por Victor Lopes
Trip #183

O sonho do ouro volta a assolar o Pará; Victor Lopes conta o que sobrou da Serra Pelada

Com a notícia de que ainda há 50 toneladas de metais preciosos no subsolo de Serra Pelada,
o sonho do ouro volta a assolar o sul do Pará. O cineasta Victor Lopes conta o que sobrou da lenda do Eldorado brasileiro, um lugar síntese do país com sua mistura de miséria e riqueza extremas

Raimunda tem 66 anos e foi uma das primeiras mulheres a entrar no garimpo de Serra Pelada. Olhos vivos, mente ágil, na tarde quente a ex-garimpeira está sentada na entrada de sua casa, a menos de 1 km da antiga cava. Uma casa típica do sul do Pará, de madeira de castanheira, erguida sólida o suficiente para resistir em pé e ser movida entre as chuvas, ou abandonada quando chegar a hora. Nas paredes cor-de-rosa esmaecidas da madeira gasta, retratos e calendários se misturam a galhardetes de campanha política.

Começo com a pergunta eleita para abrir quase todas as entrevistas, um artifício a mais na construção do filme: “Qual foi a primeira vez que você ouviu falar de Serra Pelada?”. E apareceu a primeira de três respostas que ninguém esperava.

“A primeira vez que eu ouvi falar de Serra Pelada, foi eu que vim aqui em sonho, voando, então eu cheguei naquelas terras acolá, cheguei em casa e falei pra esse José Fragoso de Almeida, meu marido então: José eu fui num lugar assim que é muito bonito, tem tanta serra... Aí ele disse assim, você tá ficando é doida, e eu digo, não, eu ainda vou morar lá...”

Raimundo Benigno é presidente do Sindicato de Garimpeiros de Serra Pelada. Ameaçado de morte há muitos anos, tem escolta constante de dois soldados, entra e sai da vila sempre em segredo. Durante a pesquisa do documentário, depois de dias de expectativa somos levados até ele, que chegou do nada algumas horas antes. Sentamos na sala da casa de um parente e começamos a conversar. Depois de alguns minutos, ele pede para fechar a janela atrás de mim, pois estamos ambos na linha de tiro de pistoleiros que cercam a casa no morro em frente. Continuamos a falar antes de os seguranças nos pedirem pra fazer a entrevista na cozinha nos fundos da casa.

“Se a fé remove montanhas, nós removemos uma usando apenas os braços. Em serra pelada, até as profecias bíblicas viram realidade”

“Em dezembro de 1979 eu tive um sonho, eu era estudante de direito em São Paulo, não tinha nenhuma possibilidade de vir ao Pará, não conhecia, e tive um sonho que eu estava numa montanha e vi três poços profundos e que eu achava que era diamante na época, brilhando. Nas primeiras imagens de Serra Pelada em que eu vi aquele buraco, eu falei: ‘É meu sonho’. Em março de 1980, eu larguei a faculdade, larguei tudo que eu tinha em São Paulo e vim viver esse sonho.”

José Raimundo é conhecido como Índio do MST, nome que usa em sua carreira política. Ele nos recebe no acampamento 17 de Abril, fundado com este nome por sobreviventes do massacre de Eldorado dos Carajás, a cerca de 40 km de Serra Pelada. Dos 19 sem-terra assassinados na curva do S em 1997, 16 eram ex-garimpeiros de Serra. Pergunto novamente: “Qual foi a primeira vez que você ouviu falar de Serra Pelada?”.

“Eu sonhei com o garimpo. Quem vê pensa que eu tô mentindo, mas é verdade, eu sonhei com esse garimpo, sonhei com tudo, toda a estrutura do garimpo, eu sonhei.”

China brasileira
No mês passado, depois de décadas de confrontos entre as várias partes interessadas na exploração de Serra Pelada, o sonho do ouro voltou a frequentar o imaginário dos garimpeiros. A Coomigasp (Cooperativa dos Garimpeiros de Serra Pelada) deu entrada ao pedido de concessão de lavra para explorar o subsolo da área. Associada à multinacional canadense Colossus, a cooperativa iniciou o processo oficial de reabertura da mina, agora para extração mecânica, apoiada num relatório de sondagens que identificou ao menos 50 toneladas de ouro, paládio e platina. A partir do acordo com os garimpeiros em 2007, as ações da Colossus tornaram-se blue chip (ações de “primeira linha”) nas bolsas de Toronto e Nova York e seguem em alta no momento em que o metal, puxado pela crise e pela queda do dólar, atinge seu maior preço no mercado internacional.

