por Luiz Alberto Mendes

Às vezes as palavras soam como cacos de vidro estilhaçados

                    A  MAIOR  DECEPÇÃO

  Às vezes, as palavras soam como cacos de vidro estilhaçados. Não sei como isso se processa, mas pensar no que mais me decepcionou aqui fora traz esse tom, essa coisa pontuda e cortante. Fico pensando em como nós homens, somos insensíveis e insanos. É terrível, principalmente porque sou igual a qualquer pessoa e tenho que me enquadrar naquilo que mais me magoa e revolta no ser humano.

Tudo nos parecia rude e oco de motivações. Lutávamos para sobreviver, embora não fôssemos conscientes disso. Aquela era nossa vida. Claro, também havia o componente da liberdade. As luzes e as cores da cidade exerciam uma atração igual à namorada apaixonada. Tudo era ardência e excitação, embora a mente atopetada de cenas deploráveis. Pisávamos calçadas sem olhar para o céu, inteiramente absorvidos pelo entorno. Tínhamos entre doze a dezessete anos de idade e éramos os primeiros garotos a serem chamados de “meninos de rua” da cidade de São Paulo.

Comecei a fugir de casa aos onze anos. Naquele tempo, a mais de quarenta anos atrás, as calçadas eram largas e os restaurantes tinham suas mesas para fora. As pessoas saiam para almoçar ou jantar fora, aos fins de semana. Quase não havia perigo na cidade de São Paulo. O povo ainda se cumprimentava nas ruas. Recebia-se e se retribuía bons dias e boas noites a pessoas completamente desconhecidas. Viver na capital era um luxo enorme. As pessoas folgavam pelo calçamento. Nós, a geração de meninos de rua a que pertenci, iniciaríamos o susto nos paulistanos.

Pedia comida nas mesas dos restaurantes. Paulista era generoso, mas, como agora, extremamente curioso e metido a resolver a vida dos outros. O pior é que, à época, ainda ingênuos, confiavam nas instituições do Estado. Não sei se o Estado da época era mais confiável. Creio que sim. Os costumes ainda eram rígidos, as pessoas mais ingênuas e honestas. Corrupção era motivo de escândalo. Tudo era mais facilmente acobertado e os acontecimentos mais escabrosos eram convenientemente escondidos. Os meios de comunicação e informação ainda engatinhavam, embora alguns jornais era só espremer para jorrar sangue. Iniciávamos o regime de exceção, os militares haviam tomado o poder e tomavam as primeiras medidas repressivas contra aqueles que os contestassem.

As pessoas que me alimentavam queriam saber de minha família e onde eu residia. Perguntavam: “E sua mãe?” Eu, é claro, mentia descaradamente. Nem sempre acreditavam e às vezes telefonavam para a polícia ou Juizado de Menores. Penso que na melhor das intenções. Julgavam que eu pudesse ser abrigado ou reconduzido à casa de meus pais. Tentavam resolver o problema ou simplesmente passar a bola, livrando a consciência.

A vida me despia e eu não usava roupa alguma, a pele era minha única proteção. Mais de uma vez escutei, abestalhado, um gemido por dentro da escuridão das instituições para menores de idade em que fui encarcerado. E ficava assustado ao perceber que era eu mesmo quem gemia.

A rotina dessas prisões de crianças era estupidificante. Faziam sentir saudades do sofrimento lá de casa. Saudades de meu pai bêbado, vomitando palavrões misturado a comida azeda e querendo me bater. O sadismo dos “valentes” policiais militares superava de longe o desespero de meu pai em querer me dominar a pancadas.

Ficar nunca foi opção. Antes era fugir ou fugir. Estar significava ser violentado pelos rapazes, órfãos ou crianças abandonadas pelos pais e criados pelo Estado, que tomavam conta de nós, ou viver sendo espancados pelos policiais. Não precisava pensar para saber. Nós nos uníamos por necessidade, pela falta de alternativas. E assim fomos nos entre aculturando nos princípios de sobrevivência nas ruas.

Aos poucos fomos nos apossando da cidade. Vivíamos aos bandos depredando, barbarizando; vândalos irreversíveis. Havia um prazer enorme em destruir, quebrar e dar prejuízos a todos que não fossem iguais a nós. Alguém precisava pagar por tudo aquilo.

Juntos, nos entre devorávamos também, autofagicamente. Não havia sentido de lealdade ou amizade. Cada um para si e Deus para todos, dizia-se naquele tempo.        

Somávamos dezenas, os jornais diziam centenas. Tudo era apenas instante, essa liberdade que se perde na impermeabilidade do tempo. A maioria de nós a polícia exterminou antes que chegássemos à maioridade. O Esquadrão da Morte atacava violentamente, semeando cadáveres. Talvez fôssemos os primeiros a não se entregarem e resistir de armas nas mãos, apaixonadamente. Compúnhamos uma geração diferente; cheios de primeiras vezes, frutos da cultura voraz que nos devorava até os ossos.

Vivíamos ávidos, a buscar o que nunca conseguimos saber, sabíamos apenas que precisávamos procurar, irremediavelmente. Tudo parecia um monte de bobagens e trazíamos mentiras por dentro e por fora. Mentiras que vestiam mentiras que, por sua vez vestiam outras mentiras; capas envolvendo capas, interminavelmente.

