As ondas de Rodrigo Matsuda

por Bruna Bittencourt
Trip #286

Nem um tsunami e um incêndio foram capazes de fazer ele parar de sonhar. Rodrigo Matsuda é um dos poucos shapers no mundo a se formar nas avançadas técnicas de carpintaria japonesa

Rodrigo Matsuda está vivendo em um apartamento emprestado, na cidade de Shinshiro, no leste do Japão. Tudo na casa chegou como doações vindas de várias partes do país e até da vizinha Austrália, depois que a notícia de que sua casa, destruída por um incêndio (cuja a causa ainda está sendo investigada), chegou aos jornais e à TV local. Rodrigo havia acabado de se mudar para lá. Por sorte, ele, sua mulher, Andréia, e sua filha, Naomi, não estavam na hora do incidente que lhes deixou apenas com a roupa do corpo. Dos passaportes da família às ferramentas de Rodrigo, tudo virou cinzas. Um dos poucos shapers do mundo a se formar nas avançadas técnicas de carpintaria japonesa, o brasileiro retoma, aos poucos, o trabalho. Apesar da tragédia, ele não deixou de sorrir. Rodrigo está acostumado a recomeços.

Há quase 20 anos, ele decidiu trocar o Brasil pelo Japão. Na época, fez um único pedido à agência de empregos que cuidava do trâmite: a fábrica em que seria operário deveria ficar perto do mar. O brasileiro foi então alocado em uma fábrica de pneus, na mesma Shinshiro, a 30 minutos da praia. Trabalhava 12 horas diárias por quatro dias seguidos, folgava dois e voltava à linha de montagem para outros quatro dias, mas em um turno que atravessava a noite e a madrugada. “No começo, era surreal, mas fui acostumando.” Quando saía do batente, ainda tinha disposição para ir para a praia, com outros colegas que também pegavam onda. O surf era uma forma de distrair a saudade que sentia do Brasil e o levaria, anos depois, para longe da fábrica.

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Rodrigo, 38 anos, começou a surfar no Guarujá (SP), por influência dos primos. “Sempre quis trabalhar com surf. Antes de sair do Brasil, queria fazer prancha, consertava algumas, mas tenho bronquite. Minha mãe falava: ‘Não dá para você trabalhar com isso, é muito tóxico, você vai morrer!’”, se referindo às resinas utilizadas para a laminação das pranchas.

“Culturalmente, o surf aqui é diferente. Quando um japonês decide pegar onda, ele procura saber como nasceu o surf, quais são os equipamentos”
Rodrigo Matsuda

O paulistano sempre gostou de trabalhos manuais e, desde os 12 anos, trabalhava com o tio, ceramista, que fazia vasos de ikebana e tinha uma loja no bairro da Liberdade, em São Paulo. O pai – segunda geração dos primeiros imigrantes japoneses que desembarcaram no Brasil pelo porto de Santos, no início do século passado – era professor de judô. “Apesar de a gente seguir muitas tradições orientais, nossa família não é rígida como dizem que a japonesa é.”

A paixão pelo surf e pelas pranchas atravessou a adolescência e levou Rodrigo à faculdade de desenho industrial, que ele trancou para trabalhar no Japão e financiar os anos que faltavam. Era 2000 quando ele desembarcou no país, aos 19 anos, sem falar japonês. A princípio, seria uma temporada de um ano, que se estendeu por mais de uma década, em que ele se casou com Andréia e teve sua filha, hoje com 12 anos. “É difícil se acostumar com o país em um ano e meio. Tudo era novo e isso me cativou a ficar mais”, lembra. “Culturalmente, o surf aqui é um pouco diferente. Quando um japonês decide pegar onda, ele procura saber como nasceu o surf, quais são os tipos de equipamentos... No mar, há muita diversidade de prancha, enquanto no Brasil tem muita short board.”

“Apesar de a gente seguir muitas tradições orientais, nossa família não é rígida como dizem que a japonesa é.”
Rodrigo Matsuda

Rodrigo começou a pesquisar 
sobre o tema e se deparou com as alaias, as primeiras pranchas surfadas no Havaí, no século 19, feitas de madeira maciça e sem quilha. “Não são pranchas para iniciantes. Literalmente, você tem que reaprender a surfar. Por não ter quilha, ela provoca menos atrito e proporciona mais rapidez, o que torna 
o surf bem desafiador”, diz. “E a durabilidade dela é muito maior que a de uma prancha convencional.” Por serem feitas a partir de matérias-primas naturais, que não prejudicariam sua saúde, as alaias significavam para Rodrigo uma maneira de realizar seu sonho de se tornar shaper.

