Mergulhamos no universo da preparação física do tricampeão mundial e do campeão olímpico para entender como é o treinamento de um atleta da elite mundial do surf
O backflip de Gabriel Medina levantou o público que estava acompanhando da areia as finais de World Surf League em Trestles, na Califórnia. O surfista voou alto, aterrissou com perfeição e teve equilíbrio suficiente para comemorar levantando o braço com o dedo apontado para cima. Não parou por aí. Continuou na mesma onda e acrescentou uma rasgada e uma batida para finalizar. Levou um 9.01 dos juízes, a maior nota daquelas finais contra o compatriota Filipe Toledo, no dia 14 de setembro. Uma onda que garantiu o terceiro título mundial de Gabriel, e que envolveu manobras de muita força, velocidade, estabilidade e potência. Quatro variáveis que agora são frequentes no vocabulário dos preparadores físicos dos surfistas da elite mundial.
Para começar a explicar a destacada performance de Medina na etapa decisiva do WSL, é preciso voltar um pouco no tempo. A reta final da preparação do surfista havia começado 15 dias antes. Ao lado do preparador físico Allan Menache, que o acompanha há mais de 10 anos, ele cumpriu fora d’água uma rotina diária de exercícios elaborada estrategicamente para responder às exigências de uma onda como Trestles.
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Allan explica: “Para surfar essa onda, que pode ser uma direita ou uma esquerda, que é longa e possibilita muitas manobras, ele precisa estar com a estamina necessária. Precisa cumprir com uma sequência de exercícios que desafiam o corpo em movimentos completos, integrados, produzindo potência, força, agilidade e coordenação. Focamos muito nos trabalhos metabólicos nesses 15 dias.” Como, exatamente? “Primeiro treinamos ganho de força, ajuste da antropometria. A gente sabia que ele ia subir um pouco o peso nos primeiros dias por conta dos treinos de força e potência. Ele ganhou massa muscular, está forte e resistente. Fizemos muito trabalho de core, de força central, de várias maneiras. E de resistência”, contou o preparador físico de Medina, por telefone, pouco antes das finais nos Estados Unidos. Mas, claro, não foram somente esses 15 dias de treinamentos específicos que garantiram o tricampeonato mundial. Essa história começa antes. Muito antes.
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Allan Menache começou a estudar o treinamento físico para o surf há mais de dez anos, quando alguns amigos o procuraram para melhorar a performance na água. “A ciência por trás disso ainda era muito escassa, começamos a criar um conhecimento todo novo para o treinamento do surf”, lembra. “Antes o surfista tinha práticas corporais como yoga, pilates, trabalhos de mobilidade, e não tinha muita interação com trabalho de força e de potência, o que realmente faz a diferença num programa de preparação física para o alto rendimento”.
Para solucionar esse déficit, Allan decidiu inovar. “Comecei a implementar com os surfistas conceitos que outros esportes utilizam com seus atletas para torná-los mais rápidos, mais potentes, mais velozes, mais fortes, mais móveis e mais flexíveis. Sempre levando em consideração, é claro, as necessidades do surf, entendendo que cada onda tem uma especificidade e também a individualidade biológica de cada atleta. Assim conseguimos desenvolver um programa de treinamentos específico para o surf”. Com essa estratégia, a equipe de Allan já participou da preparação de vários surfistas da geração chamada de Brazilian Storm, como Jadson André, Adriano de Souza, Caio Ibelli, Italo Ferreira, Miguel Pupo e Matheus Navarro, além de Gabriel Medina.
Força para voar
Os treinamentos físicos dos surfistas de elite começaram a ser cada vez mais focados na força e na potência por uma razão: os aéreos. Na última década, a manobra ganhou importância na avaliação dos juízes do circuito mundial. E, para voar alto, é preciso estar bem preparado.
