Nem homem, nem cordial

por Milly Lacombe
Trip #273

Escritor, poeta, compositor, filósofo e filho do cantor João Bosco, Franscisco Bosco não foge dos conflitos gerados por seu livro, ”A vítima tem sempre razão?”

Homens brancos, heterossexuais, cisgênero e ricos não andam muito na moda. A impopularidade, justiça seja feita, foi conquistada por eles mesmos – os líderes, afinal, desde quando essa sociedade patriarcal, machista, racista, injusta e excludente foi erguida. Mas, a despeito do que diga a crença popular, o tempo das pessoas que agem e pensam como Michel Temer um dia vai passar – e no mundo haverá mais homens que pensam e agem de maneira oposta.

Tá certo que, ao trilhar seu caminho, Bosco foi fazendo inimigos que, curiosamente, estão na mesma trincheira que a dele. Gente de esquerda, feministas, ativistas e pessoas que estão muito a fim de construir uma sociedade mais igualitária e justa através da distribuição de renda e da inclusão. Como, então, ele criou antipatia dentro de um grupo que tem os mesmos sonhos e enxerga a mesma estrada para chegar lá?

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Muito do ranço veio de seu mais recente livro, que defende os movimentos identitários das minorias políticas, só que, enquanto os defende, analisa injustiças cometidas por esses movimentos contra indivíduos; e as ressalvas não foram bem assimiladas. A vítima tem sempre razão? é uma obra que já começa polêmica; um título provocativo e, a bem da verdade, um pouco antipático. Bosco oferece uma longa explicação em defesa do título que escolheu, mas sabe que atualmente muitas pessoas não estão lá interessadas em escutar explicações – especialmente as longas.

Nascido no Rio de Janeiro em 1976, filho do músico João Bosco e da artista visual Angela Bosco, ele teve uma infância de menino rico, com os privilégios comuns a esses. Mas como a condição humana não alivia para ninguém, muito cedo também conheceu as sombras. E as sombras, como normalmente acontece, o salvaram – uma história que ele conta a seguir. Refundado, fez doutorado em teoria literária pela UFRJ, lançou sete livros, presidiu a Funarte durante o segundo mandato de Dilma, foi colunista da Trip e do jornal O Globo e, ao longo dos anos, compôs músicas com o pai e acaba de estrear na TV no talk show Papo de Segunda, no canal GNT.

Separado da roteirista e escritora Antonia Pellegrino, com quem foi casado por dez anos e tem dois filhos (Iolanda, 6, e Louren­ço, 4), está prestes a se casar outra vez, com a carioca Ana Lycia Gayoso.

Chamamos Bosco para um papo reto a respeito de suas posições, das polêmicas e da condição humana. E ele veio desarmado.

E confira também, além da conversa abaixo, as respostas de Bosco a duas perguntas especiais — uma enviada por Tati Bernardi e a outra, por Anderson França. Vai lá!

Trip. Você  é conhecido por ser um cara que aprofunda qualquer conversa. Era assim na sua casa?

Francisco Bosco. Não. Tive boas referências de história da arte vindas da minha mãe, boas referências musicais vindas de meu pai, sobretudo canção popular brasileira e jazz, e uma boa biblioteca de formação na casa deles, com livros fundamentais da literatura moderna brasileira e ocidental. Mas essa biblioteca eu fucei sozinho.

Conta um pouco da relação com sua mãe e de como ela teve influência no homem que você se tornou. De uma perspectiva geracional, minha mãe pertence a uma transição entre o mundo das mulheres que não trabalhavam fora e o das que trabalhavam. Ela encarnou essa ambiguidade em sua vida. Fez faculdade e desenvolveu um trabalho como artista visual. (Devo a ela minha formação inicial na história da arte.) Tentou conciliar isso com a “empresa familial”: trabalhou como empresária do meu pai durante muito tempo, administrou a casa e cuidou dos filhos. Acabou prevalecendo a família, com todos os benefícios e problemas que uma tal decisão acarreta. De uns anos para cá, sobretudo depois do nascimento dos netos, me parece que essas tensões se apaziguaram completamente. É uma pessoa extremamente generosa com os seus.

