Phydia de Athayde
Sidão Tenucci

por Phydia de Athayde
Sidão Tenucci
Trip #84

Uma turma de surfistas quarentões embarcou para um arquipélago na Indonésia à procura do puro surf

Para que serve o surf? Para dourar a pele e completar manobras ou provocar o espírito e elevá-lo a terrenos mais sensíveis e que extrapolam os limites das ondas? Uma turma de surfistas quarentões, que embarcou para um arquipélago nos confins da Indonésia à procura do puro surf, parece não ter chegado a nenhuma conclusão definitiva. Mas foi no processo que encontraram as respostas mais surpreendentes.

Noção espacial

"Aos 48 anos, sinto-me mais forte e pleno para surfar. Envelhecer é se tornar introspectivo e, naturalmente, abrir mão de algumas coisas. Meu mundo vai diminuindo, mas nem por isso deixo de ser pleno dentro dele. Lembro-me de quando comecei a sentir a felicidade total, o nirvana, com o surf. Tinha certeza de que outras coisas também me dariam plenitude e, graças a Deus, comecei a procurar em mim essa auto-suficiência. Daí a ioga, a meditação, o cuidado com a alimentação etc. Assim como encontrei o meu surf, encontrei o trabalho – e com ele ganho grana. Há momentos em que estou produzindo e tenho certeza absoluta de que o que faço tem muita qualidade. Quando fiz a Cadeira São Paulo [de 1982, design premiado e sucesso de vendas até hoje], sabia disso. A satisfação de criar algo com excelência é a mesma de um fim de tarde no mar. O surf me aproxima da vida natural, da praia, do sol, de gestos amplos. E trago isso para os meus trabalhos: espaços grandes, despojados e com elementos da natureza. Sempre busco o jeito mais agradável de atender às necessidades básicas da vida. Design é conforto: somos bichos." Carlos Motta, 48, é arquiteto e designer; surfa desde os 15 anos

Pra pensar

"Voltar-se para a reflexão não é funcional na sociedade capitalista. E o surf faz parar pra pensar. Quando comecei, ele era parte de uma grande contracultura, que questionou muitos valores, e não havia como fazer parte dela sem estar envolvido espiritualmente. Eu soube enxergar um outro espaço para a vida, desenvolver um novo ponto de vista. Trabalho perto da morte e, com a idade, a consciência de que vou morrer me fez procurar viver melhor. Hoje, não faço o que não me interessa nem me aproximo de pessoas que não me fazem bem. Parei de fumar. Talvez não viva até os 120 anos, mas vou viver os próximos 30 muito bem. O surf preenche totalmente a vida, às vezes até demais. E transformá-lo em modo de vida não dá certo, pois há uma contradição aí. Nunca moraria na praia porque, se morasse, não teria me tornado médico. Em tudo o que faço, tento ser pleno, sou totalmente médico, totalmente pró-reitor, totalmente surfista, totalmente o que for." Roberto Teixeira, 47, é Pró-Reitor de Extensão e Assuntos Comunitários da Unicamp, professor de pediatria e médico pediatra; surfa desde os 12 anos

Sempre livre

"Surfar ajuda a segurar a cabeça. Quando surfo, alma e corpo ficam unidos em um só objetivo: o de sentir-se livre. Hoje tenho bem mais condições de fazer a cabeça surfando do que antes, sei dar valor a uma boa onda, a um fim de tarde com os amigos. Hoje me interessa a onda perfeita sem tanta adrenalina, o esporte pelo prazer, não pela competitividade. Se eu cair no meio de uma boa onda, dou risada. Sou eu e o mar." Renato Assad Filho, 40, é cineasta e surfa desde os 10 anos

Calmaria

"Lidar com doenças agride muito a cabeça e pegar onda me traz de volta para a tranqüilidade, me centra. Surfar me dá mais calma no dia-a-dia; fico mais tolerante, aceito com mais facilidade um adolescente rebelde nas minhas aulas. Por causa do surf, sou um médico de cabeça mais aberta, e isso me diferencia de outros da mesma idade que eu. Acho que não envelheço tão rápido quanto eles." Mauro Siqueira Campos, 38, é oftalmologista, cirurgião de olhos, professor da Escola Paulista de Medicina e surfa desde os 22 anos

Sem rapidinhas

"Surfar é tão natural quanto comer, dormir, fazer sexo ou fazer música: está em mim. Hoje, não remo para qualquer onda. Meu surf não é uma ‘rapidinha’. Pego a onda certa, sei me colocar melhor no mar e vou no meu limite. Meu surf é clássico, fluido. Soa como um Santana, um Eric Clapton." José Mutarelli Filho, 40, é músico, ganha a vida com jingles e surfa desde os 9 anos