“Um atleta que voa 2 metros de altura e aterriza na base da onda sofre um grande impacto”, explica Allan. “Para voar, ele precisa produzir potência, principalmente dos membros inferiores e do core, para poder se projetar. Depois, para aterrissar em segurança, ele precisa ter um conjunto corporal muito forte, e essa força parte do centro do corpo. Então, o core trainning é uma parte muito importante da preparação física. Quando temos esse centro fortalecido é possível treinar membros inferiores, potência e mobilidade de uma forma segura e transferir isso para as atividades do surf. É um entendimento moderno, contemporâneo, que revolucionou a preparação física do surfista”.
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Em outras palavras, foi a evolução das manobras do surf que obrigaram o treinamento físico a se transformar. E Allan não é o único que atribui aos aéreos essa mudança. O fisioterapeuta Hygor Siqueira, um dos responsáveis pela preparação do campeão olímpico e mundial de surf Italo Ferreira, pensa da mesma forma. Mas esse entendimento, de que a preparação teve que se adaptar à evolução do esporte, já gerou desconfiança no mundo do surf.
A rotina de exercícios proposta por Hygor quando começou a trabalhar com Italo, há quatro anos, foi bastante questionada. “Falavam que ele ia ficar muito pesado porque estava fazendo agachamento com mais de 100 quilos”, lembra. “Eu respondia que ele precisava estar forte para fazer os aéreos e, principalmente, para aterrizar com uma qualidade melhor, evitando lesões”. Os títulos que vieram nos anos seguintes, de certa forma, provaram que ele estava certo.
Essa evolução – das manobras e do treinamento – fizeram com que o surf praticado nos campeonatos ganhasse um conceito diferente. “O surf tem muito isso do lifestyle, mas hoje em dia é alta performance", diz Hygor. "Se você vê Gabriel, Italo e Filipe surfando num campeonato, há muita diferença se comparado aos surfistas das antigas em termos de potência, execução de manobra, aéreos. Isso é uma evolução do esporte”.
Para atender às necessidades de um esporte cada vez mais de alto rendimento, a preparação física dos atletas da elite do surf também conta com a ciência e a tecnologia. O dia a dia de treinamento de Gabriel Medina, por exemplo, inclui uma plataforma tecnológica para medir a evolução do desempenho do atleta através do salto vertical. “É como se fosse um tapete conectado a um computador. As medidas diretas que eu tenho são a altura do salto, o tempo de voo e a velocidade em metros por segundo. É um dado super objetivo e direto de como ele está performando", explica Allan, preparador físico do atleta. "Se ele consegue aplicar força contra o solo com uma potência X, voa numa altura Y e com uma velocidade Z, eu sei que na água ele vai conseguir aplicar essas mesmas variáveis e vai colocar nas manobras aéreas dele muita altura e muita capacidade de desaceleração na hora da aterrissagem. Com isso, conseguimos avaliar em tempo real, treino a treino, se o Gabriel está fatigado ou disposto. Assim vejo quanto eu posso exigir dele a cada treinamento”.
Um treino para cada onda
No início de cada temporada do circuito mundial, Italo e Gabriel passam por uma avaliação médica para analisar as condições de chegada das férias. Com base nos resultados, é traçada a rotina de treinamentos físicos que será executada pelos atletas durante quase todo o ano. Vários fatores, no entanto, fazem com que esse plano seja constantemente ajustado. “Revisamos o programa semanalmente ou até diariamente”, comenta Hygor, fisioterapeuta de Italo. “Quando ele está em casa, na Baía Formosa, efaz diariamente uns três treinos de surf e um de força. Mas se é um dia com muita onda, são até quatro quedas na água… Aí temos que diminuir um pouco a academia”.
As condições do mar, aliás, são a principal razão de ajustes na rotina de treinos físicos dos atletas. Explica-se: durante uma temporada do circuito mundial de surf, um atleta encara vários tipos de ondas. Algumas são mais pesadas, outras mais rápidas, podem exigir mais força, mais mobilidade, etc. E o atleta tem que estar preparado fisicamente para responder a cada uma dessas exigências.
