Baseado na Rocinha, o Centro de Escalada Urbana transforma a vida de jovens das favelas cariocas com aulas de alpinismo
Quando Jonas Caetano contou aos pais que queria praticar escalada, ouviu: “Tá inventando moda!”. Filho de um vigia noturno e de uma empregada doméstica, o garoto, morador da Rocinha, tinha acabado de conhecer o Centro de Escalada Urbana (CEU), projeto que ensina o esporte para jovens das favelas cariocas, mas viu seu interesse pela prática ser recebido com bastante desconfiança. “Eles acharam loucura total”, lembra ele. “É que os equipamentos são supercaros e ainda acharam que eu estava me arriscando, porque a gente não conhecia escalada, não sabia o que era”, conta.
O CEU é uma iniciativa do americano Andrew Lenz, 37 anos. No início, o estrangeiro encontrou dificuldades para conseguir alunos, mesmo tendo contatos na comunidade por conta de outros projetos sociais em que colaborou. Ele explica que havia resistência dos pais e dos próprios meninos: “Ninguém sabia quem era esse gringo maluco que queria levar eles para subir a pedra. E as pessoas também não entendem muito bem o que é escalada, acham que é coisa de doido, que você vai cair e vai morrer. Mas não é isso”.
Primeiros metros
Andrew deixou Houston, no Texas, e veio morar no Brasil com o pai em 1998, aos 16 anos, mas voltou em seguida aos Estados Unidos para fazer faculdade. Mudou-se de vez para o Rio de Janeiro em 2003, quando começou a trabalhar em uma ONG que apoiava projetos locais e atuou em várias favelas, principalmente na Zona Oeste e na Zona Norte da cidade. Cinco anos depois, a organização retirou o apoio na região e, então, ele começou a trabalhar como escalador.
O americano abriu uma empresa, inicialmente focado em guiar estrangeiros, mas, desde o primeiro momento, ele já tinha o desejo de usar o esporte para fazer algum tipo de trabalho social. “Já vinha pensando há muito tempo na ideia de usar a escalada como uma ferramenta de transformação social. E escolhi a Rocinha justamente pela proximidade do morro Dois Irmãos. É muito perto”, conta. Assim, em 2010, firmou uma parceria com a Rocinha Surfe Escola, no Complexo Esportivo da Rocinha (localizado no asfalto, em São Conrado) e percebeu que os jovens começaram a se interessar pela escalada. As aulas aconteciam em morros como Pão de Açúcar, Pedra da Gávea e Dois Irmãos.
“Eu subia três metros de altura e ficava chorando, literalmente”, diverte-se Caio César da Conceição Silva, 20 anos. “Só perdi o medo praticando, indo, botando a cara”, garante. E lá se vão sete anos desde as primeiras tentativas do morador da localidade Roupa Suja. Então com 13 anos, Caio fez algumas aulas e ficou afastado por cerca de três anos, até voltar com tudo. Hoje, é um dos monitores do CEU, faz trabalhos como freelancer em um parque de aventuras na Lagoa, aulas de inglês, graças a uma parceria com a ONG, e estuda para entrar numa faculdade. “Adoraria ganhar a vida com escalada, mas a gente sabe que essa não é a realidade, ainda mais no Brasil, um país que não investe muito no esporte. Então pretendo estudar Relações Internacionais, curto a ideia de viajar, conhecer outros lugares e outras culturas”, explica.
Jonas Silva, que mora em Laboriaux (pronuncia-se Laboriô), também cumpriu trajetória semelhante: entrou aos 11 anos como aluno e agora, aos 19, é monitor do CEU. Assim como foi com Caio, ele também estava na escolinha de surfe quando decidiu experimentar a nova modalidade. “Eu achava que era só um passeio de fim de semana. Só que, de um passeio de fim de semana, o Andrew passou a me chamar duas vezes na semana e contou que já era o curso básico. E aí eu fui. Só fui. Depois fiz o avançado”, explica. “Na verdade, fiquei encantado. Desde a primeira vez que ele me levou para o Costão (Morro da Urca), não consegui parar”, diverte-se.
