Conto que dói contar

por Luiz Alberto Mendes

Suava, as mãos escorregavam nas manoplas. Os soldados chegariam atirando para matar

DEUS ME PERD0E

        

            Eu corria. Subia calçadas atropelando pessoas, ultrapassando tudo à minha frente. A moto, embora não fosse possante, era rápida e bastante maleável. A polícia vinha atrás. O vento frio trazia o escândalo de suas sirenes. O trânsito estava congestionado. Carros se arrastavam quais baratas tontas pelas ruas e avenidas centrais de São Paulo.

            Suava, as mãos escorregavam nas manoplas. Os soldados chegariam atirando para matar. Estavam preparados para isso. Não me renderia. Morrer era melhor que voltar para prisão. Precisava fugir do trânsito e tomar outro veículo. Carro. Estaria mais protegido e teria maiores chances.

            O assalto fora frustrado. A casa caíra. O segurança do doleiro a quem fôramos assaltar, reagira decididamente. O tiroteio se dera em plena ilha da Avenida Paulista. Meu parceiro caíra baleado no meio da rua. Provavelmente já morto. Policiais militares foram chegando. Fugi na primeira moto que vi por perto, debaixo de chuva de balas.

            Nem tivera chances de atirar e fora ferido. A perna direita queimava, as costas ardiam. Não parecia grave. Não dava para ter certeza. Pelo menos não quebrara nada. Tudo estava funcionando bem. Só me sentia perdendo forças rapidamente.

            Pronto, já saíra do centro novo da cidade. Seguia a Avenida Angélica. As sirenes gritavam ao longe. Qualquer carro já interessava. À direita, um colégio.  Alguns carros estacionados em fila dupla. Escolhi um que manobrava para encostar, o que me pareceu mais veloz.

            Subi na calçada.  Derrubei uma moça que vinha ao meu encontro e prossegui. Nem olhei para trás. A mulher acabara de estacionar o monza branco. Quando foi tirar a chave, quase cai da moto na janela do carro. A arma já estava apontada para sua cara. Ela estava treinada. Quando entendeu que era um assalto, deu com a chave no contato. Insisti veementemente, quase enfiando a arma cara adentro dela. Precisava do carro. Algo iluminou em seus olhos e ela parou, como que transpassada por corrente elétrica de alta voltagem.

            Só então vi o menininho. Tinha cerca de 3 a 4 anos. Estava colado na porta do passageiro. Seus olhos eram redondos, o pavor o dominava. Tremia e parecia querer entrar na porta. Senti meu pé afundar no tênis encharcado de sangue, ao buscar equilíbrio. Meu coração estava explodindo, tudo me doía. A perna, as costas, os olhos daquela criança, a mulher querendo protegê-lo. Desisti, não podia. Não dava.

            Dei no pedal, a cabeça fez uma volta, quase cai, mas acelerei e segui em frente, calçada acima. Sabia que minhas chances haviam diminuído. Perdia forças. Na moto, dificilmente escaparia. Algo me levava, eu me sentia leve, era como uma brisa a me soprar para frente. Quando acordei, estava no hospital, cheio de dores e algemado à cama. Vivo, estava vivo.

            Os anos se passaram. Hoje, década e meia após, depois de transferência abrupta de prisão e seis meses inteiros de saudades, fui receber meus filhos. Haviam vindo me visitar. Ao adentrar à gaiola, formada por barras de ferros, o menor assustou-se. Aproximei-me, sem que pudesse me perceber. De repente, eram aqueles mesmos olhos redondos e apavorados que me perseguiram por dentro da consciência, anos a fio.

            Meu coração apertou, uma mágoa me subiu. Nisso a porta da gaiola foi aberta. Ele me avistou, começou a chorar e correu para meus braços. Recebi-o no ar. Encostei ao rosto e fiquei ali, estupidificado, querendo chorar e sem conseguir, tamanha a dor. Meu filho e aquele menino que eu assustara, eram a mesma criança. Um pai é pai de todas as crianças do mundo. Deus me perdoe.

                                                                                                                     

             Composto por Luiz Mendes em 21\04\2002.   

 

fechar