Milly Lacombe: De quantas derrotas é feita uma vitória?

por Milly Lacombe

Não somos Bruno Fratus nem Ana Marcela, mas temos nossas doses de conquistas e fracassos. A Olimpíada também fala sobre isso e nos ensina a perder, vencer, cair, levantar e, mais importante, recomeçar

Numa outra encarnação eu fui triatleta. Nessa encarnação, vivida nos anos 80, eu acordava às quatro e meia para pedalar, nadava na hora do almoço e corria à noite. Tinha 24 anos e a certeza de que minha vida deveria ser devotada ao esporte. Depois de tentar me profissionalizar no futebol e de quase ser devorada por minha mãe, busquei um esporte que a deixasse menos chocada e minha canela menos roxa.

Quando comecei a competir eu chegava sempre em primeiro ou em segundo lugar na minha categoria. Chegava em primeiro quando só tinha eu competindo na categoria; e em segundo quando tinha uma outra na categoria. Pedia para que meus amigos fizessem a foto do pódio bem fechada, para não mostrar os lugares vazios no púlpito.

Um dia, depois de me consagrar campeã mais uma vez, meu treinador veio me dar os parabéns. Nesse dia eu disse a ele o que me parecia óbvio, mas que até aquele instante ainda não tinha sido verbalizado: “Vitão, só tinha eu na minha categoria, meu único mérito foi o de ter me mantido viva”. É estranho verbalizar as coisas ruins e vergonhosas porque elas ganham vida e parece que vão nos engolir. Mas é também importante porque foi ao conseguir colocar em palavras o que era para mim um fracasso eu escutei o que, naquele momento, precisava ouvir.

Vitão me disse: “Não-não. Você chegou antes de todas as que não vieram, de todas as que estão agora no sofá, de todas as que nem sabem o que é acordar antes das cinco para se dedicar a um sonho”. Nunca mais esqueci a resposta dele. De fato, havia em meu esforço e disciplina uma certa beleza poderosa.

Algumas lições ficaram comigo a respeito da vida de atleta. A primeira delas é: numa subida, é melhor não olhar para cima. Olhar sempre o passo ou a pedalada que está sendo dado e dada. Uma depois da outra. Olhar o final da subida pode ser desesperador.

A segunda é a de que a grande competição é sempre contra o tempo de ontem. Não existe de fato o outro ou a outra a ser vencido ou vencida. Somos viajantes interplanetários nessa nave chamada Terra, que se desloca a uma velocidade de dois milhões de quilômetros por hora de carona na Via Láctea – provavelmente em direção às constelações de Leão e de Virgem –, estamos condenados ao mesmo destino e tudo o que podemos fazer é tentar ser melhor hoje do que fomos ontem.

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Essas lições voltam pra mim mais fortes durante os Jogos Olímpicos. Vendo Ana Marcela dar suas braçadas rumo à eternidade pensei quantas derrotas e fracassos faziam parte daquele momento. Só ela pode saber, mas a gente pode imaginar porque todo mundo tem uma história de superação para contar. Nem todas são registradas em vídeo, nem todas valem pódio ou medalha, mas todas são motivo de orgulho.

Bruno Fratus, o nadador que foi bronze nos 50 metros, não ganhou uma medalha nos Jogos do Rio embora fosse um dos favoritos. Saiu da piscina entre a tristeza e a fúria, foi grosseiro com a repórter que quis saber como ele estava se sentido, entrou em depressão, pensou em abandonar o esporte. Só Fratus sabe a dor e o abismo emocional que enfrentou nos dias que se seguiram àquela prova. 

Perdeu patrocínios, perdeu confiança, perdeu relações. Só Fratus sabe que tipo de potência foi preciso mobilizar para decidir voltar à nadar. Hoje a história é uma história de sucesso, mas de quantos fracassos ela é feita? De quantas desistências, de quanta lágrima, de quanto sofrimento?

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Fico sempre pensando que teve o dia em que Bruno voltou à piscina. Voltou a colocar a sunga, a se alongar antes de mergulhar, a pular na água e dar a primeira braçada, que seria a braçada que o levaria ao pódio em Tóquio. O que passou por sua cabeça? Quantas milhões de vezes teve que escutar a voz que dizia: "Deixa isso pra lá, imagina passar por tudo de novo, tantos treinos, tanto esforço… Esquece, você tá ficando velho para isso…" 

O tempo da vida é um tempo tinhoso, peralta, safado. Ele não é o tempo da nossa pressa, da nossa angústia, do nosso medo. Ele existe navegando soberano ao nosso lado, como quem sabe que um dia desejo e realização vão se encontrar. Confiar na vida é escutar o universo dizendo: “Vai ficar tudo bem”.

Não somos Bruno Fratus nem Ana Marcela, mas temos nossas doses de vitórias e derrotas, conquistas e fracassos. Os Jogos falam sobre essas coisas de modo bastante alegórico e estético. Ensinam a gente a perder, a vencer, a cair, levantar e – mais importante – recomeçar.

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Recomeçar é, de todas as coisas dessa vida maluca, a mais maravilhosa. Porque a todo instante nos é dada essa chance. Recomeçar agora, por que não? 

Viver não é para amadores e existir é a coisa mais difícil que já fiz. Um dia depois do outro, uma passada depois da outra. A dimensão da tragédia faz parte dessa jornada humana e é preciso saber acolhê-la. O final de nossas histórias, afinal, sabemos qual é – e ele não parece assim muito convidativo embora, quem sabe, talvez seja. Mas é exatamente porque essa dimensão da tragédia está dada a todos nós viventes humanos, que a dor e o sofrimento não podem ser causados por injustiças políticas e sociais.

Racismo, machismo, LGBTfobia, misoginia, fascismo, exploração, opressão, repressão: nada disso deveria estar pra jogo e contra essas forças estruturais e estruturantes precisamos nos levantar todos os dias até que sejam definitivamente eliminadas. Aí sim, nesse dia, poderemos todos e todas nos dedicar a encarar a real dimensão da tragédia em nossas vidas – a finitude e as perdas – e, juntas e juntos, nos ajudar a enfrentar o que temos pela frente. Fica menos difícil, mais bonito e mais divertido assim.

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Imagem principal: Reprodução / Divulgação

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