Cicatrizes de torturas

por Luiz Alberto Mendes

 

Marcas da Dor

 

Se nos ouvisse, provavelmente não entenderia nada.  Ficaria espantado se entendesse. Éramos jovens prisioneiros e estávamos na Penitenciária do Estado. Todos provenientes de instituições para menores de idade do Estado. Se somassem a quantidade de anos de pena que tínhamos a cumprir, seria bem mais de mil anos.  

Falávamos gíria oriunda da nossa cultura, criada dentro do Juizado de Menores (hoje, Fundação Casa). E o assunto, às vezes, por incrível pareça, era sobre cicatrizes. Marcas deixadas em nós pelas torturas, espancamentos, tiros e facas que fôramos vítimas. De repente me lembro disso 40 anos depois.

Eu era dos que tinham mais marcas e ainda estava com balas no corpo. Aquelas marcas pretas, róseas ou roxas eram nossos títulos de honra. Significava que havíamos atravessado infernos de fogo. E, principalmente, não havíamos falhado. Éramos firmes, confiáveis. Um “malandro” tinha o dever de arcar com suas consequências. E havia (e ainda há) gente enganada com o crime aos montes. Eu mesmo era um desses bobalhões que estava de “gaiato” no navio.

Na época, os dedos dos meus pés e das mãos ainda infeccionavam. As unhas cresciam irregulares: haviam sido esmagadas a pauladas. Ainda não podia usar sapato. Não sem dor. As solas dos pés esfriavam e inchavam. Era preciso colocar várias meias no frio. Estava cheio de marcas de queimadura de cigarro e charuto. Meu corpo tinha hematomas que pareciam perpétuos. Minha cabeça ainda saia pontos na unha quando coçava. Parecia o mapa do inferno. Um amigo tirou uma bala de meu braço com uma gilete, no páteo de recreação. Eu me orgulhava de meus ferimentos. 

Ficávamos ali no pátio, ridículos, a exibir marcas, ferimentos e machucaduras qual fossem nossos mais valiosos troféus. E eram. Havíamos resistido e isso não era pouco. Uma pequena minoria conseguia sair sem manchas das mãos dos torturadores. Um companheiro meu de palhaçadas não suportou. Foi buscar outro parceiro que estava em sua casa. Acabou se enforcando na prisão, com a consciência pesada.

 Nem sei por que me lembrei disso agora...

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Luiz Mendes

27/06/2012. 

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