Há dois anos, o CEU ganhou uma sede, no final da Rua da Casa da Paz. Aos poucos, Andrew foi transformando o espaço de cerca de 40 metros quadrados em uma academia de escalada: os colchões foram doação de uma marca de energéticos e as agarras, retiradas de um muro usado pelo Comitê Olímpico da Áustria durante as Olimpíadas no Rio. O muro foi montado com a ajuda de Jonas.
Em uma salinha num nível mais alto, ficam os equipamentos. O aluguel — que já chegou a R$ 2.500 e hoje está em R$ 1.500, com previsão de aumento — e as bolsas de três monitores são pagos com doações a partir de financiamentos coletivos feitos no exterior e da ajuda de amigos do fundador que apoiam a causa. “A gente nunca conseguiu um patrocínio oficial de grande porte, para conseguir ampliar. Passamos o último ano sendo rejeitados por leis de incentivo tanto do Ministério da Cultura como do Ministério do Esporte”, lamenta ele. “Mas ainda tenho esperança de que um dia uma empresa abrace a causa, veja realmente o potencial desse projeto e patrocine. Enquanto a gente não consegue, vai fazendo como pode, dentro da nossa realidade”, conforma-se.
Seriedade e flexibilidade
Atualmente, o Centro de Escalada Urbana abre três vezes por semana: segunda, quarta e sexta, das 15h às 19h. Andrew, no entanto, sonha em conseguir funcionar ao menos duas vezes por semana pela manhã, para atender a quem estuda à tarde. Além disso, pensa em criar uma turma para menores de 12 anos e outra feminina. O americano estima que cem alunos já tenham passado pelo projeto; hoje, tem 20 alunos frequentam regularmente o espaço, que, oficialmente, recebe jovens de 12 a 20 anos. “Mas, na verdade, a gente nunca fecha as portas para ninguém que venha com interesse de participar”, admite o instrutor. “Com os pequenos, fica um pouco mais difícil quando você tem um monte de adolescentes escalando ao mesmo tempo. É por isso que a gente tem que começar a separar as turmas. Mas tudo isso vai depender dos recursos”, frisa.
O curso básico da ONG tem oito aulas, assim como em outras escolas de escalada, mas, no CEU, as aulas costumam ser mais longas. Ao fim dessa etapa, os alunos que estiverem realmente dominando o conteúdo ganham um kit individual com material para poder praticar (cadeira, sapatilhas e capacete). “Na prática, eles até acabam levando para casa antes”, conta Andrew.
Para participar, o interessado precisa cumprir algumas exigências — os pais precisam assinar um termo afirmando que estão cientes de que os filhos estão participando e o aluno precisa comprovar sua frequência escolar. Mas o americano lembra que não costuma recusar candidatos e conta que já recebeu no curso alunos que não estavam indo ao colégio e conseguiu incentivá-los a retomar estudos. “Não acredito em barrar alguém por não estar na escola, acredito em tentar acolher e ajudá-lo a voltar”, afirma.
Andrew não consegue viver do CEU, para isso, tem um outro trabalho: coordenador-geral da ONG Painting Favela, na Vila Cruzeiro. Ele, que mora em Santa Teresa, conta que tem sido difícil estar presente sempre. Em suas ausências, quem acaba tomando conta da sede são seus três bolsistas (Caio César, Rodrigo Alves e Mateus Martins) e Jonas, que deixou recentemente de receber a bolsa, mas segue como monitor voluntário. “Na verdade, eles estão administrando esse espaço, muito mais do que eu. Tem semanas que eu não consigo nem vir, mas eles ficam à frente. Os próprios pais dos alunos já confiam neles para orientar e cuidar de seus filhos. Já viraram de fato multiplicadores do projeto”, orgulha-se o criador do CEU. Voluntários da comunidade escaladora da cidade também dão aulas frequentemente na ONG, de acordo com a disponibilidade de cada um.