E o seu pai? Meu pai tem uma ética quase monástica de trabalho. Durante minha infância e adolescência, estava sempre viajando, fazendo shows. Como minha mãe ia com ele, há um terceiro termo nessa história, minha madrinha, São, que cuidava de mim e de minha irmã e que é muito importante na minha vida. Essa ausência sistemática, articulada a um jeito mais fechado dele, fez com que a educação moral transmitida por ele viesse de sua forma de vida, muito mais que de uma pedagogia intencional: conversas, orientações e tal. Assim, herdei fortemente dele o senso da disciplina, da seriedade com o trabalho. Quando nos tornamos parceiros, nossa relação se modificou e se intensificou muito. Meu pai é profundamente antissocial – o que também herdei – e hoje se dedica a poucas coisas: música, família, alguma política e literatura, poucos amigos.

Como antissocial, você não é o tipo de cara que vai brilhar numa mesa de bar? Eu brilho muito numa mesa de bar, mas com os meus amigos, bebendo. Sou o cara que não brilha numa reunião de pauta, no almoço da firma. Sou um pouco aquela anedota da Clarice Lispector, que uma vez estava no boteco, com amigos escritores e tal, eles estavam conversando sobre a morte, e tinha um jogo de futebol. Passa um bando de torcedor de futebol fazendo uma algazarra, uma festa, aquela confusão toda. E, quando eles saem, a Clarice vira e fala: “Podemos voltar a falar da morte?”. 

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Antissociais geralmente são mais solitários. É o seu caso? Eu até vou a bares, mas minhas noites preferidas são sempre festas, por causa da música. Se vou a um bar, em algum momento quero sair para ouvir música e dançar. Dançar é uma dimensão fundamental da minha vida. Todos os meus amigos sabem disso. Então, o que mais faço é me reunir com a Ana [sua companheira] e ir na casa de alguém (geralmente da Bel de Luca e do Raul Mourão) e ficar a noite inteira bebendo e dançando. A gente se tranca e fica até de manhã. Sobre essa coisa de ser solitário, meus amigos dificilmente concordariam com essa interpretação que dou a mim mesmo. É porque sou uma espécie de Dr. Jekyll & Mr. Hyde: monge de dia, dissoluto de noite. E como eles só me encontram de noite, parece que essa história de solitário é charme.

A relação distante com seus pais se mantém ainda hoje ou isso mudou? Fomos uma família turbulenta no passado, mas hoje somos uma família bem normal. Cada um está sempre atento aos outros, acompanhando e cuidando. Nos vemos regularmente. O nascimento dos meus filhos me reaproximou bastante de meus pais e fez surgir uma nova forma de convívio, agradável e amorosa. A ausência sistemática dos meus pais durante a infância nunca foi um problema. As lembranças que tenho são sempre deles chegando, e não deles partindo.

E como você é com os seus filhos? Como minha profissão me permite trabalhar em casa e ter horários flexíveis, sou um pai muito presente. Mas isso é por privilégio e por desejo, não para tentar dar a meus filhos algo que teria me faltado, pois, repito, nunca experimentei como falta. Creio que muitas pessoas compreendem mal a questão da liberdade em relação a filhos. Às vezes, ouço amigos com receio de terem filhos porque perderiam a liberdade. Ora, liberdade é desejar com clareza e poder viver de acordo com esse desejo. Uma vez que você tem filhos, dificilmente desejará outra coisa tão clara e fortemente quanto estar com eles. Dito isso, é óbvio que filhos trazem limitações e dificuldades também.

