O roteirista e escritor Bráulio Mantovani vive no limite entre o sonho e a realidade
Bráulio Mantovani estava no metrô de Nova York quando, chegando à plataforma, viu um cara armado ameaçando uma criança. De súbito foi tomado por uma reação instintiva: “Você não pode fazer isso!”, gritou em desespero. O algoz virou-se para ele e apontou o cano em sua direção. Ao reparar no rosto do sujeito, tomou um susto ainda maior: estava frente a frente com o ator Dennis Hopper, completamente ensandecido. O choque não durou um segundo: o tiro de Hopper acertou em cheio o peito de Bráulio.
O causo parece mais cena de um filme. Mas aconteceu na particular sessão de cinema em que o roteirista Bráulio Mantovani entra quando dorme. Há 47 anos, desde seu nascimento, Bráulio tem uma relação conturbada com o sono. Até os 3 anos de idade, ele dormia apenas três horas por noite. Pesadelos como o do parágrafo acima, talvez sem Dennis Hopper, o acompanham desde a mais tenra idade.
Já viu crocodilo escondido no caminhão da Frango Assado; viu seres com corpos que pareciam cabaças e tinham uma corneta no lugar da boca; encontrou pilhas de cadáveres no cemitério; caiu no mar revolto e despertou vomitando. “Ainda tenho muitos pesadelos. De vez em quando acordo de mau humor e tenho a sensação de que o mundo conspira contra mim. Mas depois de seis anos de psicanálise me sinto melhor, tenho sonhos menos aflitivos”, avalia.
Mas nem Freud explica, ou alivia, uma estranha condição da fértil mente de Bráulio Mantovani: o escritor lembra de coisas que não aconteceram de fato. Quer dizer, ele confunde alguns sonhos com situações reais. “Tive a consciência de que tinha esse problema nos anos 90”, afirma o roteirista de Cidade de Deus e Tropa de elite. “Comecei a conversar com meus amigos comentando uma coisa que nós três tínhamos feito. Todos ficaram me olhando com uma cara bizarra. ‘Pô, a gente tava em tal lugar’, eu dizia. Eles se entreolharam e comentaram: ‘Cara, você tá maluco’. Caramba, era uma lembrança muito vívida na minha cabeça...”
Sua condição, segundo diz, chama-se “limites tênues”, expressão utilizada pelo escritor inglês A. Alvarez em seu livro Noite, traduzido e editado pela Cia. das Letras. Nele, Alvarez cita uma pesquisa do psiquiatra americano Ernest Hartmann, autor do termo “thin boundaries”, que sugere que pessoas com sensibilidade artística que são acometidas por pesadelos com frequência tendem a confundir sonho com realidade.
Bráulio faz questão de frisar que esse problema só ocorreu, até hoje, em situações banais. Em seu recém-lançado romance de estreia, Perácio – Relato Psicótico (editora Leya), Mantovani imprime – e leva ao extremo – essa característica no cérebro do protagonista Perácio. “Quis colocar isto no livro: o que acontece com alguém que tem esse lance e se vê numa situação que vai além do limite? O Perácio enlouquece.” Transitando entre o universo onírico e passagens de sua própria biografia, ele mergulha no pensamento tortuoso do protagonista para contar uma delirante história durante a época da ditadura militar brasileira.
Que dia é hoje?
As tênues fronteiras da consciência de Bráulio também percorrem o caminho inverso. Em vez de trazer a ficção para a realidade, ele, vez ou outra, leva a sanidade à fantasia. No decorrer dos anos teve inúmeros sonhos lúcidos: no pico do sono percebe que está sonhando e controla o desfecho da história. Foi assim quando, aos 23, em São Paulo, quis contar ao amigo ao seu lado que havia visitado um terreiro de candomblé em Salvador. Mas não conseguiu descrever o cenário porque, de fato, nunca havia estado em um. “Eu estava dormindo em Salvador e percebi que ainda não havia visitado o terreiro. Contei isso para os personagens do sonho e eles riram. Tive que provar a eles que estava falando a verdade. Que dia é hoje? Terça-feira. Então – a gente só vai voltar para São Paulo na quinta, isso é um sonho! Daí acordei.”
O paulistano não toma remédios para dormir, não fuma maconha, não toma ácido. Bebe socialmente e, fora isso, é adepto somente da nicotina e da cafeína. Cartesiano, nunca teve experiências místicas e não acredita em nada sobrenatural. “Minha parte preferida na análise é desvendar os possíveis significados dos meus sonhos. Embora eles pareçam desprovidos de lógica, possuem um sentido próprio e se associam com coisas vividas. Mais ou menos como costumo escrever.” Formado em letras pela PUC e escriba cdf desde os tempos da escola, afirma que o único período em que teve de recorrer a um psiquiatra foi com 30 e poucos anos, por trabalhar demais.
Na época, fazia o Telecurso 2000, na Globo, com os amigos Marcelo Tas e Fernando Meirelles, além de diversos vídeos institucionais. “Cheguei ao limite, fiquei obcecado pelo trabalho, escrevendo horas e dormindo pouco.” Próximo a um colapso nervoso, recorreu a antidepressivos e ansiolíticos (que hoje rejeita com todas as forças) para ficar mais calmo e dormir melhor. “Passei a me sentir muito feliz ao acordar, mas tinha de me rastejar para ir da cama à cozinha, completamente mole.” A perturbação, entretanto, trouxe uma nova percepção: “Prefiro ter problemas de dinheiro a fazer dois projetos ao mesmo tempo”.
Há seis meses sem fazer análise por falta de grana, ele afirma que, além do fato de já ter passado dos 40, seu filho João, 6 anos, se tornou um dos maiores responsáveis por seu equilíbrio. “Ser pai coloca as coisas em outra perspectiva, torna tudo mais simples. Você não pode perder tanto tempo com neuroses, tem de acordar cedo e providenciar o almoço.” Por isso, canaliza a angústia para a profissão e afirma que as passagens mais chocantes dos filmes que roteiriza equivalem às piores cenas de seus pesadelos. “Aquela passagem em que o menino atira no pé do outro no livro Cidade de Deus, por exemplo, se encaixaria perfeitamente nos meus sonhos”, ele narra e conclui, como um dos mais bem-sucedidos roteiristas brasileiros, que sonhos ruins podem ser, no fundo, ótimos presságios: “Não fossem os pesadelos, jamais teria escrito tudo o que escrevi”.
On-off
Na literatura médica, pouco foi registrado sobre o termo “thin boundaries” (limites tênues), relatado por Bráulio Mantovani. Segundo o neurologista Flávio Alóe, do Laboratório de Estudos do Sono do Hospital das Clínicas da USP, em São Paulo, a expressão utilizada pelo psiquiatra Ernest Hartmann jamais entrou para os manuais de psiquiatria. Para Flávio, a pesquisa de Hartmann está desatualizada em relação aos estudos ligados à medicina do sono. De toda forma, afirma que o assunto é tão complexo quanto desconhecido. “O que Mantovani descreve é possível de acontecer, porém muito improvável. Lembrar-se de algo que ocorreu apenas em sonho e acreditar que de fato existiu seria como passar a informação de um pen drive para o disco rígido com o computador desligado”, explica o especialista. Ele também esclarece que, provavelmente, Mantovani sofre de transtorno de pesadelo, distúrbio que não costuma ser levado a sério. “Somente uma avaliação pode definir a gravidade de cada caso. Mas há inúmeras formas de tratamento e dá para evitar a utilização de psicotrópicos”, assegura.
Agradecimentos Brecho Minha Avó Tinha, Sleep House (Teodoro Sampaio) e MMartan (Rebouças)