Despachamos Arthur até Pucamayo, onde comunidades se encontram para dançar, beber e brigar
Despachamos nosso repórter até Pucamayo, nas profundezas da Bolívia, onde, uma vez por ano, mais de 200 comunidades andinas se encontram para dançar, beber e cair na mão (sangue & morte inclusos). Arthur apanhou – mas também bateu
Desacelero meu passo e deslizo meu olhar pelo majestoso horizonte. O cenário do altiplano andino é lunar. Tal deleite me leva a outra dimensão. Uma energia sobrenatural invoca em mim a vontade de caminhar e sigo pela crista da montanha. Hesito e paro um instante. Adiante, avisto uma imensa pirambeira. Sem fôlego, respiro profundamente para alinhar-me novamente. Estou a mais de 3.800 metros de altitude, subindo a ribanceira até o pequeno vilarejo de Pucamayo, um inóspito local (fora de qualquer mapa) ao norte de Oruro e ao sul de Potosí, na Bolívia. O objetivo é gravar um dos nove episódios de Na fé com Arthur Veríssimo, série que protagonizarei no Discovery Channel (mais informações ao fim do texto), na qual me jogarei de cabeça em cerimônias religiosas bizarras espalhadas pelo globo.
Chego de mansinho e sou recebido pelo líder do clã do vilarejo, o guerreiro Jose Cruz. Acompanhado de seu irmão Carlos, traz consigo um punhado de folhas da coca, uma oferenda para este incauto peregrino. Coloco as hojitas com delicadeza entre a bochecha e os dentes. Um caldo doce é destilado em minha boca. O imediato soroche (mal das alturas), que causa estragos a muitos viajantes, é eliminado em um átimo de segundo. Os hermanos Cruz levam-me para conhecer a comunidade e explicam o significado da festa El Tinku e sua relação com Pacha Mama, a Madre Tierra, principal entidade divina dos povos dos Andes.
Nossa conversa é entremeada pelo vai e vem de conselheiros e anciões de Pucamayo. Todos estão possuídos com o advento de El Tinku, que significa “encontro” na língua quéchua e “ataque físico” em ayamara. O ritual sacia a sede de Pacha Mama, serve para agradecer pelas colheitas passadas e solicitar bênçãos para as futuras. Segundo os costumes e tradições, a briga garante o sangue que deve ser derramado como sacrifício e oferenda à Madre Tierra. A devoção é completada com muita música, dança, chicha, álcool, porrada e delírio. Quase necessariamente nessa ordem.
Carlos Cruz apresenta um kit de armas seculares de seu povo, atualmente proibidas no Tinku. Estilingues, boleadeiras, chicotes e outros artefatos belicosos. “Às vezes usamos para derrubar o adversário”, diz Carlos, com um sorisso cabuloso. Um capacete estiloso de couro me chama a atenção. Coloco o casco e o bestial Carlos joga uma pedra em minha cabeça para mostrar a pseudossegurança do capacete. Fico cabreiríssimo com a atitude desmesurada do insano. Jose pede desculpas pela estupidez de seu irmão, que exala tranquilidade. Demência explosiva.
Jose, exibindo um olhar de predador, diz que bate sem dó nem piedade em qualquer pessoa que estiver na Praça de Mancha - e que todos correm, sim, risco de vida
No dia seguinte, meus tresloucados anfitriões me levam para onde está sendo finalizado o néctar da festa. Uma destilaria artesanal onde é preparada, fermentada e produzida a chicha. A chicha morada é uma bebida fermentada (e bem alcoólica!), à base de milho, canela e outras especiarias. Imensos tachos e caldeirões estão guardados para a festa do Tinku. Estou ressabiado com o que irá acontecer no encontro final, na batalha campal. Como é possível uma festa religiosa, de comunhão com a natureza, no qual o êxtase seja uma luta violenta e sangrenta? Falta de refinamento espiritual ou tradições milenares preservadas na sua forma original?
Jose, exibindo um olhar de predador, diz que bate sem dó nem piedade em qualquer pessoa que estiver na praça de Macha – e que todos correm, sim, risco de vida. Questiono se tudo não é uma desculpa para resolver questões pessoais. Ele ri. E me deixa inquieto, acrescentando que todos sabem que alguém irá morrer na festa. Todo ano é assim.