Separações são sempre difíceis. Como foram para vocês as construções e desconstruções nessa fase? Separações com filhos, especialmente pequenos, são processos dificílimos pela seguinte razão: enquanto qualquer relação começa com o fim da indiferença, a possibilidade de uma boa relação com um ex começa com a conquista da indiferença. É preciso zerar os afetos negativos que levaram ao fim da relação e, só depois disso, reconstruir a relação em novos termos. Quando a gente se separa tendo filhos, isso é impossível. Você não tem o direito ao afastamento necessário para a sedimentação da indiferença. Você é obrigado a lidar sistematicamente com o outro, e a lidar com os assuntos relativos às crianças, ou seja: o assunto mais delicado, no momento mais delicado. Enfim, conosco não foi diferente. Mas o que posso dizer é que soubemos, em geral, conduzir as coisas da melhor maneira para as crianças. No meu modo de ver, hoje estão todos bem com suas vidas: eu, Antonia, nossos respectivos companheiros e nossos filhos.

Você faz um exercício constante de empatia com o feminismo, mas também se viu e se vê em meio a conflitos nesse processo de divulgação e discussões relativas ao seu livro. Para você, como o machismo afeta o homem? O feminismo contemporâneo tem um trabalho de detecção de uma espécie de micromachismo cotidiano que é muito bem-feito. E que eu acho fundamental para os homens da minha geração, ou de outras gerações, homens que estão sendo formados por esse feminismo. O machismo não é só violência doméstica, assédio sexual em ambientes profissionais, estupro. Machismo se apresenta numa série de comportamentos cotidianos. Antes dessa leitura do feminismo contemporâneo, esses comportamentos passavam despercebidos. Hoje, há um glossário deles, e esse glossário é extremamente pertinente: manterrupting [quando o homem interrompe a colocação de uma mulher], mansplaining [quando o homem se sente no direito de explicar alguma coisa a uma mulher mesmo ele sabendo menos], menspreading [homens que abrem demais as pernas em assentos públicos compartilhados]... O machismo, portanto, afeta as mulheres.

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O que afeta os homens? Vou recuar a lente, e é disso que eu sinto falta no discurso feminista contemporâneo na sua maioria: uma compreensão melhor do que é o patriarcado. Me parece que há uma espécie de mito de fundação implícito no discurso feminista, segundo o qual o patriarcado originalmente teria surgido como uma espécie de reunião de um bando de homens que teriam se juntado e conversado entre si dizendo: “Vamos criar um sistema para dominar as mulheres e perpetuar o nosso domínio”, e não é isso. O patriarcado é um sistema resultante das condições com que a espécie humana se defrontou na imensa maior parte da sua história. Desde a pré— -história até a Revolução Industrial, quais eram as duas preocupações fundamentais da espécie humana? Se alimentar e se proteger. Qual era o gênero biologicamente mais apto a realizar essas preocupações? O homem. A consequência disso foi a construção histórica de uma masculinidade hiperviolenta, que se traduz no machismo, no poder masculino sobre as mulheres, mas ela produz efeitos sobre os próprios homens. Para cada estatística pertinentemente evocada pelo feminismo em relação ao poder dos homens sobre as mulheres, seria preciso também uma estilística a respeito dos homens no sistema patriarcal. Quem é que vai pra guerra? Homens. Quem morre na guerra? Homens. Quem é a grande maioria dos encarcerados? Homens. Quem mata e morre por morte violenta? Homens. Quem pega a maioria dos trabalhos insalubres? Homens. Quem morre mais de depressão? Homens. Quem se suicida mais? Homens. Quem tem menor expectativa de vida? Homens.

Qual o impacto disso? Os discursos identitários contemporâneos têm uma perspectiva da experiência social demasiadamente esquemática. Isso tem consequências políticas ruins. Pensa no que é um homem da classe trabalhadora, que tem dificuldade de arrumar um emprego, ganha um salário baixo e que se sente um provedor – porque ainda tem essa imagem do homem tradicional. Ele sofre, se sente obrigado a colocar comida na mesa, tem que educar os filhos, e vê um dedo em riste apontado na sua cara dizendo que ele é opressor, violento etc. e tal. Ele é. Mas isso não dá conta do conjunto da experiência dele. Isso faz com que ele se sinta desamparado. Ele está procurando acolhimento em outras narrativas que não são essas que acabaram dominando a esquerda.

