Enquanto isso os deuses gargalham

por Paulo Lima
Trip #254

Esta Trip quer estudar e se divertir com a nossa atávica e onipresente ilusão do controle. O surf nos dá uma lição sobre o imponderável e o descontrole absoluto

Não são poucas as vezes em que me perguntam qual a função do surf na formulação da arquitetura editorial da Trip. A resposta é sempre a mesma. Nesses 30 anos de pesquisas disparadas para todos os lados do conhecimento e da experiência humana, não encontramos uma forma de expressão capaz de ensinar mais e melhor sobre a vida. Com um objeto flutuante relativamente simples e acessível, um short ou um biquíni qualquer e uma praia qualquer, o indivíduo que se lança ao mar recebe, de graça, aulas intensivas e profundamente prazerosas sobre milhares de tópicos da mais alta relevância. Da fragilidade humana à força das marés, da mecânica quântica ao tantra, de Iemanjá a Netuno. É possível, dependendo da qualidade do aluno, absorver doses encorpadas de saberes de todas as lavras, num processo sensorial de indescritível suavidade e enorme beleza.

Mas talvez a melhor e maior lição seja mesmo sobre a noção de controle. Não importa quem você seja. Invariavelmente, por mais preparo físico, técnica ninja, genética de Kelly Slater e vigor de Medina de que disponha, muito rapidamente vai se deparar com lições implacáveis de confrontação com o imponderável, com a mais desoladora e oceânica sensação de descontrole absoluto. A aniquilação completa de qualquer ilusão de que seja possível fazer com que as coisas aconteçam conforme o planejado. E, em geral, é apenas exatamente depois de tomar essas aulas definitivas do mundo que o sujeito recebe dos Deuses uma espécie de serenidade que lhe confere o dom de voar sobre as águas e de dançar com elas.

Há outras vias, claro, para chegar a essas mesmas lições. Em alguns casos elas aparecem na forma de um desastre aéreo em que, numa fração infinitesimal de tempo, uma menina de 8 anos se defronta com o súbito desaparecimento de seus pais e de todos os planos que pareciam sólidos e bem traçados. Podem vir personificados em gestores ineptos e corruptos que em relativamente pouco tempo dilaceram o futuro de um país inteiro. De filosofia, de música, de uma chuva torrencial que faz uma cidade gigante e cheia de gente que se imagina apressada, competente e importante se reduzir a uma porção de bichinhos imóveis e assustados presos em latinhas ou em caixinhas de concreto.

Esta Trip quer estudar e se divertir com a nossa atávica e onipresente ilusão do controle.

E celebrar aquela máxima ancestral que diz: “Quer ver os Deuses rirem?

Conte-lhes seus planos”.
 

Créditos

Ilustração: Eugênia Loli

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