por André Caramuru Aubert

O surfista Edgar Bischof foi desbravar tubos cascudos num pico virgem que lembra Teahupoo

Basta conversar um pouco com o Edgar Bischof, surfista profissional de Ubatuba, que você percebe: ele é hiperativo. Chega a lembrar um pouco o Cérebro, do desenho animado Pink e o Cérebro: está sempre tramando alguma coisa nova para conquistar o mundo, ainda que o mundo, na maior parte dos casos, esteja bem perto de casa. E teve um dia em que ele pôs na cabeça que, no meio das plácidas e translúcidas águas da baía de Paraty, haveria de ter onda com qualidade. Tinha porque tinha que ter. E não é que Edgar descobriu uma onda cascuda, mas muito boa, onde tudo indicava que não poderia haver onda alguma?

Surf de alma
Surfista profissional é uma atividade em transformação. Eles estão definitivamente virando atletas, com ênfase na coisa da competição, do preparo físico, da busca por manobras radicais que valem pontos em qualquer situação, inclusive nas péssimas ondas que são a regra em quase todo campeonato no Brasil. Mas, na origem, surf era alma, arte, exploração dos próprios limites sem se importar com o limite dos outros, era a busca da onda perfeita, da comunhão com a natureza. O surf de alma é lugar, cada vez mais, dos amadores, dos surfistas de fim de semana. Alguns profissionais, porém, jamais desistem de tentar buscar caminhos mais livres e sobreviver à margem das agruras do circuito – casos, entre outros, da Maya Gabeira, do Everaldo Pato e do Edgar.

Ele viveu seus anos de surfista do tipo atleta de competição e ralou por muito tempo no circuito tentando um campeonato nacional ou um espaço no circuito mundial. Colecionou títulos importantes: foi campeão brasileiro mirim, campeão do Billabong Pró-júnior e, fora do Brasil, alguns de seus resultados foram um nono lugar no seis estrelas de Sunset, no Havaí, e um terceiro em Newquay, na Inglaterra. E, por seis anos, fez parte da elite brasileira do Supersurf, a primeira divisão do brasileiro profissional. Nos últimos tempos, porém, Edgar parece ter perdido a paciência com as competições. Ele sempre gostou de ondas tubulares e de qualidade, adora Sunset e Pipeline. E não se sente mais motivado quando tem que entrar na água, em dias com vento, mar pequeno e mexido, para enfrentar jovens atletas surfando desesperadamente por um lugar ao sol, lugar este que muitas vezes se traduz num patrocínio menor do que um salário mínimo. Entediado, o hiperativo Edgar decidiu que era hora de mudar o foco e procurar ondas boas.

O Taiti é aqui
Todos sabem onde há ondas boas. Mas o Havaí, a Indonésia e o Taiti ficam longe, a viagem não é barata. E o Edgar tinha colocado na cabeça que em Paraty ele encontraria o que queria, então começou a pesquisar. Palavras dele: “Desde pequeno, quando passava por Paraty, sonhava se em alguma ilha existiria a onda perfeita, daquelas que a gente via nos filmes de surf”. Não parecia provável. Paraíso dos adoradores de águas calmas, a região entre Paraty e Angra dos Reis, no litoral sul fluminense, é muito generosa para quem quer passear de barco, mergulhar, freqüentar feiras literárias, beber cachaça, fazer compras, andar por ruas antigas, comer em bons restaurantes, conhecer a casa da mãe do Thomas Mann, olhar o barco do Amyr Klink e, claro, ver gringos no chão e sagüis nas árvores, ambos em pencas. Mas ninguém diria que a baía de Paraty sorriria para um surfista. Se a idéia podia parecer improvável, ela na verdade não era absurda. Para quem não sabe, vai aqui uma breve explicação: o que faz a qualidade de uma onda é, essencialmente, o fundo. O problema do litoral brasileiro é que, na maior parte dos casos, os fundos são de areia, voláteis, e por isso estão sempre mudando com as correntes e as marés, sendo especialmente vulneráveis diante de ondulações potentes. As melhores ondas do planeta ocorrem em picos onde o fundo é duro, de pedra, de coral ou lava vulcânica; ou seja, as ondas podem subir o quanto for que a qualidade da formação será mantida. E, se houvesse ondas nas ilhas e lajes da baía de Paraty, o fundo seria, é óbvio, de pedra. “Um dia, no ano passado, quando passava por Paraty voltando de um campeonato no Rio, me lembrei do velho sonho de infância e decidi dar uma olhada. Entrei com o carro na praia da Mambucaba, perto da divisa com Angra. O mar estava grande e me pareceu que, ao longe, na ponta da ilha de Araraquara, uma onda estava quebrando perfeita.”