“A gente pensa etapa por etapa”, conta Hygor. “Teahupoo (Taiti), por exemplo, é uma onda pesada. Ele precisa estar mais forte e um pouco mais pesado, então trabalhamos muito volume para ganhar massa muscular. Quando tinha a etapa de Keramas (Bali), Italo tinha que estar um pouco mais leve, então a gente tinha exercícios de agilidade, mais cardiorrespiratório”.
“As ondas trazem desafios diferentes”, acrescenta Allan, preparador de Medina. “Eu posso surfar Hossegor com 5 pés ou com 12 pés. Essas condições fazem com que o treinamento tenha que abordar diversas frentes. Esse é o grande desafio, entender cada onda, cada atleta, cada momento, e que estrutura existe para atender a todas estas demandas. Então é uma ciência mesmo. É uma engenharia do treinamento”.
Fome de títulos
Naquele 27 de julho de 2021 em Tsurigasaki, no Japão, dia da final olímpica em que conquistou a medalha de ouro, Italo Ferreira saiu da cama antes mesmo do sol nascer, assim como faz sempre. Tomou um café puro, sem açúcar, pegou a prancha e foi para o mar. “Depois do surf, comi meu café da manhã nordestino: cuscuz com ovo, banana e uma tapioca”, lembra Italo no papo com a Trip, acrescentando que sua nutricionista o ajuda muito na alimentação.
A nutricionista, no caso, é Larissa Castro, que trabalha com o atual campeão olímpico desde 2018. Na verdade, Larissa prefere dizer que orienta Italo há quatro anos. No chat no WhatsApp entre a profissional e o surfista, são fotos e mais fotos de pratos de comida. Larissa explica: “Apesar de existir um planejamento alimentar, como ele viaja bastante é difícil seguir uma dieta à risca. Então eu peço pra ele sempre mandar fotos das refeições para eu dizer: ‘Olha, Italo, aumenta um pouco a proteína’ ou ‘aumenta um pouco o carboidrato’”.
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As orientações de Larissa não são ao acaso. A alimentação e a preparação física estão sempre de mãos dadas e são planejadas em conjunto. "Penso nas quantidades de carboidratos e proteínas de acordo com os treinos dentro e fora d’água", conta ela. "É fundamental ter em mente a recuperação muscular pós-treino e a energia para a seguinte rotina de exercícios do dia".
Aliás, a ingestão de calorias, assim como o treinamento físico, também é programada para cada tipo de onda. “O Italo sabia que as ondas no Japão seriam menores, então ele pediu para estar mais leve”, conta Larissa. “Conseguimos fazer ele viajar com dois quilos a menos. Hoje ele está em sua melhor fase em termos de composição corporal, pesando 68kg com um percentual de gordura de 6%. Para mim, o mais importante é que ele se sinta bem, leve e com energia”.
Assim, integrados, os planejamentos alimentar e físico de Italo têm dado resultados. "Sou muito grato por ter esses profissionais comigo”, diz o surfista. “Entendo que são uma parte essencial para minha preparação física e até mental”. Naquele dia 27 de julho em Tsurigasaki, Italo saiu do mar e entrou para a história como o primeiro campeão olímpico de surf.
O mesmo acontece com Gabriel Medina. Durante a reta final de 15 dias de preparação na Califórnia para a etapa de Trestles, descritos no início desta reportagem, o preparador físico Allan Menache disse em conversa por telefone com a Trip: “Acredito que o Gabriel está bem ajustado para as finais aqui. Ele bateu todos os recordes nos últimos dias do camp, nunca saltou tanto como está saltando agora, está on fire”. Allan tinha razão. O backflip que garantiu o tricampeonato mundial do surfista confirmou sua previsão.
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Imagem principal: Miriam Jeske / COB & Ryan Miller / Red Bull Content Pool