 

Tubo de ensaio

por Sidney Tenucci*


Parece ser natural, na evolução da maioria dos homens, cumprir estágios definidos nesta vida e, para os felizardos e iluminados pela luz do sol ou de velas, ultrapassá-los, chegar à velhice e morrer dormindo com um sorriso no coração. Não é viagem, é a Viagem. Para chegarmos a isso, passamos pela ênfase no físico (pelo menos no meu caso foi assim – e para todos os garotões ávidos do mundo ainda é: comer todas as gatas, pegar todas as ondas, fumar todos os baseados), depois no mental (aí entra Descartes com seu racionalismo), no emocional (não encarar seus medos, raivas, angústias e mágoas pode dar uma merda federal, vai por mim) e finalmente no espiritual, the Final Voyage, neste plano, onde a descrição, feita pelos "mestres iogues", do estado de perfeição e unicidade com o universo dos espiritualmente prós, por exemplo, é de matar de inveja o mais desprendido dos ascetas. Falar da Morte é falar da Vida, é a mesma coisa em planos diferentes. Nosso mito cultural ocidental faz da morte algo distante, improvável, temível, condenável até! Não é, defi-nitivamente, fashion. É necessário confiar e desenvolver cada vez mais a nossa in-tuição, a única que é capaz de discriminar o fundamental do efêmero. Quanto mais informação, mais o racional se empapuça e perde o chamado "discernimento". Não convivemos com nada que não seja peito e bunda diariamente jogados na nossa cara. Tudo bem. É a tal da Maya, a deusa hindu da ilusão. Quem não sabe sentir e ver através das camadas de bosta que obscurecem a razão vira só bunda, ou só peito.

Então, afinal, do que é que eu estou falando? Do surf, claro. De como ele permeou minha vida e a de meus amigos de forma profunda e indelével. De como, em alguns momentos, ficamos com medo de sermos tragados pela sua magia e esquecer do resto da quinquilharia (absurdo, eu sei) inútil do dia-a-dia. De como a paz só parecia chegar quando estávamos lá fora, boiando em cima de nossas pranchas, olhando o pôr-do-sol, o nascer do sol, o sol, ou apenas nuvens e chuva, fazendo parte do vento e deixando nosso sangue transitar pelas correntezas que nos levavam sempre ao melhor pico. De como o simples ato de remar sozinho, lentamente, num mar deserto de uma praia deserta, faz o tempo parar. Surf, parábola aquática da Vida. Imersão cósmica. Surf, o mestre Zen.

A alma, que está presente em tudo, também chamada de Deus, pode ser alcançada (ou exercida) de várias maneiras, e uma das melhores e mais prazerosas que eu conheço é o surf. Nada contra o cérebro e a carne, o encefálico e o fálico. O privilégio excessivo deste lado da existência é que pega pesado. Ligar-se demais às imagens vazias só dá vazio. É a origem de depressões, insanidades e tumores. Como diria Woody Allen, a expressão mais linda da língua inglesa (ou portuguesa) é: "É benigno!". Desculpe informá-lo, mas somos responsáveis pelo nosso bem-estar e construímos o "benigno" dentro de nós.

Verdade FM
O que os jovens de todas as gerações perseguem é uma visão mítica, algo que não é dito nem ensinado por ninguém, mas que eles intuem ser verdadeiro e habitar no cerne, na essência do seu ser. Essa forma pura que brilha dentro de cada um de nós é constantemente bombardeada e detonada por quase tudo o que nos circunda neste final de milênio. Às vezes se perde. Muita estática pra pegar a estação "Verdade FM". O surf não é a única, mas foi e continua sendo uma das vias de luz. E o som é limpo.

 

Neste momento meu objetivo é bem ambicioso: não expressar ou fazer nada que eu não sinta. Não surfar nem comer nada nem ninguém que não valha a pena. Viver apenas o que reflita o meu interior. Não escrever uma palavra neste texto na qual eu não acredite. Transparência, fé, ambição espiritual, expressão, fluidez, impermanência, flexibilidade (como o bambu ao vento), profundidade, tesão pela vida.

 

O surf ginecológico, explícito, tem seu lugar; mas o que a moçada está sacando cada dia mais é que existe muito mais além disso. O êxtase está ao alcance dos sentidos, não é algo longínquo, improvável ou até potencialmente perigoso como um mosteiro no Tibete, uma caverna no Afeganistão ou um bungee-jump nas cataratas do Niágara. O êxtase está ao lado de casa, desculpe, dentro da nossa casa.

