por Pedro Sprejer
Trip #228

O maior festival sertanejo do mundo é acusado de deixar um rastro de destruição em Caldas Novas

Autointitu­lado “o maior festival sertanejo do mundo”, o Caldas Country é acusado de deixar um rastro de destruição em Caldas novas. Nosso repórter foi até lá e conta a real

Caldas Novas praticamente cochilava na madrugada do feriadão de 15 de novembro. Uma boate aberta, pouca gente nos bares, alguns vultos andando com garrafas de vodca na mão. Enfim, tudo num clima de monastério tibetano, comparado com as cenas de uma turba insana pirando nos tetos de frotas de caminhonetes 4x4 que havíamos visto na internet antes. Pelas ruas, alguns carros da polícia já marcavam presença.

A edição de 2012 do Festival Caldas Country havia deixado uma mácula no universo sertanejo com tiros, brigas, ruas entupidas de motoristas ensandecidos, equipamentos de som ensurdecedores e um carro incendiado (pelo próprio dono). Imagens como a de um casal transando em público e de festeiros pulando em cima de um trailer da polícia correram o Brasil. Sites sensacionalistas falaram em 12 óbitos – segundo a polícia, houve três mortes: duas por arma de fogo e uma por acidente de carro. Diante do caos, o Ministério Público chegou a pedir o cancelamento da oitava edição do festival.

No ano dos protestos que incendiaram o Brasil todo, as autoridades estaduais e municipais anunciaram que colocariam 3 mil policiais nas ruas, usariam câmeras e destacariam um helicóptero para coibir o vandalismo e a libertinagem. Mesmo assim, o temor de uma nova erupção hedonístico-sertaneja no coração do Brasil era visível. E lá fomos nós, eu e Jordi, nosso fotógrafo português. Dois cowboys de primeira cavalgada, tentando desbravar o universo sertanejo.

O flat em que a organização do evento abrigou os jornalistas ficava a uns 40 minutos da arena de espetáculos. Estávamos, portanto, longe do epicentro da bagunça. As primeiras informações que nos chegavam eram de que a polícia estava proibindo qualquer tipo de poluição sonora na cidade. O prefeito, Evandro Magal, postava no Facebook que “carros rebaixados e com sonzão [sic]” seriam apreendidos. “A tranquilidade vai reinar na cidade da família!”, prometia Magal.

De manhã, percebo que a vida social do flat gira em torno da piscina. Fazendo jus à fama da cidade (a quem cabe o título de “a maior estância hidrotermal do mundo”), a água é realmente quente e o Sol, pouco piedoso. Essa combinação de calor por baixo e por cima parece deliciar os banhistas. Alguns passam mais de 8 horas imersos.

Algumas horas depois, quando chegamos à imponente arena do espetáculo, o clima era de tranquilidade, exceto pelo furor dos cambistas que temem não conseguir vender seus ingressos – no fim do evento, a organização do Caldas Country divulgaria um público pagante de 25 mil pessoas por dia, contra 41 mil em média, do ano passado. É bastante gente, mas fica a dúvida se o slogan do evento – “O maior festival sertanejo do mundo” – procede.

Ainda na entrada, enquanto farejamos confusões, somos abordados por um casal simpático de Sorocaba.

Querem posar para fotos. São os primeiros de muitos, que quase sempre perguntam: é para qual site? “Tô achando isso aqui muito desanimado”, reclama a loira Larissa. “Como assim proibiram carro com som alto? Oi? Achei que fosse uma festa.”

Quando a festa enfim começa, com o esquenta promovido pelo apresentador Cuiabano Lima, o mestre de cerimônias da noite (com seu bordão que falava em calcinhas subindo e cuecas voando), o público ainda é pequeno e pouco animado. Mas, num piscar de olhos, a pista principal e os camarotes já viraram um formigueiro de gente dançando, se esbarrando e andando com copos na mão. Na frente do palco, o som é tão forte que produz uma pequena lufada de vento.

Curiosamente, o Caldas Country só tem camarotes – nada de pistas ou plateia. Ali, os mais modestos ficavam no camarote Extra Vip (a área apenas “Vip” foi extinta neste ano) e os mais “diferenciados”, no Prime. O passe para os dois dias no primeiro saía por R$ 280 (homens) e R$ 250 (mulheres) e dava direito a vodca, cerveja, água e refrigerante liberados. O Prime, cujo último lote foi vendido por R$ 1.200 para homens e R$ 950 para mulheres, contava ainda com energético, uísque e comilança liberada.

No bufê encontramos, entre caldos, salgadinhos, frios, pseudosushis e massas, os paraenses Lourival e Wantuil – infelizmente, eles não são uma dupla sertaneja. No momento, trabalham com “madeira, terra, você sabe, essas coisas lá do Pará”, diz Lourival, aparentando certa prudência. Eles deixaram as mulheres em casa e, para todos os efeitos, “viajaram para pescar”.

Para quem espera encontrar fazendeiros e agroboys, o público é extremamente diversificado. De acordo com a organização, Brasília é a cidade que mais envia festeiros, num total de 8 mil ingressos, seguida por Goiânia e BH. O Rio de Janeiro, até agora com pouca tradição no gênero, teve surpreendentes mil ingressos. Conversamos com um comerciante de Rondônia, um enfermeiro/acordeonista de Fortaleza, um fazendeiro gaúcho, um policial de Uberlândia, uma professora de química de Duque de Caxias, um dono de loja de tintas de São Mateus (ES), empresários da terraplanagem paulistas e uma estudante de educação física e miss fitness de Unaí (MG).