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Mas o caminho não seria curto: o brasileiro levou um ano e meio para fazer todos os cálculos de sua primeira prancha de bambu, em 2007. Por uma manobra da vida, ganhou um mentor: foi a um festival de pranchas alternativas, na cidade de Omaezaki, na costa leste do Japão, e, em meio a uma chuva forte, Yuichi Endo, um dos melhores shapers japoneses, chamou Rodrigo, que estava com a esposa e a filha pequena, para se proteger em seu estande. O brasileiro mostrou suas pranchas e começou a frequentar a fábrica dele, sem abandonar a linha de montagem de pneus. Com o tempo, as críticas do mentor viraram elogios; ele já reconhecia no shaper um estilo próprio.

Tsunami

“Foi uma sensação boa e ruim sair do Japão na época: dava a impressão de que estava fugindo, mas eram menos três pessoas para alimentar”
Rodrigo Matsuda

Mas a maré o levaria de volta ao Brasil. No início de 2011, seu pai perdeu a visão por causa da diabetes. “Resolvi retornar para cuidar dele e fazer pranchas de lá.” Sua decisão coincidiu com o maior terremoto já registrado no Japão, que provocou o tsunami e o acidente nuclear de Fukushima, matando 16 mil pessoas. Rodrigo estava em Toyokawa (leste do país), longe do epicentro, mas a cidade sofria com muitos terremotos secundários. “A comida estava acabando nos mercados, faltava energia elétrica. As pessoas queriam comprar minha passagem para ir embora”, lembra. “Foi uma sensação boa e ruim sair do Japão na época: dava a impressão de que estava fugindo, mas eram menos três pessoas para comer a comida deles, usar a energia deles...”

Foi um recomeço voltar ao Brasil. “Entrar no mercado brasileiro não foi fácil, não conhecia mais ninguém.” Ele achava que teria um emprego tradicional, fora do surf, e que faria as pranchas em paralelo, mas as encomendas foram chegando. Fincou a Lasca, sua marca, no Guarujá, com a ajuda da esposa, que hoje faz toda a parte de acabamento dos produtos.

Apesar do êxito, ele se sentia em débito com o Japão. “Queria agradecer, mostrar minha evolução. Comecei a estudar cada vez mais, meu conceito ficou mais polido.” Retornou ao país para uma temporada, em 2013, mesmo ano em que seu trabalho foi citado pelo The New York Times em uma reportagem sobre alaias. No Japão, reencontrou os amigos e vendeu as pranchas que tinha. Hoje, exporta suas alaias, que custam cerca de R$ 1.200, para Espanha, Portugal, Indonésia e Inglaterra, além de shapes de skate e handplanes (pranchas de mão usadas para o surf de peito, o clássico “jacaré”). Nomes como o surfista brasileiro Caio Vaz e o filmmaker havaiano Jack McCoy já compraram pranchas dele.

Em 2019, retornou pela terceira vez ao Japão, para cursar a Suikoushya International Craft School, em Quioto, tradicional escola de carpintaria japonesa, que ensina técnicas que não utilizam pregos, cola nem parafusos. Com isso, aperfeiçou os métodos que usa nas pranchas. “Sou o único da América 
do Sul a concluir o curso.”

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Rodrigo hoje surfa pelo sul do Japão. “O país tem essa fama de não ter onda boa, mas pego ótimas ondas, com fundo de coral e menos gente, diferentemente de Chiba, onde será a Olimpíada.” Palco para a estreia do surf na competição, Chiba (a uma hora de Tóquio) é reconhecida como uma surf city por ter muitos surfistas e surf shops – e não pela qualidade das ondas.

O brasileiro tenta agora tirar do papel um projeto para realizar durante os Jogos Olímpicos: abrir um espaço temporário, próximo ao torneio de surf, para reunir artistas, shapers e pranchas de matérias-
primas naturais. A ideia é mostrar ao público um outro lado do esporte, além da competição. “O surf competitivo evoluiu muito no Japão, e o mercado é grande”, diz. “Por outro lado, há esse movimento de pranchas de madeira, de ótimos surfistas amadores que não estão nem aí para quem está no campeonato.”

Alguma das pranchas que ele levaria ao projeto queimaram durante o incêndio, além de outras já encomendadas. Rodrigo trabalha agora para refazê-las. “Foram vários recomeços. Esse vai ser moleza, já estamos mais experientes. Bora pra cima!”

Créditos

Imagem principal: Arquivo Pessoal

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