Henrique Goldman: ”Celebram o fim da era americana. Mas o domínio americano continua sólido”
Há quase uma década o Taliban dá show de bola nos soldados americanos no Afeganistão. Ano passado as bolsas de valores de Hong Kong e de São Paulo desbancaram o volume de vendas de Wall Street. A cada mês, centenas de milhares de desempregados alongam as já enormes filas da sopa em Pittsburgh, Cleveland e Detroit, onde inteiros bairros jazem abandonados por uma população falida que não consegue pagar a hipoteca. Neste fim de feira, até liderzinhos de quinta como Hugo Chavez, Ahmadinejad e Kim Jong-il desafiam impunes a super-potência que até pouco tempo derrubava governos a bel-prazer nos quatro cantos do mundo. Acuado dentro e fora de casa, Barack Obama não para de tomar porrada, tendo que engolir seco. Muitos celebram o irrevogável fim da era americana.
Mas basta olhar, por exemplo, para o Silicon Valley, para que se enxergue uma realidade totalmente oposta. Em muitos quesitos o domínio americano continua sólido e absoluto, enraizado na liberdade científica e intelectual, alimentada pelo lado mais bacana do capitalismo – um empresariado cabeça feita e aventureiro, uma sociedade aberta, dinâmica e afluente que atrai gente jovem e inteligente da Índia, do Japão, América Latina e Europa. Estes são os Estados Unidos do Ipad, da Lady Gaga, do Phillip Roth, do Youtube, do Johnny Depp, do Tim Burton e do Facebook -- a América que continua a ser uma absoluta referencia cultural para o mundo.
EUA anti-americano
O império americano não se impôs só pela ameaça bélica ou pelo arrogante poderio econômico – mas também através do rock e do jazz, de Bing Crosby, de Woodstock, Michael Jackson, Marilyn Monroe, Jimmy Hendrix, David Lynch e Andy Warhol. Com toda força demográfica e econômica da China que emerge como nova super-potência, ainda é difícil entender como seu domínio econômico se manifesta culturalmente, em escala global. Quais vozes nos chegam de Pequim ou Xangai?
Aqueles, que como eu, cresceram durante a Guerra Fria e se formaram numa cultura de resistência ao imperialismo americano, celebram o fim de uma era. Mas nos esquecemos que os Estados Unidos da Sarah Palin e da caretice fascistóide das grandes corporações são só mais um, entre tantos países, que convivem dentro na nação. À diferença de todos os outros países do mundo, os Estados Unidos tem um África interna, um Haiti interno, uma América Latina interna, uma Ásia e uma Europa interna. São o denominador comum do mundo inteiro e por isso conseguem falar com o mundo inteiro.
Parados no engarrafamento de uma freeway em Los Angeles, não podemos deixar de nos surpreender com vigor dos debates políticos nas rádios americanas. Ao assistir uma palestra de Noam Chomsky ou ao filme mais premiado em Sundance no ano passado, o documentário Restrepo, um eloquente libelo contra a presença militar americana no Afeganistão, temos que aceitar a contradição: talvez só no Irã dos mulás existam tantas vozes tão visceralmente anti-americanas como na própria América.
Gostando ou não, o sonho americano continua vivo. “It’s alive and kicking”.
*Henrique Goldman, 48, cineasta paulistano radicado em Londres (como o Assange), é diretor do filme Jean Charles. Seu e-mail é hgoldman@trip.com.br