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Com o Inferno, não tem perhaps

Sonhos de um colunista abismado com a realidade

Por Redação

em 21 de setembro de 2005

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Vou fazer uma confissão: tenho preguiça de ler. Não consigo evitar. Mas com Inferno, livro de Patrícia Mello, foi diferente. Foram 350 páginas devoradas em cinco dias. Por quê? Só consegui descobrir mais tarde: me identifiquei com a trama.

O livro conta a história de José Luiz, garoto pobre da favela do Rio, filho de Alzira, empregada doméstica, e irmão de Carolaine – mãe precoce de dois filhos, que sonhava com as novelas. Um dos filhos era de Walmir, pastor evangélico da favela, que condenava os pecadores, mas pecou com Carolaine.

José Luiz sonhava em ser bem-sucedido, mas conseguiu aquilo que seu campo de possibilidades permitia: virar dono do tráfico no Morro dos Marrecos. E acabou perdendo tudo depois.

Por que eu me identifico? Bom, o livro não é sobre a favela ou sobre pobreza, mas sobre sonhar, mesmo quando fica quase impossível sonhar.

José Luiz, quando era criança, queria trabalhar de olheiro para Miltão, o antigo dono do morro. Eu passei a adolescência fazendo estágios com vários Miltões.

José Luiz apanhou da mãe porque comeu o Danoninho da patroa. Eu tive Danoninho em casa, mas, como qualquer um, já tomei vários tapas por querer aproveitar do que não é meu.

A história é tão boa e triste que fiquei com inveja de quem vê novela. Por dois motivos: lá a vida é mais fácil, mais cheia de dança e clones. O segundo é por causa da seção Gloria Perez responde. Eu teria várias perguntas para a Patrícia Mello. O que aconteceu com o Zé Luis depois de perder tudo? E a Alzira e a Caroline? E pastor Walmir tem ou não algum parentesco com o Garotinho?

No Brasil, dá vontade de pedir desculpa por ter um carro, internet ou computador. Pior foi quando descobri que minha empregada doméstica está entre as pessoas 20% mais ricas do país: se sua renda é maior ou igual a três salários mínimos, você está entre os 20% mais ricos do Brasil e, por isso, é considerado rico.

Você, leitor, por estar lendo esse texto via internet, uma vez que só existem 8 milhões de internautas no Brasil, provavelmente deve ter o mesmo problema, se sentindo um milionário num país pobre.

Mas, por falar na empregada doméstica rica, convém contar como ela chegou até aqui. Ela é amiga de Júlia, a antiga empregada. Assim como Alzira do livro, Júlia tem uma filha que teve filhos na adolescência. Um deles, por causa da gravidez precoce, nasceu deficiente mental. Júlia largou tudo em SP – o emprego inclusive -, foi para Fortaleza com seu novo marido e deu todo seu dinheiro para ele construir uma casa com ela lá. Júlia sonhou, como Zé Luiz, como eu e como o leitor que também sonha.

No livro, Carolaine também sonhou, com o Pastor Evangélico Walmir, um cara de luxo no meio da favela. Carolaine chorou quando engravidou e ele lhe disse que era casado. Chorou mais, quando descobriu no enterro de Walmir, que ele não era casado, mas sim era solteiro e um pouco rico. Carolaine, como Noemir e empregada rica que trabalha aqui em casa, gosta de novelas. Noemir também é evangélica, mas graças ao estudo da Bíblia consegue deixar orgulhosa bilhetes pela casa. Sem erros de português. Sem ‘conzinha’ ou ‘alembro’. Júlia, coitada, não conseguia.

E lá vem outro tapa na cara. De acordo com o historiador Luís Felipe de Alencastro, existem outros fatores, além da miséria, que seguram a concentração de renda no Brasil. Dados históricos (durante o período da escravidão havia uma relação de 200 mil brancos para 150 mil escravos na cidade do Rio de Janeiro) mostram que o carioca gosta de ter empregados – doméstica, chofer, porteiro, não sabe viver sem eles. Quando comecei a pensar em criticar os cariocas, fiquei mudo. Pensei na Júlia, pensei na Noemir.

Torci então por Júlia. Tomara que a casa dela seja bacana lá em Fortaleza. Tomara que ela vire uma pequena agricultora. Tomara que Júlia dê certo. Júlia tem iniciativa. Ela ligou ontem aqui em casa. Parece que sua viagem não deu certo. Que seu marido não construiu a casa. Que seu marido lhe roubou o dinheiro. Parece que seu marido era casado. Júlia sonhou, eu sonhei, José Luís sonhou. Com Inferno, não tem perhaps.

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