Confinada, Maria Ribeiro está se sentindo uma idiota inútil

por Maria Ribeiro

Ela fala sobre a nóia de ser produtiva em tempos tão insanos: ”Tudo o que eu produzi no primeiro mês do fim do mundo se resumiu a pratos lavados com dignidade e uma paixão platônica pelo Guga Chacra”

Primeiro eu pensei em organizar os livros por editoras. Depois, com medo de não ter essa memória toda (sim, eu tomo ansiolíticos) achei mais prudente não inventar moda e me render à boa e velha ordem alfabética. Três Ana Cristina César mais tarde, angustiada se o correto seria organizar tudo por título ou por autor – e achando extremamente injusta a hierarquia do alfabeto – eu parti pro armário. Minha estante ficaria exatamente como estava, a não ser pela poeta carioca, que acabou ganhando como vizinha a biografia do Freud – mas eu não mudaria nada na geografia dos meus companheiros encadernados. Tudo já estava por demais diferente.

Livros me fazem pensar muito, pensei, já incomodada com a repetição do verbo, tanto no pensamento quanto agora, aqui, no texto. Preciso de uma tarefa mais leve, mais lúdica, algo que me tire, nem que seja por dez minutos, da gravidade em que me encontro. Em que todos nós nos encontramos, desde o começo de março, quando a pandemia entrou com força no Brasil. 

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Ok, vamos lá, armário. Vai dar certo, até porque, ali, já tenho algum método. Sabe a Marie Kondo? Então. A autora japonesa, que escreveu o best-seller A mágica da arrumação, diz que só devemos ter roupas que nos dão alegria e elevam a autoestima, o que pra mim bateu completamente. Nada daquela camisa molinha de ficar em casa, ou do primeiro tênis do seu filho, que hoje mede 1,80m. Quando li esse livro pela primeira vez, em 2015 ou 2016, foi uma verdadeira revolução na minha casa e, consequentemente, na minha vida, já que fiquei só com peças das quais gostava muito. Doei metade das minhas roupas e me dei conta de que 90% da minha existência pode ser contada em uma única calça jeans. Mas eram tempos pré-corona. 

Dessa vez, assim que abri a primeira gaveta – agora uma nova gaveta, já que tudo que é concreto ganhou outra camada, como também tudo que é abstrato – comecei a chorar que nem criança. Cada meia que eu pegava me parecia uma foto de infância, e todas elas me davam alegria, ou algo parecido com alegria, embora quem entrasse no quarto desse de cara com uma cena que parecia (e era) triste, ou pior, patética.

Bom... Dez a zero pro armário, então parti pro banheiro. Eu não sei vocês, mas eu sou do tipo que compra a máscara da Penélope Cruz e a base da Julia Roberts, mas só usa rímel, corretivo, lavanda Johnson e ainda dorme de maquiagem, de modo que fazer uma limpa na bancada não era uma má ideia. Mas eu não consegui.

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E assim como não consegui organizar nem estante nem armário e nem banheiro – depois ainda tentei a cozinha –, também não fui capaz de ler aquele russo que faltava pra não passar vergonha nas rodas de conversa (que saudades das rodas de conversa!). Pior: não fui capaz de me entregar à nenhuma série, atividade que só exige ficar na horizontal. Meu mês de março de 2020 se resumiu a sentir medo, angústia, chorar diante da GloboNews e ficar impressionada com a animação da galera nas lives do Instagram. 

Tudo o que eu produzi no primeiro mês do fim do mundo se resumiu a pratos lavados com dignidade e uma paixão platônica pelo Guga Chacra. Me sinto uma idiota inútil, incapaz de fazer yoga diante do telefone e de "aproveitar esse tempo" pra fazer um filme no iPhone, uma horta na varanda, colocar o papo em dia com as amigas, escrever um romance ou ensinar meu filho a falar francês. No máximo, tenho feito posts xingando o presidente e torcido para que esse vírus cruel  – porém democrático – nos faça ver que a desigualdade brasileira é indecente e diz respeito à todos nós. E que não dá pra deixar nenhuma mensagem de amor pra amanhã.

Créditos

Imagem principal: Arquivo pessoal

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