E agora "a pergunta que não quer calar": o cara que surfa a vida inteira é melhor, mais evoluído, mais bacana que os simples mortais? Resposta: não necessariamente. Mas foi lhe dada a massa, o açúcar, a batedeira, o chocolate e a aura. Realizar o bolo a partir daí só depende dele. Além disso, é óbvio, existem inúmeras outras formas de dar um brilho especial à sua vida e torná-la mais plena e significativa. A partir do momento em que você entra no “círculo virtuoso”, tudo conspira na direção do bom combate. Eu, que já morri e já retornei dentro desta mesma vida e vi alguém parecido com Deus – ajoelhamos juntos e choramos de dor ­–, sou um privilegiado: duas encarnações dentro da mesma vida [Sidão teve uma doença grave recentemente, mas recuperou-se]. Uma nova oportunidade de compreender, de sentir as mesmas coisas que eu via sem sentir, de amar todas as pessoas que eu olhava sem perceber. Uma outra chance de conhecer este cara que eu carreguei dentro de mim por tanto tempo. Aquele mesmo garoto de 14 anos que, ao subir pela primeira vez numa prancha, descobriu que poderia trafegar pelas impressões digitais de Netuno e que isso lhe daria inúmeros presentes espirituais, completude e identidade.

Os velhos surfistas, como o havaiano Rabbit Kekai, por exemplo, do alto dos seus 80 anos, são expressões de sabedoria. Ele surfa todo dia. O mito do surf como esporte exclusivamente para jovens (faixa etária) foi amplamente difundindo pela mídia em geral. Mentira. Bull-shit! Não porque os mais velhos (faixa etária, novamente) realizem manobras mais radicais, mas porque sentem mais.

Antídoto Salgado
O excesso de materialismo deste final de milênio – deste lado do mundo – está gerando sofrimentos indizíveis, dores desnecessárias, doenças acima do nível habitual e histórico de incidências, mortes prematuras, infelicidades e outros bichos. O surf é um dos antídotos; nós, cada um de nós, é um antídoto para este caminho errado, para esta bifurcação infeliz. Basta reconhecer e voltar, refazer a trilha. Uma vez perguntaram a Mahatma (Grande Alma) Gandhi o que ele achava da civilização ocidental, e ele respondeu: "Seria uma boa idéia.". O que acontece é que a nossa cultura não dá muito espaço ou importância para o que não é visível ou palpável. O que não é pedra ou carne ou shopping ou Caras não vale. Como se não soubéssemos que o outro tem uma aura, como se não sentíssemos a energia que vem de alguém, como se não tivéssemos certeza – apesar de não podermos tocá-lo – de que Deus existe. Para a minha geração, o surf foi uma via de escape dessa armadilha. Foi poder tocar o mágico e restabelecer a saúde no seu mais amplo sentido, acolher a vida nos seus aspectos mais sutis. Isso nos fazia sorrir.

O que surfar faz por mim é restabelecer o equilíbrio entre estes pólos tão díspares, e tão necessários se bem dosados. Entre o espírito e a matéria, entre o Oriente e o Ocidente, entre Deus e o Homem, entre o Bic Mac e o Infinito, entre o tocar e o sentir. Se conside­rarmos que nossa casa, nosso carro, nosso corpo, nossas próprias vidas são apenas coisas emprestadas durante nosso breve mandato nesta Terra (breve demais, no meu caso, teria expirado há pelo menos 25 anos, não fosse o Teixeira, um dos membros desta expedição, me puxar pelos cabelos em um dia de ressaca ao lado da ilha das Pitangueiras, no Guarujá, quando eu já afundava com cãibra nas duas panturrilhas. Valeu, Tex!).

“O que é que vale realmente? O que é real, pai?”?– perguntou minha filha, e respondi: "As sensações, as percepções, os amores, os sentimentos, as dores, ou seja, as vivências que formatam, shapeiam a nossa alma". Essas são reais. Essas permanecem e são levadas por nós para sempre. Essas podem ou não ser vividas. Depende de cada animal. Mas mesmo as supostamente ruins podem ser transmutadas em maravilhas. Como o surf.
*Sidney Tenucci, 45, é fundador da Ocean Pacific e surfa desde os 14 anos

Créditos

As fotos que ilustram esta matéria foram feitas durante uma surf trip, realizada em abril de 2000, para as ilhas de Mentawaii, Indonésia. Por duas semanas, doze integrantes da primeira geração do surf paulista dividiram as ondas perfeitas do lugar

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