melhor. Os Estados Unidos ainda é cedo para dizer, mas há risco de Nova York ser o novo foco global da doença. Quando você passa para a América Latina, o maior problema é o Brasil e o México. No México a situação é gravíssima porque o presidente manda as pessoas se abraçarem. No Brasil os governos estaduais estão agindo bem, mas o presidente está indo na contramão do que fazem os países que obtiveram sucesso. O Brasil corre o risco de ficar como a Itália e têm agravantes de pobreza que podem incrementar o número de mortes. Outros países da América Latina agiram rapidamente. Israel, no Oriente Médio, está indo melhor porque também foi rápido. É complexo porque em alguns lugares não há como testar a população, caso da Síria e do Iêmen. O Líbano testa o que dá e faz o que dá. E no Oriente Médio há ditaduras que têm muito dinheiro, como Arábia Saudita e Emirados Árabes, mas não sabemos se os números são reais. O Irã ninguém sabe, talvez esteja morrendo mais gente lá do que na Itália. Na África está chegando de forma mais devagar e alguns países têm estrutura para lidar melhor, mas há risco de enfrentar epidemias graves.

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O que vai mudar depois disso tudo, no Brasil e no mundo? Eu acho que ainda é cedo para dizer. A discussão do Estado um pouco mais forte, em áreas como a saúde, vai crescer. Isso sem dúvida alguma. Depois deste episódio as pessoas vão ver que as soluções da iniciativa privada não funcionam em crises como esta. Não adianta falar em Estado mínimo. Mesmo no campo econômico, os Estados Unidos estão aprovando um plano de 2 trilhões de dólares para ajudar a economia. Não significa que os países vão virar socialistas. Mas vão querer ter um Estado mais forte do que era. Os países também vão se preparar melhor para os riscos de pandemias. Não faltou quem alertasse sobre isso. O Bill Gates alertou. Agora as pessoas vão levar mais a sério essa questão, vão valorizar mais a ciência. Também vai se ampliar essa coisa do trabalho remoto porque as pessoas vão entender que dá pra muita gente trabalhar dessa maneira, um dia por semana, quem sabe. Uma mãe que voltou da licença-maternidade pode ficar remotamente por um período, por exemplo. E as pessoas vão valorizar muito mais determinadas coisas da vida. 

Vamos mudar os valores? Eu acho que o distanciamento social e muitas outras mudanças vão permanecer por um período longo. Até existir uma vacina eu não imagino as pessoas indo para festas tão cedo, dando aperto de mão, tudo isso vai pesar. Mas isso é questão das pessoas valorizarem mais as coisas do dia a dia, a natureza, entender a importância nesse sentido. Acho que também vamos ter uma consciência maior relacionada ao aquecimento global. Encerrada a crise, a maior parte do que vai surgir será positivo.

Créditos

Imagem principal: Sergio Teixeira Jr. (NYC) e Marcelo Gomes (retrato)

Fotos de: Sergio Teixeira Jr. (NYC) e Marcelo Gomes (retrato)

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