Nosso colunista-presidiário ouve a música da vida lá fora
Há quem não valorize o sofrimento de quem está preso. Há quem julgue que 30 anos de prisão é pouco. Existem os que pensam que essa infinita tristeza nem existe. Não sabem sequer respeitar a dor. Vivem a condenar qual não usassem o banheiro, de cima de suas superioridades e infalibilidades. Eu os compreendo. Não têm sensibilidade para alimentar a compaixão. Vivem envoltos em maços de raivas e ódios, mergulhados em idéias de vinganças. Sofrem suas tediosas vidas de mandíbulas travadas. Não se permitem ao perdão. Não querem compreender nada. Procuram apenas julgar, condenar e ponto final.
Pensar cansa, dá trabalho. Por que quebrar a cabeça avaliando motivos? Por que analisar suas próprias fraquezas e limites e daí pensar nas possibilidades dos outros? Mais fácil envolver a vida em gelo picado e pintar a alma fria de cores quentes. Em parte alguma o mundo e as pessoas são diferentes de nós. Pois vou lhes dizer: eu aqui dentro, preso, quando vejo alguém sofrer, sinto minha alma se encher de compaixão. Meus lábios se amolecem e meu coração se enche de calor humano. Sei o quanto dói cada um dos sofrimentos. Conheço-os profundamente.
Eu os vivi aqui dentro do peito, meus olhos estão gastos de tanto chorar. Senti o peso dos minutos na rude nudez de cada uma de minhas horas. Gostaria que algum desses insensíveis julgadores estivesse em minha pele agora há pouco. Estou há cerca de cinco anos sem escutar um bom aparelho de som e boas músicas. Hoje, no espaço que conquistei para escrever, apareceu um.
Play it again
Desavisado, ao arrepio do que posso e do que não posso, me atrevi a ouvi-lo. Coloquei um CD do Van Hallen, esquecido de minha longa convalescença. Sou doente por música. A primeira música até que foi bem: "And the Cradle Will Rock", mas já a alma queria sair pela boca. Na segunda doeu fundo, uma água quebrada, súbita e inteira: "Can't Stop Lovin' You". Então veio para matar, para arrancar meus ossos pela janela gradeada: "When It's Love"! Meu coração empoeirado ribombou através daquela voz estrangulada de David Lee Roth. Senti o mar inteiro invadir de imensidão meu ser, e eu estava pequeno, ridiculamente pequeno, para tremenda emoção.
O corpo queimou em febre. As lágrimas alargaram meus olhos. Um ruído de espa-das se entrechocando misturava-se àquele sujeito cantando e ao Van Hallen da guitarra. Sentia-me ferido de uma dor longínqua e na boca o gosto inconfundível de pesadelos. Em seguida, já aos pedaços, coloquei "About a Girl", do Nirvana. Kurt Cobain fez com que preferisse meus fracassos, a não tentá-los. Só o abismo mostra o céu que existe. Depois "Come As You Are" e "Dolly". Me senti sob ternos cobertores. Eu era o avesso, vermelho e pulsante como lábios, e beijava o ar, abobalhado.
Esqueci a prisão. Escapei por entre grades, varei muralhas e rasguei rancores trepidando ao som do Metallica: "Nothing Else Matters". Depois veio Guns and Roses, com Axel gritando "Knocking On Heaven's Door" e Slash mostrando-me que não há perigo maior do que estar vivo. Descobri "Other Side", do Red Hot Chilli Peppers, uma viagem em que minha respiração lambia a vida de paixão. John Frusciante é um gênio que altera o que se perde, mesmo sem perder. Quase sem querer, descobri um maravilhoso rap de J.J. Fad: "Supersonic".
Para finalizar, porque não agüentava mais, febril, amargurado com minha vida de astro opaco, coloquei seleção de Phil Collins. "Another Day in Paradise" e "Do You Remember". Voltei para a cela atordoado por negras perspectivas, já arrependido da-quela felicidade momentânea. Enfrentar agora o xadrez com uma dezena de companheiros e aquele meu cantinho parco, quase um túmulo, era dolorido demais. Tudo agora parecia incerto e relativo - onde tudo que era bom se tornava distante. Meus filhos pequenos, a companheira, doíam gravemente a cada passo.
Cego a flutuar no escuro, entrei no xadrez sem ver ninguém. Um preso respeita a dor do outro. Entrei na minha cama, coloquei o cobertor por cima e me fiz feto, esvaziando a consciência. Os destroços de mim se esparramaram, fechei os olhos e supliquei pelo sono. O que a prisão nos tira, a vida jamais devolve.