Um time desativado do Paraná tornou o Vietnã o segundo destino de jogadores brasileiros
O sonho de todo jogador de futebol deixou de ser a seleção. Nos últimos dez anos, passou a ser jogar no exterior. No ano passado, dos 1.017 atletas que deixaram o país, segundo a CBF, 181 escolheram Portugal. Mas um desconhecido país no mundo da bola tornou-se uma sombra para os europeus, tradicional destino de nossos craques. Em 2009, 34 atletas brasileiros migraram para o Vietnã, o segundo maior importador do pé de obra nacional.
A lógica da importação, no entanto, é diferente da dos mercados europeus e atende a um aspecto mais social do que, digamos, econômico. A maior parte estava desempregada quando surgiu a oportunidade de um clube desativado, o Matsubara de Cambará (PR), excursionar para o Sudeste Asiático no lugar do Marília (SP), que desistiu da viagem.
A primeira excursão aconteceu em 2004. Como não havia elenco, a ordem foi escolher jogadores sem contrato. Após o tour, os clubes vietnamitas começaram a fazer ofertas pelos atletas. De cada transação, o Matsubara ficava com 10% —o restante era dividido entre empresário e atleta. “Era mais para arrumar um emprego para os coitados”, diz Sueo Matsubara, patrono do clube. Dos 34 exportados em 2009, último ano do intercâmbio, 13 tinham ligação com o clube paranaense. “Deixamos praticamente um time todo lá”, diz seu filho, Shigueo Matsubara, responsável por organizar a excursão.
Um deles foi Kesley Alves, uma das revelações da Copa São Paulo de Juniores de 2002 — foi o autor do único gol da final entre Portuguesa e Botafogo, que deu o título à Lusa. Rodou por clubes grandes, como o Vasco, mas nunca obteve uma chance real de sucesso.
Até excursionar para o Vietnã em 2005. No Sudeste Asiático, fechou contrato com o Becamex Bihn Duong, da primeira divisão, e marcou tantos gols (17) que foi premiado com a Chuteira de Ouro em 2009 (prêmio para o maior goleador do ano). Também encontrou Huynh Thi Le Loc, uma vietnamita com quem está há cinco anos casado. Tudo isso facilitou na obtenção do passaporte vietnamita. Com ele, pode jogar pela seleção local — foi convocado duas vezes, mas anda não marcou.
Kesley casou-se com uma vietnamita, naturalizou-se e ganhou vaga na seleção do país
“Esperei anos por esse momento. Depois de a temporada acabar, encaminhei os documentos para ser naturalizado, encorajado por minha mulher. Não é pela minha carreira no futebol. Eu quis virar vietnamita porque casei com alguém deste país e vivo no Vietnã há quase cinco anos”, define o atacante. Le Loc, sua esposa, disse que foi uma opção sincera a de Kesley se naturalizar vietnamita. “Sinto que Kesley quer
viver mesmo por aqui. Quando, de repente, decidiu se naturalizar, perguntei se ele tinha certeza disso e ele me respondeu em vietnamita: ‘Eu amo esse país.’”
Kesley se adaptou a um futebol de correria e porrada, mas não à rotina culinária. Ele, a mulher e o filho Kelvin, de um ano, fogem de um cardápio que inclui carne de cachorro e insetos. Prefere os pratos brasileiros, trazidos pela família, que sai de Goiânia (GO) para visitá-lo. “O vietnamita é um povo sentimental, como o brasileiro”, define o recém-convertido, que sabe falar a língua e até trocou o nome — hoje, atende por Huynh, nome do único comunista a presidir o Vietnã do Sul, depois de a Guerra do Vietnã acabar, em 1975. “É uma vida simples”, define Le Loc. “Nas horas vagas, a gente assiste TV ou entra na internet. Mas ele gasta a maior parte do tempo comigo”, ri.
Copa, nem pensar
Com um salário de 30.000 dólares, Kesley é uma exceção no universo de brasileiros que circulam por lá. Quase todos são aprovados em testes únicos para ganhar de R$ 2.000 a R$ 8.000. O Vietnã não tem tradição futebolística: o maior feito no futebol internacional foram dois quarto lugares nas Copas Asiáticas de 1956 e 1960. Nas Eliminatórias do mesmo continente, o retrospecto é sofrível: perdeu 23 das 31 partidas que disputou e nunca nem sequer sonhou em disputar uma Copa.