Batemos papo com Anderson, um cara que trabalha no banheiro masculino. Ele chegou há um mês em Caldas Novas, junto com uma legião de neo-candangos que vieram erguer a grande arena do espetáculo. Anderson garante que conseguiu escapar por um instante e pegar sete mulheres na área reservada, na frente do palco. Quero saber o segredo dele: “Tem segredo não, fio. É só agarrar”.

A essa altura, no camarote, o pessoal já está meio transfigurado. A maior parte das meninas da festa parece meio padronizada, com minissaias, cabelo liso e decote. Vejo um grupo de caras com chapéus de cowboys e o adesivo “Os mió do Brasil” colado no peito. São uma espécie de caravana de empresários fãs de sertanejo. A maior parte é de São Paulo e veio junto numa comitiva de off-road. Na pista, o público se espreme e canta os edificantes versos de Cuiabano Lima: “Essa bunda não é sua/ Esse peito não é seu/ Isso tudo foi feito/ Com o dinheiro meu”. Quando Ivete Sangalo, enfim, entra no palco (não é de hoje que sertanejo e axé andam de mãos dadas), todos vão à loucura.

Segundo dia

Chegamos ao segundo dia de festival. No camarote Prime, encontramos Cleber das Chagas, ou Clebim, um ph.D. em baladas sertanejas. Cria de Vitória, ele tem 29 anos, mede “1,58 e meio” e parece muito mais novo por conta de problemas de crescimento na infância. No mundo da noitada, onde músculos valem beijos e autoestima, Clebim usa da sagacidade como arma. Seu jeito de dançar é carismático, contorcendo-se, fazendo expressões engraçadas. Um cara com estilo próprio numa lavoura de grãos padronizados.

Promoter de festas em Vitória, Clebim acaba de se mudar para Goiânia: “Vim tentar ganhar a vida no sertanejo”. Para ele e outros produtores, o Caldas Country mais do que diversão é uma chance para fazer contatos: “Cheguei aqui ontem, só com a mala e um pouco de grana, hoje, já tenho duas casas pra dormir, uma outra para comer e uma promessa de trabalho”, conta.

Damos umas voltas com ele e um grupo de capixabas que encontrou. Caras do litoral que se identificam com a cultura sertaneja, algo improvável dez anos atrás. Esbarramos com um dos grupos mais tresloucados da festa. Uma dúzia de garotões, alguns de camisa polo de bacana, outros de chapéu de cowboy, botas “Bruno Montovani”, blusa xadrez pra dentro da calça e cintão. “São os agrônomos”, explica Clebim.

A essa altura, no palco, Chitãozinho e Xororó, os decanos do festival, fazem um show arrebatador. Os caras estão na estrada desde 1970 e, mesmo sem os mullets, ainda são capazes de botar uma garotada que nem sempre manja suas músicas pra pular. Encontro com eles no backstage. Quero saber o que mudou na cena desde quando eles despontaram. Chitãozinho responde: “A música sertaneja era segmentada, não chegava nas metrópoles. Hoje, é o maior mercado da música nacional, porque é uma música romântica e dançante. E o pessoal quer se divertir”.

O cantor parece ter razão. Uma pesquisa recém-divulgada pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope) constatou que a música sertaneja é preferida por 58% dos ouvintes de rádio no país. O sertanejo se tornou mainstream, coincidentemente, ao longo da década da explosão do agronegócio no país. Talvez seja natural que um setor econômico tão poderoso tenha o seu correlato na indústria cultural. Pense em uma grande plantação de soja – um dos carros-chefes do agronegócio. É um campo que se estende uniforme até a linha do horizonte. Isso se chama monocultura. É o que temos de mais contrário à ideia de diversidade. Será que o mercado sertanejo pode ser tão expansivo e padronizador quanto o agronegócio?

Depois da entrevista, nos juntamos à multidão de Extra Vips que se acotovelava na plateia. Depois de dois dias, com 29 show initerruptos – com a presença de estelas do gênero como Gusttavo Lima, Jorge e Mateus e Cristiano Araújo –, o público parecia cansado e alterado. Dali a pouco, o trio elétrico de Claudia Leitte encerraria os espetáculos do Caldas Country 2013. Um caminhão gigantesco fazendo voltas em torno da pista, e o povo doido girando junto. Os mais fissurados ainda iriam para o after de música eletrônica. Findado o festival, as autoridades apresentaram os números: cerca de 7 milabordagens, 84 pessoas detidas, 222 veículos retidos e 53 motoristas autuados. Dois policiais brigaram, um deles saiu bem machucado. Fora isso, não foram registradas ocorrências graves.

Deixamos Caldas Novas pela manhã. Uma parte dos cerca de 100 mil turistas que, de acordo com os cálculos da prefeitura, estiveram ali para o feriadão já caía na estrada. Na saída da cidade, tudo calmo novamente. Pela janela do ônibus, vejo, enfim, um ato transgressor: uma menina que se refresca de roupas dentro de um chafariz.

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