Isso explica a popularidade de lunáticos de extrema direita? Não explica Trumps e Bolsonaros na sua totalidade, mas acho que não dá para pensar esses tipos sem a dimensão do modo como a esquerda identitária está tratando essas pessoas.

O machismo fere a todos. O sistema patriarcal não é bom pra ninguém. Se por um lado o homem exerce o poder sobre a mulher – o que é moralmente inaceitável para qualquer pessoa que tem senso moral –, por outro, o homem tem pouco poder sobre a própria vida. A desconstrução do patriarcado é uma coisa que interessa a todos e que como tal deveria ser proposta numa estratégia que tivesse um horizonte comum. Mas o modo estratégico como isso vem sendo realizado está colocando o homem numa posição de ressentimento. Dificulta o reconhecimento da sua própria violência, porque ele se sente acuado.

Onde a gente vai buscar respostas? Essa é a pergunta de um milhão de dólares, né? Nas últimas décadas, as democracias ocidentais apresentaram uma gestão do capitalismo entre centro-esquerda e centro-direita que não fez tanta diferença. Houve um progressivo esvaziamento no estado de bem-estar social construído no pós-guerra. Isso tem levado a uma concentração de renda exponencial. Você pode pegar uma economista como [Thomas] Piketty [autor de O capital no século 21], por exemplo, que demonstrou isso de maneira cabal. Não dá para entender a crise da esquerda sem levar em conta que ela não foi suficientemente esquerda quando chegou ao poder. E ela está sem condições de dar respostas convincentes a alguns problemas muito urgentes e imediatos, como o da segurança pública.

Pode explicar? O tema da segurança pública apresenta uma ruptura muito clara entre a perspectiva da esquerda e a da direita. Na direita, é basicamente a perspectiva da responsabilização individual: o indivíduo é responsável pelos seus atos; na esquerda, é uma perspectiva mais complexa – para ela, a violência social é a consequência de determinado estado de organização social marcado por desigualdades econômicas, igualdades sociais, políticas e de reconhecimento. Olha essa resposta! Vê se ela vai ser convincente pra quem tá ali com o filho na linha de tiro. Há uma demanda por respostas concretas que a esquerda tem dificuldades constitutiva de articular. E aí nesse vazio surgem os populismos toscos, paternalistas, autoritários e com promessas de soluções miraculosas, as quais no fundo a gente sabe que não existem, mas ao mesmo tempo não estamos sendo capazes de oferecer respostas melhores.

Você vê alguém surgindo na esquerda capaz de traduzir todo esse discurso intelectual para o cotidiano? Eu me defino como um socialista liberal. O que significa que, para mim, a esquerda ideal tem que ser capaz de equilibrar o mais alto grau de compromisso com a igualdade e o mais alto grau possível de compromisso com as liberdades, com os direitos fundamentais dos indivíduos. Para mim, o maior quadro da esquerda que surgiu no Brasil é o [Fernando] Haddad – plano-piloto, direito à moradia, direito à cidade, ciclovias, política de acolhimento para pessoas em situação de vício de drogas, políticas de promoção social para grupos subalternizados como as pessoas trans... É com essa esquerda que eu me identifico.

O que é privilégio para você? Talvez eu possa abordar isso pelo viés da meritocracia. O [filósofo americano] John Rawls considera que a meritocracia é uma ilusão absoluta e que a sua competência e a sua vontade de trabalho, vêm de uma loteria, no caso, uma loteria genética. Então você não tem mérito sobre aquilo que você julgaria ter – retirado todo o resto. Eu acho interessante essa perspectiva em que o sucesso é dissociado da dimensão moral. O sucesso é, em larga medida, fruto do acaso e, portanto, não há justificativa moral na manutenção das desigualdades. O Rawls vai dizer alguma coisa assim: “Você pode deixar que os fortes sejam fortes e os ricos, ricos; desde que o benefício da realização deles seja convertido para as pessoas mais pobres”. Eu acredito nisso. 

