Inimigo público no. 01

por Carlos Nader
Trip #171

O crescimento das doenças causadas pelo homem é o principal problema de saúde dos nossos tempos, como provam as 12 pessoas mortas por dia pela poluição em São Paulo

POR CARLOS NADER*

No mesmo dia em que soube que o tema desta Trip iria ser “longevidade”, eu ouvi duas histórias interessantes.

A primeira, contada pelo curador Marcello Dantas e pela pesquisadora Eloá Chouzal, é o mito fundador de Santa Catarina. Vou resumir aqui. O futuro Estado brasileiro foi “descoberto” por Palmier de Goneville, um nobre aventureiro francês que sai da Normandia em 1504 com uma só nau, L’Espoir (A esperança), e desembarca sem querer na costa catarinense. Na volta à França, o navegador leva consigo o fi lho de um cacique carijó, Iça Mirim. Na viagem o indiozinho sobrevive ao escorbuto, a um ataque de piratas e a um naufrágio no canal da Mancha.

Ele acaba batizado com o nome de Essomeriq e adotado por Goneville. Cresce na Europa, vive lá o resto de seus dias, tendo 14 fi lhos e inaugurando assim a primeira linhagem da nobreza européia a enfi ar o pé na taba. Completamente integrado à sociedade francesa, Essomeriq, ex- Iça Mirim, morre, segundo um atestado de óbito arquivado em Honfl eur, aos 95 anos.

Linda a história. Mas peraí. Alguém vivia até 95 anos no século 16? Não dizem que as pessoas daquela época, ainda mais um índio transplantado, mal passavam dos 40? Não nos contam todo dia que longevidade é uma conquista recente da nossa fabulosa indústria da saúde?

A segunda história que eu ouvi naquele mesmo dia deixa menos dúvidas. E pode ser contada de maneira ainda mais resumida, na própria forma da manchetinha de um oitavo de página do interior do caderno de cidades da Folha de S.Paulo. Na maior capital do país, pelo menos 12 pessoas morrem todo dia por causa da poluição do ar.

São histórias muito diferentes. Uma é anedótica e antiga. A outra resulta de uma pesquisa científi ca atual, que deveria ser manchete de primeira página todo dia. O fato de que uma das maiores capitais mundiais da violência mate o dobro de seus habitantes pela poluição do que pelos assassinatos é, apesar de não produzir nenhum espetáculo midiático, escandaloso. E revoltante, sobretudo no exato momento em que o Brasil simplesmente ignora a lei que previa a substituição de seu diesel lotado de enxofre, 200 vezes mais venenoso que o diesel americano ou europeu.

É verdade que a ciência e seus fi lhotes industriais contribuíram muito para as condições históricas de saúde. Várias doenças foram erradicadas. A mortalidade infantil foi drasticamente reduzida. A sobrevida artificial foi estendida. Estamos levando uma vida estatisticamente mais longeva, mas a idéia de que ela é mais saudável pode ter algo de bem mais mitológico que uma história de navegador francês.

A prática é outra. Se a nossa espécie vem conseguindo algum sucesso no controle da fúria da natureza, venha ela na forma de bactérias ou dinossauros, ventos ou vírus, parece também que o homem tem sido bastante bem-sucedido em transformar-se no maior perigo para a própria saúde.

SIMPLISMO ECOCORRETO
O crescimento das doenças causadas pela atividade humana é o principal problema sanitário dos nossos tempos. Só não enxerga essa ululante verdade quem está dopado de informações ofi ciais ou cego, seja pelo medo mais básico da morte, seja pelo simples interesse econômico de uma época.

Inúmeros estudos hoje não só apontam para o surgimento de novas doenças ambientais, como também descobrem que várias velhas doenças, cânceres ou rinites, diabetes ou demências, têm no meio ambiente a sua principal causa. E ambiente não é sinônimo de clima. Não é só o ar de São Paulo que está insalubre. Pense no excesso de informações. Pense no exagero de remédios. Pense na comida urbana, tão lotada de aditivos e conservantes que já dá para considerar falta de educação falar de comida na mesa. Não quero embarcar num simplismo ecocorreto. Longevidade é em última instância a luta contra a natureza. E a natureza mata. É inexorável. Mas o ambiente não é uma entidade puramente natural. É constituído também de idéias, informações, pessoas. Deveria ser um inimigo mais fácil de vencer. Ou um aliado mais fácil de arrebatar. Não só para vivermos mais, mas sobretudo para vivermos melhor.

*CARLOS NADER, 43, homem de mídia, quer uma mudança de ares. Seu e-mail é carlos_nader@hotmail.com
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