História difícil de ser contada

por Luiz Alberto Mendes

Vivemos em segredo. Mentimos demasiadamente. Mentimos até para preservar verdades. Mesmo sendo absolutamente sinceros, ainda assim mentimos. Mentir não é um erro. Errar é mentir para si mesmo; perder a perspectiva da verdade.

Jamais consegui escapar de minha memória. Havia sido capturado após uma fuga. Estava baleado e preso em um distrito policial. O xadrez estava superlotado. Para dormir, deitava-se de lado, um de cabeça para cima e outro de cabeça para baixo. A alternativa era amarrar-se à grade para dormir de pé. Eu só dormia quando estava para desmaiar de sono.

Revezávamos-nos para dormir. Estávamos seminus. O calor que gerávamos ali comprimidos era insuportável. Não sentíamos frio em momento algum. E que falta fazia o frio...

Houve uma tentativa de fuga no xadrez em frente. Os policiais do GOE invadiram de taco de beisebol nas mãos. Escutávamos os gritos agoniados dos companheiros. Chorávamos de ódio, revolta e medo. Os tacos retiniam nas paredes. Abriram nossa cela e nos preparamos para nossa vez. Mas não era. Foi pior.

Jogaram todos os companheiros da cela em frente, dentro do nosso xadrez. Espancados, feridos, sangrando e nus. A superlotação dobrou. Em minutos estávamos todos manchados de sangue. Jogávamos água no chão para limpar o sangue escorrendo dos companheiros feridos. Não precisava secar. A água evaporava em questão de minutos.

A privada turca do xadrez entupia sempre. A torneira espanara e ficava ligada direto. Sujos, feridos, barbudos, víamos grudados um no suor do outro. A catinga era insuportável. Um bodum de suor azedo misturado a sangue adocicado. Éramos quase um corpo único a se contrair.

Éramos bandidos ferozes. Brigávamos por qualquer motivo, como os ratos dos experimentos de Skinner. A compressão nos enervava. Brigar era ótimo. Entrei na arena várias vezes. Até gostava quando me desafiavam.

A “praia” (centro do xadrez) era a arena. De repente alguém saia na porrada. Abria-se a roda. Alguns eram esmagados contra a parede outros jogados ao chão e pisados (motivo para brigas posteriores). Machucávamo-nos naquelas duras paredes. Todos queriam assistir e gritar. Pulávamos, excitados, para ver enquanto os idiotas se entre batiam ensandecidos.

Mesmo aí, ao extremo da compressão humana, não éramos iguais. Continuávamos muitos dentro de nós e apenas um para os outros. O Big Brother, guardadas as proporções, tem um pouco disso. Mentir fazia parte da arte de sobreviver e o segredo uma valiosa ferramenta da sobrevivência.


Luiz Mendes

15/03/2011.

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