Comprometimento com a vida

Trip / HIV

por Luiz Alberto Mendes

 

Quando consegui entrar no Sanatório Penal da Penitenciária do Estado no ano de 1989, passei por um drama ético e pessoal que, de alguma forma, resolveu minha vida dali para a frente. Lá estavam os companheiros de prisão infectados pelo virus da AIDS, mas já com a síndrome manifestada. Naquela época nada se sabia sobre o que nós chamávamos, em nossa ignorância, sobre a "doença". A única coisa que sabíamos é que ela poderia nos ser transmitida pelas pessoas já contaminadas pelo virus. E, todos os dias pela manhã, víamos o carrinho do IML sair com vários cadáveres secos, só na caveira, de dentro do Sanatório.

Pensávamos que quanto mais distantes estivéssemos daquela região da prisão, melhor para nós. Não sabíamos como pegava. Suspeitávamos até que os mosquitos que entravam em nossas cela pudessem nos trazer a "doença". E se algum colega começasse emagrecer muito rapidamente e apresentasse alguns sintomas que não entendêssemos, nos apartávamos dele imediatamente. Era "aidético", como se dizia então, preconceituosamente.

Com o tempo, algumas leituras e observando o Rafael, um amigo que vinha da rua e passava o dia no Sanatório, senti vontade de saber como era aquilo de verdade. Criei coragem e pedi para que ele me levasse até lá. Mesmo preso, sempre trabalhei; trabalho significava liberdade na prisão. Na época eu era escriturário do setor de reformas e possuía certa liberdade dentro da prisão. Estava a vinte anos preso e pautava por um comportamento sério e responsável, construindo uma certa confiança em mim.

Dentro daquele corredor de celas, encontrei um amigo que, embora preso e afetado pela síndrome, ajudava na enfermagem (aleijados carregam aleijados, cegos guiam cegos e presos cuidam de presos). Ele me levou aos casos mais graves. Havia pelo menos meia dúzia de companheiros moribundos em pele, osso e inconscientes, esperando a morte. Outra meia dúzia já se aproximando do estágio final. Pneumonia, tuberculose, toxoplasmose, candidíase, sarcoma de carpose, um dicionário completo de doenças oportunistas acabava com eles. Arrastando-se pelo corredor, outros já secos e acabados. Não havia ainda o coquetel. Respirávasse doenças e o cheiro nauseabundo de remédios. Os corredores da morte de algumas penitenciárias americanas não podiam ser mais tenebrosos.

Havia uma decisão a tomar. Correr e ficar o mais longe possível. Arregaçar as mangas e ajudar no que fosse possível. A primeira atitude seria a mais sensata. A segunda parecia incompatível com nosso princípio de sobrevivência. Do que é diferente de nós e pode ameaçar nossa segurança, a nossa natureza se protege. Na verdade, nossa capacidade de gostar das pessoas é limitada. Só conseguimos gostar do que seja parecido conosco, é a questão de afinidades. Não achamos que todos os outros sejam merecedores de nossos sentimentos. Porque devemos nos sacrificar pelos outros? O que isso vai nos render? O individualismo esta profundamente enraizado em nós: primeiro nosso conforto, nossa segurança, estabilidade econômica e depois até podemos pensar nos outros.

Mas, surpreendendo até a mim mesmo, no outro dia eu estava lá novamente. Aquelas pessoas naquele estado de desespero me atraiam e não me perguntem o motivo porque desconheço até hoje. Havia em mim uma necessidade premente de fazer alguma coisa por aquela gente tão sofrida. E contra meu próprio instinto de sobrevivência. Eu não possuía conhecimento de como aquela doença podia nos ser transmitida, mas não conseguia abandonar aquela gente. Para mim sabia a medo e covardia; duas atitudes que sempre combati desesperadamente. E fui frequentando o Sanatório, fazendo amizades e colaborando sem saber direito o que fazer.

Morriam 2 a 3 internos por dia, às vezes até mais. E, como não poderia deixar de ser, chegavam outros para substituí-los. Vinham presos de todas as penitenciárias e comarcas do Estado. Chegavam nus, embrulhados em lençóis, semi-consciente e já quase mortos. Eram centenas, senão milhares os soropositivos no sistema penal, e ali só aportavam os que estavam em piores condições.

E foi ai que encontrei minha utilidade. Os enfermeiros (presos soropositivos em melhores condições) me avisavam sobre os que chegavam. Eu ia na cela em que haviam sido alojados e procurava saber o que precisavam. Procurava saber se a família sabia onde eles estavam e pedia para alguém ligar e avisar. Escrevia cartas, dava selos, papel e envelope para que os que tivessem condições, escrevessem. Trazia-lhes pasta e escova de dentes, sabonete, roupas (uniforme), procurava saber quais suas necessidades mais urgentes e conversava. Chegavam desesperados, achando que morreriam no dia seguinte. Eu oferecia diálogo, apresentava companheiros que estava com a síndrome à anos e que haviam se recuperados (os enfermeiros presos), falava da higiene necessária, dos cuidados para não pegar gripe que virava pneumonia de um dia para o outro. E conseguia lhes dar o que mais necessitavam: amizade e interesse pela vida deles. Nem sabia como, mas todos ficavam meus amigos. Alguns acompanhei até a morte, teve até quem morreu em meus braços, espirrando sangue. Eu tomava café ou suco na mesma caneca deles, brincava com eles fisicamente e nunca tive o menos preconceito. Outros assisti, incentivei a recuperação e me despedi quando voltaram, curados das doenças oportunistas, para as prisões de origem. Jamais peguei sequer uma gripe nesse período.

Passei 4 anos nesse trabalho, até ser removido para outra prisão. Mas eu sentia mais necessidade deles que eles de mim. Era fundamental apoiar, estar junto e ser amigo deles. Sentia-me absolutamente necessário como nunca fora em toda minha vida. Eu me realizei como pessoa naquele lugar. Nunca mais fui o mesmo e tudo em mim se transformou. Naquele ambiente de sofrimento e dor, eu fui mais feliz do que em qualquer lugar do mundo. O que sou hoje tem tudo a ver com aquele momento histórico em minha existência. Não aconteceu ainda, aqui fora, felicidade maior do que alguns momentos de plenitude existencial que vivi naquele Sanatório Penal ao lado de meus amigos adoecidos

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Luiz Mendes

16/12/2014.             

 

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