Caixinha de surpresas
Ao contrário do futebol, misturar política com espetáculo não dá samba - quem vê imagem não vê ideologia
Por Redação
em 21 de setembro de 2005
Saiu a seleção, entrou a eleição. De vez. Seria legal se eu pudesse pegar um saco de clichês emprestado de algum repórter do Fantástico e dizer algo tipo ‘o circo acabou, vamos ao pão’. Mas eleição também é circo. Poderia ser bacana também se eu pudesse vestir o cachecol de algum filósofo francês e lançar mais uma crítica impiedosa à transformação da política em entretenimento. Mas acho que o buraco é mais embaixo.
Estava outro dia com uns amigos num restaurante e rolou aquela cena: uma conversa sobre política começa como troca de idéias e no fim quase vira uma troca de cadeiradas na cabeça. Por que é assim? Por que as conversas sobre política têm, tantas vezes, essa dinâmica agressiva? Por que as opiniões ideológicas dos outros se transformam tão fácil em ofensa pessoal? Enquanto dava um repeteco mental nas imagens da discussão, em câmera lenta, percebi que meus amigos, na verdade, não estavam falando dos políticos. Falavam deles mesmos.
O estado sou eu
É sempre assim. Toda vez que tem um cara muito inflamado falando de um candidato, ele não está falando do candidato. Ele está falando de si mesmo. Ou da pessoa com quem está discutindo. Atrás de cada ‘o Lula é um analfabeto que vai dar vexame no exterior’, ou cada ‘o FHC é um velho cansado e vaidoso’, estão na verdade um ‘olha como eu sou culto’, ou um ‘olha que velho cansado e vaidoso que você é’.
Aí, você pode argumentar que eu exagero, que toda conversa é no fundo assim. Você pode me lembrar que, sempre, quando o José fala do João, a gente fica conhecendo mais o próprio José do que o tal João. E vou achar que você tem razão. Agora, quando me vem à cabeça aquela imagem patética do sujeito que dá golpes de dedos num ar etílico para defender ou atacar um candidato, não tem jeito, fico achando que política tem uma vocação toda especial para psicodrama de botequim.
Vá lá, outros temas inflamam também, claro. Futebol mesmo e, sei lá, música, escola de samba… mas são quase sempre assuntos essencialmente alegóricos, jogos mesmo, que têm exatamente essa função catártica de proporcionar alguma lavagem das almas encardidas pela mesmice do dia-a-dia. Foi ótimo praticar contorcionismo de sofá nas manhãs da Copa do Mundo. Foi ótimo abraçar o porteiro de madrugada. Mas política é outra coisa. Ninguém vai resolver alguma questão prática da vida nacional num ambiente impregnado desse tipo de passionalidade falastrona.
Sei que não é fácil mudar. De um lado, é preciso vencer a tendência nacional àquele dramalhão maníaco-depressivo em que num dia ce-lebramos nossa superioridade absoluta em relação ao resto do mundo e no dia seguinte já lamentamos nossa inferioridade total. Depois, é preciso enfrentar a vocação olímpica que está na essência da própria política ‘democrática’. A vocação de se transformar num palco distante em que os dilemas da vida pública são encenados, mas não necessariamente resolvidos.
Voto de desconfiança
Quando elegemos ‘alguém que nos represente’, é preciso garantir que a idéia de representação venha do campo do real e não do teatral. De que adianta eleger alguém que faça o ‘papel’ de nós mesmos? De que adianta eleger ou deseleger uma pessoa quase virtual em que possamos, desde uma mesa de bar, projetar nossas próprias qualidades e defeitos? Para isso, futebol é muito melhor.
Na era da comunicação de massa, a questão fica ainda mais complicada. O tamanho das populações, a distância entre eleitores e eleitos, a própria intermediação eletrônica, tudo conspira para que o que chamamos de democracia se transforme de vez em alegoria. Quando fala intimamente de um Lula, de um Serra, de um Ciro, o eleitor médio está falando, não custa lembrar, de alguém com quem ele nunca conviveu. Alguém com quem nunca trocou uma idéia sequer. E quando vota num candidato, o mesmo eleitor faz a escolha com base numa espécie de identificação emocional. Tudo certo, não fosse o fato de que essa identificação massificada se constrói através de atitudes e idéias que nos chegam truncadas através de um imenso telefone sem fio de linhas cruzadas e intermediadas: a mídia.
É possível conhecer alguém através da mídia? É sensato entregar o virtual monopólio das discussões públicas a um espaço regido pelo interesse privado e pelas leis da comunicação a distância? Questões difíceis de resolver. E, a esta altura do campeonato, não é o caso propor a divisão do mundo em cantões suíços. Só é bom lembrar que, se futebol-espetáculo é um espetáculo, política-espetáculo é uma tristeza.
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