O que na sua formação fez a sua cabeça se abrir? Tive um momento de refundação ao qual eu devo o que sou, e esse momento foi a doença da minha mãe. Ela teve uma depressão por muitos anos e esteve à beira da morte por pelo menos duas vezes. Acho que as respostas que eu fui formando acabaram produzindo o que eu sou. Basicamente, tive uma infância típica de garoto da zona sul carioca. Só que a experiência profunda dessa dor familiar me isolou muito do mundo, me fez uma pessoa num estado de profunda e sistemática inadequação social. Tive que passar por um processo de renúncia a tudo no mundo que me enfraquecia, que me alienava, e isso teve uma materialização física de isolamento. Teve um ano da minha vida em que eu me isolei praticamente de todo mundo, e por um outro acaso comecei a estudar. E aí a relação com a linguagem, com o conhecimento, foi me dando uma espécie de conteúdo positivo, um sentido de reconstrução psíquica, subjetiva e existencial que acabou se consumando no que sou fundamentalmente. Eu devo tudo o que eu sou aos piores acontecimentos da minha vida.

Quantos anos você tinha na sua refundação? Foi mais ou menos dos 16 aos 18 anos... Eu não estava querendo falar isso porque fica parecendo uma fanfic, tá? Mas teve um episódio que é meio ridículo contar: eu levei um tiro. Um tiro. Violência urbana carioca. Estava com amigos na noite, fora da zona sul, e levei um tiro. É até engraçado porque os amigos que estavam comigo eram um preto e um mulato bem escuro, e foram eles que me levaram para o hospital. E você dar entrada num hospital público levado por um amigo preto e por outro mulato, num sábado à noite, com um tiro, é porque é bandido, né? E fui tratado como tal. Fui atendido no corredor do hospital e a médica fez uma operação na minha perna que se eu não fosse privilegiado, teria sido amputada. De manhã eu fui para o hospital de gente branca, rica, e consertaram. Mas essa história patética é pra dizer que isso acabou sendo uma espécie de materialização de um processo que já vinha acontecendo, de uma necessidade de renunciar ao mundo. E o tiro me facultou isso porque fiquei seis meses sem andar. Isso me possibilitou realmente sair do mundo para poder reentrar nele depois.

Nessa refundação como homem, o que exatamente foi transformado em você? Eu era a inadequação encarnada. Não me reconhecia plenamente em nenhum grupo social disponível; os playboys, os nerds, e o pouco mais de identidade prêt-à-porter que havia nem tampouco era reconhecido por eles. Eu circulava por esses grupos meio como um fantasma. O acontecimento fundamental da doença da minha mãe me tornou melancólico. Tudo somado, eu era uma estranha mistura de adolescente normal, que jogava bola, andava de skate e tocava bateria – com uma subjetividade melancólica, inadequada, confusa. Passei por um processo profundo de renúncia e ascese, do qual emergi como o sujeito que fundamentalmente viria a ser desde então: um sujeito definido por certa relação com a linguagem. Essa relação me deu um sentimento de adequação ao mundo porque se tratava de inaugurar novas relações com as coisas por meio de uma nova linguagem. Comecei a escrever poemas. Tenho quatro livros de poesia publicados, três deles renegados – o que faz de mim provavelmente o recordista mundial dessa oculta tradição literária que é a dos livros renegados. Quando entrei na faculdade de letras da UFRJ, achei pela primeira vez o ambiente social a que me senti plenamente identificado.

Tenho a impressão de que muitas vezes representantes dos movimentos de minorias políticas estão falando com pessoas que já pensam como eles. Como fazer para o recado atravessar a bolha? Se eu soubesse, eu estaria na Cambridge Analytics ganhando milhões de dólares. Eu não sei. Eu sei diagnosticar o problema, né? Acho que o primeiro passo é você identificar o problema e tentar pensar em estratégias que não aprofundem a divisão social. De novo: toda vez que você trata um homem branco e trabalhador como exclusivamente opressor, você está criando uma divisão social entre as camadas que deveriam estar unidas em nome de um horizonte comum. Porque há um. Acho que estão faltando estratégias que sejam capazes de criar horizonte de referência comum.