Peço aos irmãos Cruz para fazerem uma demonstração da luta. Percebo que não existem regras ou limites: os socos são distribuídos de todas as formas e jeitos sem parar. O que vale é nocautear o adversário. Entro para o corpo a corpo e Carlos (a besta) é novamente agressivo além da conta. Estou preparado e me esquivo da violência – antes de vir para a Bolívia, havia feito treinamento de defesa pessoal, muay thai e boxe com meu sensei Marcão Zakir. Percebi que a porradaria, virilidade e barbárie seriam o tom da festa do El Tinku.
As atividades se aceleram e incendeiam. Observo o zum-zum-zum enquanto um casal de ovelhas é sacrificado com brutalidade e alegria ao mesmo tempo. O ambiente é de extrema embriaguez. Repentinamente, uma dupla de encachaçados tenta pintar meu rosto com o sangue dos animais. Saio mais rápido que o Papa-Léguas e sumo de cena.
Acordo em estado de alerta e sigo para Pucamayo. Hoje é o dia D. No vilarejo, Jose Cruz e o conselho dos anciões me oferecem o figurino completo de guerreiro, incluindo capacete, adereços, penacho e flauta andina. Estou vestido a caráter e participo dos rituais preliminares. Todos se divertem, fazem troças, bebem enlouquecidamente e dançam. Na muvuca, um grupo de fanfarrões gruda na minha jugular. Recebo tapinhas, tapões, chutes e provocações contínuas, até que dois tipos resolvem me açoitar. Perco o controle e passo uma chinela, uma rasteira, em um dos sem noção. Ele se estatela no solo sagrado. No ato levanto o tiozinho e mudo a vibração dando abraços e saindo de fininho. Por incrível que pareça, havia mergulhado no atalho da violência. Percebi que estava sendo contaminado pelo vírus da maldade. Clamo por Gandhi, por ahimsa (não violência). Mea-culpa. Reconheço minha estupidez entrando na vala da ignorância.
A porradaria se instala. Míseros 32 policiais formam a equipe de contenção do ímpeto da crueldade de milhares de pessoas
Minha reflexão serve apenas para mim, pois o clã da família Cruz continua se encharcando de chicha e de singani, uma bebida ainda mais explosiva. Iniciamos nossa descida marchando ao som do jula-jula com charangos e flautas. Por todas as montanhas e desfiladeiros, mais de 200 comunidades fluem em legiões de guerreiros ávidos pela batalha na praça de Macha. Trotamos unidos por 5 quilômetros até o epicentro do holocausto. Milhares de indígenas com suas roupas coloridíssimas bailam e cantam hinos em louvor a Pacha Mama. Um corre-corre frenético despenca pela ruela ao lado da praça. Policiais lançam bombas de gás lacrimogêneo para dissipar uma briga coletiva que se inicia. Fico grogue e com os olhos marejados. Ao lado da igreja, policiais tentam organizar o caos das primeiras brigas individuais. Na base do chicote e do empurra-empurra, montam um ringue com a massa humana. A porradaria se instala.
Míseros 32 policiais formam a equipe de contenção do ímpeto da crueldade de milhares de pessoas. Vejo Jose Cruz distribuindo socos, cotoveladas e pernadas. Como uma arma letal, ele derruba o adversário e salta do ringue no encalço de outro guerreiro. Os policiais não conseguem acalmar a multidão. Um grupo de bêbados chuta um homem que está estatelado no chão, sangrando copiosamente. A confusão toma uma escala inimaginável. Policiais lançam outra bomba de gás lacrimogêneo. Os índios se enfurecem e ficam ainda mais agressivos.
Sou alvo fácil para as comunidades que avançam por todos os quadrantes da praça. Corro para a delegacia e me dispo das roupas e do capacete. Um policial com lágrimas nos olhos me diz que não dá mais para controlar. Turistas, crianças e autoridades assistem às cenas sem se incomodar. Vibram com o sangue espirrando dos rostos. Nenhum local é seguro. Um turista toma uma voadora e tomba inconsciente.
Sim, violência gera violência. Pra que isso? Tanto sangue e raiva paralisam a mim e à equipe. A única certeza que tenho é que esta briga não é minha. Pacha Mama, para que tanta selvageria?