“Os jogadores aqui são submetidos a regimes de concentração extremos”, conta Cauê Benicio, atacante de 31 anos do T&T Hanói com passagens por Portugal, Suécia, Nova Zelândia e Indonésia antes do Vietnã. No Brasil, jogou pelo Araçatuba, clube hoje licenciado das competições profissionais. Segundo ele, alguns clubes sequer deixam que os atletas recebam familiares. Quase todos permanecem confinados durante toda a duração do torneio, que chega a quatro meses. Os treinamentos também são bizarros: alguns clubes colocam os jogadores para subir e descer escadas, o que provocou uma série de casos de tendinite.
Um dos responsáveis por essa invasão brasileira é o empresário conhecido por Mr. Dai, vietnamita com bom trânsito por ligas menores da Europa, como a da Suécia. De lá, trouxe Cauê. “O agente viu meu site, com vídeos e currículo. Carreira de jogador desconhecido é assim. São poucos os que chegam de contrato certo. A gente é encaminhado para o empresário recomendado de outros jogadores. Todos, antes de firmar contratos, tem que treinar e mostrar se vale a pena assinar com o clube. Posso dizer que só 10% fecham contrato.”
Casado com uma sueca (“ela vai para onde eu for jogar”), o atacante explora os países pelos quais passa: esquiou na Suécia, surfou na Indonésia e curte as praias do Vietnã. Volta e meia pega a prancha e vai a Bali, cerca de três horas de vôo de Hanói. Vida boa? “Não sei se você pode dizer ‘boa’, em relação à loucura que é o futebol hoje em dia. Mas sou superbem remunerado em relação a um profissional normal no mundo”, diz, sem revelar os valores, mas que se aproximam dos 30.000 dólares que Kesley recebe. “Tive sorte. Moro num apê superluxuoso. Como já rodei muito, faço de tudo um pouco.”
A relação entre os brasileiros no Vietnã variam. São bastante próximas (Kesley incentiva jogadores desempregados a fazer testes no país) ou não existem. “Não gosto da atitude de alguns”, afirma Cauê. “São debochados, tratam os vietnamitas como se não fossem humanos. O cara chega sem ter jogado em lugar nenhum, sem experiência, e ganha moral. O dinheiro sobe à cabeça.”
Duque de Caxias a caminho
Companheiro de Cauê no T&T Hanói, Cris Roland – com passagem pelo Grêmio de Felipão em 1995 e que jogou no Benfica com Luisão, hoje na seleção - joga no Vietnã há dois anos. Casado com uma portuguesa com quem teve dois filhos, o zagueiro de 34 anos mora em um condomínio só de estrangeiros em Hanói. “A vida aqui é muito segura e barata”, afirma. “Tu não vê nada de assalto ou problemas nas ruas”, diz, com sotaque gaúcho. Chegou ao Vietnã seguindo a indicação de um amigo e jogou em um clube da segunda divisão antes de assinar com o T&T Hanói, onde joga hoje. “Os times aqui são empresas. Temos seis jogadores da seleção no time. O presidente quer o time campeão neste ano, que é o de centenário da cidade.”
A boa fase dos brasileiros no mercado vietnamita, no entanto, está com os dias contados. O alto custo das excursões (segundo o cálculo de Sueo Matsubara, cada jogador custa R$ 6.000 da passagem aérea mais as despejas de acomodação) afugenta os clubes, que lucram pouco com as transações. O último a excursionar para o Vietnã foi o Duque de Caxias, do Rio. Quatro foram aprovados e devem ficar para a próxima temporada.
Por outro lado, o mercado vietnamita teme que a invasão empobreça ainda mais o futebol do país, como aconteceu na Tailândia e em Cingapura. Como o processo de naturalização é rápido (demora em torno de três meses), os estrangeiros vêm dominando os times locais e dando poucas chances aos jogadores criados no país.
Nada que afugente quem já fincou raízes. “Só Deus sabe nosso futuro. Tenho pensamento de morar aqui, mas tudo vai depender da situação do momento. Por enquanto, eu penso mais em trabalhar”, diz Kesley Alves, o brasileiro mais conhecido do Vietnã.