Hoje, pensando bem, percebo que até fomos privilegiados. Eu, por exemplo, a despeito e a revelia de um pai alcoólatra e sádico, tive a minha primeira infância saudável. Fui menino da periferia; cacei passarinho com estilingue; nadei nas lagoas (ou tentei, jamais consegui aprender direito); pesquei; joguei bola; figurinha a bafo e rodei pião. Brinquei de mãe da rua, mana mula, cabra cega, pique e esconde-esconde. Empinei pipa, maranhão, raia, peixinho, e com cortante, me diverti demais cortando a linha dos outros meninos e sendo cortado por eles. Duelo de habilidades no ar.

Ainda sei fazer qualquer espécie de balão, pipa ou cerol. Era nossa cultura da época. Estive em quermesses, participei de festas juninas com fogueira na porta de casa todo dia e dancei quadrilha com a cara pintada de carvão. Cheguei a concluir o curso primário e fazer a primeira comunhão. Tempos gloriosos; sempre soube que os lembraria com saudades.

Estive, a bem pouco tempo atrás, em uma ONG que cuida das crianças de rua já marginalizadas. Quem a fundou e dirige é uma das pessoas que mais admiro e respeito das que conheci depois que sai da prisão. O que vi e escutei lá me deixou estarrecido. Numa das casas dessa Organização, estão garotas cognominadas de “meninas de rua”, grávidas. Jovenzinhas cuja fragilidade, com aquela barriga maior que elas, me comoveram até as lágrimas.

Toda inteligência me assombra; todo talento me encanta; mas todo sofrimento, particularmente daqueles mais indefesos, me revolta. Angústias inéditas, não pensadas, inteiramente insólidas, me tomaram.

Olhei silenciosamente para a vida e girei os braços, como um naufrago, fazendo sinais a olhos ausentes. Não havia pais. Soube que a maioria delas, após o parto, abandonam a cria e voltam para a vida louca das ruas. As crianças, filhos de crianças, vão cair nos braços de minha amiga e ela os cuida com enorme responsabilidade. Mas o que me assustou é que as crianças já estão nascendo nas ruas, literalmente.

Pensei naquelas que ninguém sabe e nem querem saber, que estão longe de serem atendidas. A vida latejava; herdeiros de futuro destruído antecipadamente, o que será dessas crianças? Quis parar o mundo e suas conseqüências naquele momento. O choque foi violento demais. A quem julgar, a quem condenar? Quem é o responsável por isso? Como é que a vida pode ser assim desprezada, jogada no lixo, como foram encontradas, literalmente, várias dessas crianças que ninguém quer?

Passaram-se mais de quatro décadas e nada foi feito. Até muito pelo contrário. Tudo se permitiu e em todos os sentidos adelgaçou-se, alargou-se. Antes eles até nos prendiam apenas por estarmos nas ruas. Claro, não era para sermos vistos. Ainda havia um certo pudor das elites em relação às crianças da rua. Hoje, junto com a cidade, eles se esparramaram pelos subúrbios que se transformaram em grandes centros de comércio.  

O espaço dos meninos de rua se ampliou. Eu os vi, em minhas andanças, pelos bairros da Penha; Santana; Lapa; Pinheiros; Bela Vista e adjacências. Ainda os vejo pelas ruas centrais de São Paulo. Já não são meninos apenas, como nós éramos. As meninas agora somam um grande contingente. E estão ficando grávidas aos onze, doze anos de idade. Eu as vi nessa ONG que visitei, com suas barrigas enormes ou com seus nenês, tipo bonecas de pano, no colo.

Com exceção desses seres humanos, que se unem nessas Organizações Não Governamentais, ou que prestam serviços em voluntariado, não existe mais nada que proteja essas crianças.

Tudo é real demais, me deixa incrédulo porque as verdades há muito deixaram de ser verdadeiras. Como a FEBEM, por exemplo. Não há solução. Entram diretorias e saem diretorias e tudo continua o mesmo. Estive lá (não era a FEBEM ainda, com esse nome tão hipócrita. Chamava-se Recolhimento Provisório de Menores, não menos verdadeiro, mas...) há cerca de 35 anos atrás. Sou cria daquilo. Os anos se passaram e nada mudou muito. Mesmo depois do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Como fazer diferente se o princípio já esta errado? Já não ficou mais que provado que não se reeduca ninguém prendendo? É possível prender alguém se não for com violência? E como apreender, reavaliar, questionar, essas sutilidades do espírito, sob a pressão constante que é estar preso?

O homem é uma liberdade que expande em todas as direções. Na medida mesmo em que vai tomando o mundo para dentro de si, se arremete ao que abriga. Impedir esse processo natural é colocar esse homem em trincheiras. Ele se transformará em sobrevivente, já que não pode viver. É uma reação que devia ser esperada já que não somos diferentes uns dos outros.

Penso em como uma comunidade que se diz humana pode se permitir a fatos tão desumanos e vergonhosos. Criança é criança em qualquer idade e são todas iguais em suas idades de desenvolvimento. Todo pai de mais de um filho sabe disso. Não sei como as pessoas conseguem estarem indiferentes, olhando nos olhos de seus filhos. Aquelas crianças nas ruas jogadas, não são nem um pouco diferentes deles. Porque amá-los tanto e não ter nenhum espaço no coração para as outras crianças?  É o futuro, a riqueza da nação sendo esparramado ao vento, inconseqüentemente.

 

Luiz Mendes

09/06/2006.  

 

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