“Quando se forma, a onda seca o fundo, e as pedras e os ouriços mostram a cara, loucos para se relacionar com você. E, se você não entrar na terceira braçada, não entra mais” - Edgar Bischof

Tubos perfeitos
A partir desse momento, a hiperatividade de Edgar encontrou uma nova razão de existir: ele passou horas consultando mapas náuticos e analisando ilhas, parcéis e lajes. Em seguida, entrava no Google Earth, tentava entender como as diferentes direções de ondulação poderiam interagir com os acidentes geográfi cos que localizava. Depois de algumas semanas vasculhando os mapas, Edgar encontrou pelo menos cinco picos com potencial. A prioridade número um, claro, era aquela ilha que ele havia visto de longe. E foi para lá que ele foi, assim que o primeiro swell razoável bateu nas praias de Ubatuba, dois meses depois. Como não era uma ondulação muito potente, Edgar foi só para conferir e ter certeza de que tudo não passava de delírio. Depois de 50 min de barco, desde a praia de Tarituba (que a TV Globo deixou famosa como cenário de mais de uma novela), ele contornou a ponta da ilha e se aproximou do pico. Não houve decepção: a onda estava quebrando. Naquele dia ela não estava grande, mas desenhava um perfeito e oco tubo para a direita. Depois desse dia, Edgar voltou lá mais três vezes, avaliando as condições em diferentes direções de swell e experimentando a onda. Algumas vezes foi sozinho, outras levou amigos, como o bicampeão brasileiro Renato Galvão, o campeão mundial sub-16 Wigolly Dantas e os profi ssionais Costinha e Saulo Jr., além do francês Patrick Beven, que veio para Ubatuba com Edgar depois do WQS de Noronha (mas que não surfou, com medo de se machucar e perder as etapas australianas da divisão de acesso do mundial, que aconteceriam na seqüência). E a melhor condição naquele pico, Edgar concluiu, era quando a ondulação batia de sudeste, grande, sem vento, com intervalo acima de 12 s.

Beijo nas pedras
Depois daquela expedição, Edgar decidiu esperar pelas condições ideais para fotografar o pico. Quando entrou um swell mais pesado de sudeste, ele pegou Wigolly Dantas e o fotógrafo Tony Fleury e se mandou para o novo pico, batizado por ele como Ponta das Araras (porque fica na ilha de Araraquara. Vai entender...). As fotos desta matéria mostram, até certo ponto, o que eles encontraram. Até certo ponto, sim, porque elas não conseguem traduzir com exatidão o grau de difi culdade daquela onda. Porque ela é bem perigosa. Curta, muito rápida, muito rasa, muito oca. Com o agravante de ter, poucos metros diante dela, uma costeira esperando pelo surfista que não completar o drop. Ela não permite a menor hesitação. Dropar atrasado ou errar o posicionamento no tubo é beijar as pedras repletas de ouriços, ostras e mexilhões do fundo e da costeira. Perguntei ao Edgar se ele achava que eu poderia dropar a Ponta das Araras. Ele não respondeu, apenas sorriu. Edgar é educado. Eles ficaram três horas por lá. Na primeira hora, Edgar e Wigolly só rodearam, olharam, tomaram coragem. Depois, surfaram. Mas não muito. “De cada quatro ondas em que você rema, você vai em uma e puxa o bico em três. Ela assusta. Quando se forma ela seca o fundo, e as pedras e os ouriços mostram a cara, loucos para se relacionar com você. E, se você não entrar na terceira braçada, não entra mais. A quarta é tarde demais. Ela lembra The Box, na Austrália. A australiana também é rasa, mas não tem a costeira na frente.” Wigolly, que também já surfou ondas cascas-grossas pelo mundo todo, emendou: “Essa onda é mais adrenalina que Teahupoo [que significa ‘praia dos crânios quebrados’], no Taiti. Não é pelo tamanho, pois ela é menor, mas pela formação, velocidade, pouca profundidade e pelas pedras da costeira diante de você”. Entre a remada, o drop e a porta de saída do tubo, não são mais do que 10 s de onda: “Mas a sensação é incrível, é de extrema adrenalina, de superação”. E foi assim que o hiperativo Edgar Bischof encontrou onda boa na baía de Paraty. Mas ele não parou, não ficou satisfeito, não consegue. Já começou a procurar ondas desconhecidas em outros cantos, no Brasil, na costa africana e no Índico, varando noites no Google Earth. Inventou de investigar o litoral da Somália, disputado por piratas e milícias islâmicas, um dos lugares mais perigosos do planeta. Se ele for mesmo, e conseguir fi car vivo pelo menos até tirar as fotos, você verá o resultado aqui na Trip.

 

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