Ajudaria se alguns movimentos identitários não excluíssem, como algumas linhas do feminismo que excluem as e os trans. Eu acho isso uma loucura. O feminismo lutou tanto para conseguir suplantar o biológico pela construção social e agora vem um argumento que retorna ao fundamento biológico? É estranho. Mas é sobretudo uma injustiça moral. Acho absurdo o argumento de que pessoas trans, no caso das mulheres trans, gozaram dos privilégios masculinos. Gente, imagina o que é a experiência subjetiva de uma pessoa trans. Feministas contra trans, mulheres contra homens, pessoas negras contra pessoas brancas... Deveria ser mulheres contra o machismo, pessoas negras contra o racismo, mulheres e homens contra o machismo, o racismo, e se no decorrer da luta um homem tiver um comportamento machista, ele deve ser apontado. Agora, de saída desqualificar alguém pela sua posição estrutural de origem, isso é falso. Essa perspectiva de considerar que um homem branco não pode tratar de questões relativas a racismo ou a feminismo significa simplesmente anular a dimensão da vida do sujeito. Você dizer que um sujeito necessariamente irá ratificar a sua posição estrutural de origem nas ações políticas é dizer para ele que ele não tem vida moral. Ou seja, você anula a dimensão da solidariedade na vida humana.

Você é um cara que vem de um lugar de privilégio para legitimar todos esses movimentos sociais e que, enquanto faz isso, coloca um “mas” depois da defesa. Às vezes você vai para casa pensando: “Hum, será mesmo que eu deveria ter colocado esse ‘mas’? Será que não bastava eu ter reforçado a minha posição como homem, branco, hétero, cisgênero que luta a favor dessa galera?”. Sim, claro. Eu pensei muito nisso enquanto escrevia o livro. O argumento aí seria: por mais que o seu livro declare um apoio fundamental às lutas identitárias, o fato de você decidir criticar alguns dos seus métodos e premissas pode acabar fazendo com que a recepção do livro ganhe sentido conservador. Mas eu não concordo com esse argumento. Porque a alternativa a ele seria o alinhamento político incondicional à diretriz ideológica e moral com a qual você se identifica. Para mim, isso não é atitude democrática correta. Certo seria criticar quaisquer movimentos, quaisquer diretrizes, mesmo que sejam aquelas com as quais você concorde fundamentalmente. Eu votei no Lula por muito tempo, também fiz parte do governo Dilma, e nunca, nem quando estava lá, deixei de criticar aquilo que no governo me parecia passível de crítica. A posição que exige alinhamento condicional é autoritária. Se a consequência disso for o meu isolamento por parte desses grupos, paciência. Isso é efeito colateral de intelectual público. O meu compromisso é com o que eu considero que seja verdade e com o que eu considero que é o melhor caminho para a experiência política e social do país.

Existia um outro título para o livro? Houve, mas vamos falar desse título. Poucas vezes na história do debate público brasileiro houve um título que despertou reações tão raivosas. A que eu atribuo essas reações? Em primeiro lugar, ao momento. Tenho certeza de que daqui a alguns anos esse título não vai ter nada de escandaloso. Em qualquer outro momento, uma premissa como “a vítima tem sempre razão” seria motivo de escândalo. E não o seu questionamento. Por quê? É evidente que há nessa premissa uma confusão entre dois níveis distintos: o estrutural e o particular, o abstrato e o concreto. A vítima dessa expressão “a vítima tem sempre razão” é a vítima estrutural. Só que essa expressão é aplicada em contextos concretos. Ora, nenhuma vítima estrutural tem sempre razão necessariamente em todas as situações concretas. Isso vai contra qualquer entendimento da justiça. Para que haja justiça é preciso que haja dimensão estrutural, abstrata, universal. Mas você também não faz justiça se não submeter essa dimensão estrutural universal ao caso concreto particular. Essa máxima “a vítima tem sempre razão” pretende anular a dimensão do concreto, ficando só com a dimensão da estrutura. É um absurdo do ponto de vista jurídico. E, no entanto, por conta do estágio social em que esse livro foi publicado, o questionamento de um absurdo é que foi tomado como absurdo. E eu ouvi de tudo. De criminoso fui chamado muitas vezes.