Pensar alto
No fim de julho, Jonas viajou para a Suécia, onde fez um intercâmbio de três meses. Ficou encantado com a experiência. “Eu nunca tinha saído do Brasil, foi primeira vez, e ainda para um lugar bem diferente”, comenta. “Foi um choque, porque tudo é acessível, fácil, prático, limpo. Um mundo que a gente até imagina que pode ser vivido, mas que não depende só da gente, depende de um monte de fatores, de pessoas. Pensando bem, a gente pode mudar, pode ser o início. Os suecos começam a mudança dentro de casa e aí refletem para a rua”, analisa.
O jovem escalador explica que o esporte lhe trouxe mais concentração, dedicação para a sua vida, uma relação diferente com o meio ambiente e o ajudou a ampliar seus horizontes. “Sempre pensei muito no meu futuro, desde novo. Nunca me imaginei escalando, nem me vi saindo do Brasil com 19 anos. Porque não era a minha realidade. Hoje, mudei totalmente. É um pouco da escalada também: pensar um pouco mais alto do que a gente pode”, acredita Jonas, que pretende fazer faculdade de educação física e sonha ser bombeiro.
Assim como ele, Caio também conta que levou aprendizados da escalada para a sua vida pessoal. Ao esporte ele atribui, por exemplo, uma maneira mais paciente e menos ansiosa de se relacionar com a vida. “Eu era muito estourado, não sabia lidar muito bem com os outros”, confessa. “A escalada melhorou muito minha forma de ver as coisas, tenho outra visão sobre o meio ambiente, sobre as pessoas, sobre mim mesmo. Antigamente, não queria saber de escola e era muito brigão, brigava muito com meu pai e com a minha mãe. Fiquei mais tranquilo”, jura.
Recém-chegada, há quatro meses, Vitória Santos, 16 anos, se empolgou tanto com as aulas que levou também a irmã, de 11, e a prima, de 9. Ela é uma das poucas meninas (“são cinco ou seis”, diz Andrew) que frequentam o CEU atualmente. Moradora da Rua Quatro, Vitória soube do projeto depois que o fundador deu uma palestra em sua escola, o CIEP Ayrton Senna, e levou alguns alunos para conhecer o espaço. “Eu já pratico luta, muay thai, aqui na Rocinha também, num grupo chamado Knockdown. Gosto de esporte com adrenalina. Aí me interessei pelo projeto e estou frequentando. É muito legal, me apeguei”, conta.
Aluna do primeiro ano do ensino médio, a aprendiz de escalada procura frequentar o espaço três vezes por semana, depois da escola — às vezes sai tarde e não consegue ir. Vitória mora com o namorado e conta que, no início, ele ficou ressabiado. “Se fosse para escalar na pedra, eu acho que ele se assustaria”, acredita. “Mas eu tenho muita vontade, deve ser muito legal. Ali de cima (aponta a parede de escalada) já parece que é uma altura grande, dá um nervosismo para descer. Imagina na pedra grandona, sem colchão embaixo! Quando eu estiver pronta e ele [Andrew] formar um grupo e me chamar, eu vou”, anseia.
Filme repetido
Tanto quanto a empolgação dos participantes, são grandes as dificuldades enfrentadas pelo CEU. Além da falta de patrocínio, o projeto tem que lidar com outro tipo de escalada: a da violência. “Já passamos por situações em que teve confronto acontecendo enquanto o espaço estava aberto e tivemos que recuar todo mundo para a outra sala e esperar acabar. A Rocinha tem vivido uma guerra grande, e os primeiros meses de 2017 foram os piores. Algumas semanas nem conseguimos abrir. Isso é um dos grandes desafios que a gente tem que enfrentar. E, ao que parece, tudo tende a piorar”, lamenta Andrew. “Essa situação gera uma ansiedade, mas, ao mesmo tempo, gera uma motivação a mais também. Acho que nesses momentos precisamos, mais do que nunca, ter um espaço positivo para os jovens irem, estarem juntos e praticarem atividades que possam ajudar a distrair um pouco dessa realidade que eles estão tendo que viver. Uma realidade que afeta, mais do que o projeto, a vida das pessoas que moram na Rocinha e de todo mundo na cidade”, reflete o americano. A subida é longa.
Créditos
Imagem principal: Andrew Lenz/divulgação