por Redação

Entre presos e moribundos, nosso colunista

 Há em mim um apelo, um desespero que é dor, mas que me calo. As pessoas não sabem o quanto necessito delas. O quanto me é terrível viver separado delas, depois de conhecê-las. Houve quem dissesse, e estúpido acreditei, que o inferno são os outros. Hoje vejo o contrário. O outro é sempre o bode expiatório para escapar às nossas culpas. Acostumamos acusar; alguém tem que deter a culpa, essa fera ensandecida. Encontrado o culpado, pronto, questão resolvida.

É ele o responsável e saímos aliviados por havermos escapado incólume, mais uma vez. O inferno somos nós mesmos.

Isso é tão surrealista... Parece tudo distorcido ou que estou enxergando por outros óculos. Em quase tudo que vejo, forte sentimento de irrealidade me acompanha. Acho, devo estar obsoleto. Amor só era bom se doesse. Amizade era prova do dia-a-dia e não uma palavra de tratamento. O pior medo era o das coisas incertas. Pensava, somente plantando coerência se colheria solidez. Tomara esteja errado, mas hoje leviandade me parece a tônica.

Fosse grito apaixonado ou melodia suave, a razão, essa solução de todas as coisas, terminou por nos enganar. Não, nada é assim tão linear. Simples, é claro, mas tão simples quanto intenso. Rico, de uma riqueza absolutamente complexa pelo indimensionável. Tudo foge à nossa capacidade de acompanhar em sua infinitude. Acho que há uma única maneira de encarar tudo isso: com generosidade.

Somente a extrema generosidade faz com que entendamos um pouquinho da complexidade de nossa vida interior e então poderemos confiar, mesmo que por instantes, em nosso semelhante. É pensá-lo em atitudes extremas para envolvê-lo pela compaixão de nosso entendimento. A morte de um ente querido; uma dor física irreversível; a perda da liberdade por qualquer motivo; a loucura; a fome; o frio; e a miséria da condição humana. A vida assim para todos os lados, difusa, incompleta e longínqua de cada um de nós.

Durante cerca de quatro anos, ainda preso na Penitenciária do Estado, fiz um trabalho voluntário no Sanatório Penal. Lá estavam os companheiros de prisão atingidos pelo vírus da Aids. O preconceito, a ignorância e o medo dominavam a cena. Fim dos anos 80. Todos queriam culpá-los. Um porque foi homossexual (como se isso fosse crime e eles nunca houvessem praticado). Outro porque viciado em picadas; garoto de programa; e todos esses nada razoáveis enganos. Fácil: culpados eles se tornavam responsáveis por tudo e nos isentava.

 Cada um, todos nós
Naquele corredor, seres humanos mergulhavam no desespero de todos os modos possíveis e ao mesmo tempo. Morriam como moscas. Sempre havia meia dúzia em coma ou moribunda. Pneumonia; tuberculose; hepatite; sarcoma de Kaposi; candidíase; meningite; e o diabo a quatro. Caras e culpas, esses passos sem abraços. Lembranças sorrateiras que recobrem as paredes da memória de significados. Era fazer alguma coisa (e era tão pouco o possível, embora fosse tudo) ou sair correndo, assustado. Eu fiquei.

Interessante como são as opções. Outro dia, um amigo perguntou: se o Marcola havia lido tanto na prisão, como eu, porque eu seguira meu caminho de literatura, teatro, cinema, projetos sociais e ele esses outros? Respondi que cada qual escolhe suas passadas e segue suas tendências. Ele é um líder comprovadamente eficiente e carismático. Logo, faz o que sabe fazer. Não ganha nada com tudo isso. Vive super-recluso e vigiadíssimo há anos. Isolado em cela individual, não fala em celular e agora nem com advogados. Necessariamente, monge estóico, acético. Fosse outra sua história, com certeza, teria todas as chances de ser um grande político ou líder religioso. 

Gosto de livros, arte dos outros, emoção. E a palavra é para mim repositório da beleza das coisas. A angústia, a dor e a miséria pessoal me ensinaram compaixão por todos aqueles que sofrem. A convivência diária com a dor no Sanatório Penal deu-me outras perspectivas de vida. Afundava na intelectualidade. Queria saber para demonstrar, para ser reconhecido em meu valor. A consistência do conhecimento só veio com lastros do sofrimento. Enquanto a prisão borbulhava insana e a dor tangia, lembro que aprendi generosidade. Pensei nos outros como um outro eu que também sofria, pela primeira vez na vida.

É obvio que continuo a sentir meu rosto esvaziado de ossos quando encontro crianças, velhos, bêbados, inempregáveis, aquela gente apagada pela cruel borracha social. Ver a vida escorrendo, abortada dos melhores gestos, e não poder fazer nada é dor inevitável. Causa náusea. Sinto como se estivesse brincado com o incurável, ameaçado pelo insuportável e visualizado o impossível.

Seria isso generosidade? Somos unicamente humanos, limitados a chorar, embora assim lanhados de existência e o coração nas mãos?

 ilustração de stephan doitschinoff reproduzida do livro Palavra Cigana – seis contos nômades, de Florencia Ferrari (Coleção Mitos do Mundo, CosacNaify, 2005) 
 
*Luiz Alberto Mendes, 54, escritor e ex-presidiário sem culpa no cartório. Seu e-mail é: lmendes@trip.com.br
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