Posso saber quais eram os outros títulos? Enquanto eu escrevia o livro, o título sempre foi “Nem homem, nem cordial – Lutas identitárias e um novo espaço público no Brasil”. Eu gostava porque brincava com o “homem cordial”, de Sérgio Buarque [de Holanda, um conceito elaborado pelo historiador em 1936 para explicar que a cordialidade do homem brasileiro é um disfarce que possibilita a preservação das emoções]. Mas meu editor achava o título pretensioso, e depois de algum desgaste, porque eu estava apegado ao meu título, teve uma série de títulos esdrúxulos, até que vim com essa proposta. Eu sabia que era uma proposta de um tom diferente, mas eu não esperava que fosse dar o nível de reação que deu. Se eu soubesse, teria feito a mesma coisa. Estou sempre muito pronto a reconhecer que estou errado, mas não é o caso.

Você está prestes a se casar outra vez e a gente está passando por uma fase de rever o casamento tradicional, de fazer pactos que envolvam possibilidades reais de manter relações longas e verdadeiras. O que você acha disso? Você toparia viver uma relação aberta? Quase todas as minhas relações tiveram um pacto não monogâmico, desde os 19 anos. No começo, essas experiências se deram de forma confusa, ainda hipócrita, muito sofrida e até desleal. Com o tempo, cheguei a uma cláusula simples e fundamental: nenhum dos parceiros é obrigado a relatar ao outro experiências que considere privadas, incluindo sexuais. Isso “funcionou” para mim durante bastante tempo. As aspas se devem ao conjunto de dificuldades que vinham no pacote. No fundo, esse foi o ecossistema que pude montar a partir de uma contradição fundamental na minha estrutura amorosa-sexual. Hoje, essa contradição pela primeira vez se resolveu. Consequentemente, vivo uma relação monogâmica.

Foi uma decisão natural? É uma decisão fundada no inconsciente, e racionalmente apoiada. Paradoxo: sinto mais ciúme agora, monogâmico, do que quando estava em relações abertas. Seja como for, continuo repudiando o que chamo de monogamia fatalista: a noção, equivocada sob vários aspectos, de que “se você me traiu é porque não me ama”, de que fazer sexo com outra pessoa compromete decisivamente a relação amorosa etc. Há um desafio cultural a ser encarado: dissociar ciúme e moral.
É preciso tomar o ciúme pelo que ele é, sem mais nem menos: um fenômeno imaginário, no sentido lacaniano, isto é, narcísico. É preciso esvaziar a dimensão moral que o revestiu tradicionalmente. Isso já evitaria muito sofrimento e muita hipocrisia.

Você mudou muito no relacionamento atual a outros? Meu encontro com a Ana tem um sentido revolucionário relativamente à estrutura afetiva que sempre me determinou. O pudor me impede de entrar em detalhes, mas basicamente esse encontro deslocou de forma profunda um traço que sempre foi muito constitutivo do meu modo de me relacionar amorosamente; um traço que sempre condenava minhas relações a uma impossibilidade ou a uma contradição muito dolorosa. O amor é o grande poder transformador. Porque você desloca uma montanha de libido e, nesse movimento, identificações primitivas que nos condenam a repetições dolorosas podem se desfazer. E aí você tem a chance de se reinventar. O encontro com a Ana me deu essa chance. E só foi possível porque foi com ela, por ela ser a pessoa extraordinária que é, tem um conjunto de virtudes raras, numa intensidade ainda mais rara. Não imagino meu futuro sem ela.

Créditos

Imagem principal: Alex Batista

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