Se Serra Pelada definhou desde o fechamento da mina, a região à sua volta viveu as mutações do progresso. O que era floresta virgem há 40 anos hoje está tomado de pasto e cidades erguidas no trilho da mineração, numa das maiores províncias minerais da Terra. Na esteira da expansão da Vale, o Sul do Pará foi batizado de “China brasileira” por seus índices de crescimento anual acima de 10% nos últimos 15 anos. Prédios, bairros e cidades aparecem e aumentam sem parar. As previsões de investimento da Vale na região para os próximos anos chegam a US$ 40 bilhões , puxando indústrias paralelas e perspectivas de progresso, que se aliam à perspectiva de pacificação nos históricos conflitos agrários da região.

Aqui, no rumo inverso da história, gente de todo o Brasil, mas principalmente nordestinos, migra para longe do litoral e das capitais rumo a outras fronteiras e futuros na Amazônia. De 1980 a 1986, no coração da selva amazônica, 115 mil homens garimparam quase 100 toneladas de ouro e transportaram nas costas uma montanha de 150 m de altura. Como diz um dos personagens do documentário, “se a fé remove montanhas, em Serra Pelada nós removemos uma montanha usando só os braços. Aqui, até profecias bíblicas se tornam realidade!”.

E Serra Pelada se transformou num lago de 140 m de profundidade, criado depois que as escavações atingiram o lençol freático e tornou-se inviável bombear a água para a continuação do garimpo manual.

A montanha que virou lago, uma incrível simetria, abrupta passagem de céu e terra, fenda de sonhos sempre cercada de miséria, disputas e lendas durante os últimos 40 anos. Como diz Ricardo Kotscho, que foi o primeiro jornalista a entrar no garimpo, “Serra Pelada era uma redução do Brasil e um dos raros lugares síntese da história recente do país”. Um lugar de riqueza profunda, na terra e nos homens, em que terra, ouro e água se misturam a mito e história, real e imaginário, poder, delírio, poesia, violência e superação.

Apocalypse now amazônico
Desde a sua descoberta, o ouro de Serra Pelada foi alvo de disputas violentas. Primeiro, entre a companhia Vale do Rio Doce, então uma empresa estatal que por lei detinha os direitos minerais da região, e os garimpeiros que chegaram à região com a notícia das primeiras pepitas. A Vale na época era presidida por Eliezer Batista, empreendedor lendário, personagem discreto e central na história recente do Brasil e pai de Eike Batista, hoje o homem mais rico do país. Por dialética do destino, dirijo também uma biografia de Eliezer que chega aos cinemas em novembro. No fim dos depoimentos, ele aceita falar sobre a Serra, recua na cadeira e nos revela que até ameaça de morte sofreu para não mexer com a briga pelos direitos de exploração do ouro. O fato de o presidente da maior mineradora estatal brasileira ser ameaçado é simbólico e impressionante. “Nunca houve nada igual àquilo, nem na febre de ouro na Califórnia, nada se compara a Serra Pelada, é uma coisa única no mundo”, diz Eliezer.

Com o fim da mineração, os ex-garimpeiros formaram uma vila em torno do lago onde hoje vivem 7 mil habitantes, que podem chegar a 20 mil em semanas de assembleia e eleições. Ocupada por pessoas que não puderam, ou não quiseram, voltar para suas terras natais e que decidiram resistir e guardar a cava. Sentinelas mágicas de um faroeste do século 21. Existem poucas opções de trabalho e uma população envelhecida aguarda o desfecho da história, vivendo de aposentadoria em terrenos da União que devem ser desocupados quando a mina for mecanizada um dia.

A vila de Serra Pelada faz parte do município de Curionópolis, que tem esse nome em homenagem a Sebastião Curió. Figura lendária do sul do Pará, versão real do coronel Kurtz de um Apocalypse now amazônico, personagem raro da história recente do país, ele comandou a ofensiva final contra a guerrilha do Araguaia e foi acusado pelo desaparecimento e pela morte de vários opositores da ditadura militar. Depois de ser nomeado interventor do garimpo, elegeu-se deputado federal. Em 1984, rompeu com o governo e com a CVRD (que foi indenizada em US$ 60 milhões pelo Estado por um ouro que não explorou) e fundou a cooperativa que detém os direitos minerários até hoje. Eleito por três vezes prefeito de Curionópolis, ele foi cassado em abril de 2008 por compra de votos. No documentário, Curió é um dos personagens centrais, por conta dos depoimentos históricos reveladores durante as filmagens.

“Nunca houve nada igual àquilo, nem na febre do ouro na Califórnia”, diz Eliezer Batista, ameaçado de morte quando era presidente da Vale

Depois de constantes disputas entre diferentes facções pelo comando da Coomigasp, que culminaram com mortes e prisões em maio de 2008, Curió foi afastado das negociações sobre o futuro da mina, e uma nova diretoria foi eleita. Hoje a situação parece mais calma. Com mediação do governo federal, o pedido de lavra está encaminhado, e as sondagens continuam, embora o contrato com a Colossus sofra variadas contestações.

Para Breno Santos, ex-geólogo da Vale, se a própria Vale, com toda a sua eficiência empresarial, desistiu de Serra Pelada, nenhuma empresa colocaria dinheiro lá. É apenas uma lenda. Para o geólogo John Hellman, responsável pelas sondagens da empresa canadense em andamento, é um sonho também. Mas mineração é isso, sonhar com o que existe dentro da terra.

A visão dos velhos garimpeiros é bem diferente da dos especialistas. Na beira da cava, seu Trovão para de lavar roupa por um momento e nos conta que “embaixo de tudo tem uma laje de ouro e depois uma jazida de diamantes com 2 km de extensão. E no meio tem uma pedra, já pesquisada, do tamanho de uma geladeira que no mundo todinho, no universo todinho, não há dinheiro que pague essa pedra, só a pedra!”.

Em 1985, Rita Cadillac fez um apoteótico show em um circo armado em Serra Pelada e tornou-se a musa dos garimpeiros. A então chacrete se esfregou com as roupas atiradas em delírio na direção do palco e deixou no local uma coleção de calcinhas, disputadas como trofeus. O cachê de Rita foi pago com pepitas de ouro. Diz a lenda que criaram e venderam em Serra um sabonete com a forma de sua histórica retaguarda. As cenas acimas foram tiradas de série de documentários The world about us, feita pela rede britânica BBC

 

Cineasta garimpeiro
A primeira vez que estive em Serra Pelada foi em julho de 2002. Fui contratado para realizar dois documentários para a então companhia Vale do Rio Doce no sul do Pará. Fiquei instigado ao ver que o lendário garimpo de Serra Pelada, ou o que sobrava dele, ficava a 70 km da mina de Carajás. Assim, já cheguei à região decidido a me aproximar de alguns dos principais personagens da história, ou lenda, da maior mina de ouro a céu aberto do mundo.

Em poucas semanas me deparei com uma história única, um western épico contemporâneo, uma aventura humana que precisava ser contada, perdida entre o passado e o presente, esperando um roteiro de ficção ou um livro que a cavasse. Enquanto ouvia os primeiros esboços de fatos e lendas que levaram a essa mistura de mito e faroeste, pensei também num documentário. Começo a entrevistar os garimpeiros e vou descobrindo histórias fascinantes, em que cada “formiga” era um épico, na voz desses homens, para sempre enfeitiçados pelas visões do garimpo e sua jogatina frenética.

Hoje, depois de sete anos, entre pesquisas, viagens, escritas, financiamento e filmagens, encontra-se em final de produção o documentário de longa-metragem que tem o título provisório de Serra Pelada – a lenda da montanha de ouro, dirigido por mim e produzido pela TVZero (de Herbert de Perto, Simonal e Língua, entre outros), que entra no circuito de festivais nacionais e internacionais no primeiro semestre de 2010.

Das fotos de Sebastião Salgado até filmes e imagens de TV de todo o mundo, Serra Pelada foi a mais bem registrada corrida de ouro de todos os tempos. Mas é uma história que não se encerra nas imagens míticas do “formigueiro humano”. A aventura da maior concentração de trabalhadores depois das pirâmides do Egito não acabou de ser escrita, nem filmada.

“E embaixo de tudo tem uma laje de ouro...”

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