O cantor carioca mergulha no reportório praieiro de Dorival Caymmi em show que transborda espiritualidade
BNegão é carioca, nascido e criado em Santa Teresa. Mas é um homem preto e homem preto quando chega à Bahia se sente em casa. É ancestral. Mesmo antes de pisar em Salvador, ainda adolescente, ele sacou a conexão. Depois do colégio, garimpava em sebos no centro do Rio procurando discos. Cruzou com um exemplar de Caymmi e Seu Violão (1959) e levou pra casa. “Deitei no chão, botei o vinil pra rodar e esperei que começasse aquela coisa meio “ah, o coqueiro; “ah, a rede”. Eu tinha a ideia caricata do baiano preguiçoso. Mas o que eu senti foi como se estivesse no centro de um maremoto. Um bagulho que eu nunca tinha sentido com disco nenhum. Uma coisa sinistra, um impacto absurdamente absurdo.”
A música se impôs na vida de BNegão, que misturou punk rock, rap, funk, soul, samba e viajou o mundo com o Planet Hemp e Os Seletores de Frequência. Muita coisa rolou, mas o arrebatamento por Caymmi nunca saiu da cabeça ou do coração. “Ouvi-lo cantar sempre me dá arrepio, me dá vontade de chorar. É além do além. É um dos discos da minha vida”, conta.
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Mas levar ao palco o misticismo e poder de Caymmi no esquema voz e violão é missão que toma um tempo para maturar e virar realidade. Foram oito anos de idas e vindas, ensaios e desistências. Até que, esse ano, ele fechou o repertório, todo voltado para às canções do mar, como "O vento" e "É doce morrer no mar", encontrou o parceiro certo, o violonista Bernardo Bosisio, e marcou as datas: 28 e 29 de abril, no Sesc Pompéia. “Porra, chegou a hora”, diz.
Desde quando você tem essa ideia? Eu sempre tive isso na cabeça. Há uns anos, fui com o Criolo e a galera do Instituto gravar uma versão daquela disputa musical entre Noel Rosa e Wilson Batista. Um dia, ouvimos Caymmi e Seu Violão e foi aquele transe. Aí fiquei pensando que devia mesmo fazer. Mas foram oito anos querendo, falando com as pessoas, até fiz alguns ensaios, mas sempre desistia.
E o que rolou para que agora o show saísse do papel? Lá por 2014, fizemos o show do Seletores tocando as músicas do Sítio do Picapau Amarelo e tinha uma do Caymmi. Fiz com voz e violão e deu certo, foi incrível. Depois dividi o palco com Wilson das Neves em uma turnê que rodou o Brasil. Cantei “Juízo final” e fui sentido que era possível. Depois de um show desses, uma senhorinha linda me disse “quando você canta parece que está rezando”. Fiquei emocionado e pensei “porra, chegou a hora”. Agora vai, o show já ta marcado, fudeu.
Vai virar disco? Acho que não, mas quero fazer show pra caralho, quero que seja semi-eterno. É um show dedicado às canções praieiras e músicas do mar. Elas têm uma afinação diferente, um lance meio Black Sabbath da lagoa do Abaeté. É sinistro.
Esse ano você comemora também os 15 anos do Enxugando gelo, seu primeiro disco “solo”. O que está planejando? Vou lançar em vinil transparente duplo, capa bonitona. A ideia é fazer shows do disco, trazer a galera que gravou, o Dj Rodrigues, que é fundamental. Ele vai consertar a pick-up e interromper a aposentadoria [risos]. Acho que esses shows vão encerrar os trabalhos do Os Seletores de Frequência, sinto que já cumpriu o que tinha que fazer. Estou com ideias novas de músicas que tem outra linguagem e quero fazer rolar.
Esse disco foi um dos primeiros a ser disponibilizado na íntegra, de graça, na internet. Como foi isso na época? Eu tenho meu lado punk rock, essa parada mais anárquica. Um amigo meu que é ativista, um cara meio a frente do tempo, me falou que eu tinha que “botar na net”. Era aquela época do Napster, diziam que quem baixava música estava tirando o caviar do artista [risos], que era bandido, assassino da música. A gente foi contra a corrente. Por essa parada de o disco estar rolando na internet, fizemos muito show fora do país. Lançamos o disco aqui e não aconteceu nada no Brasil, mas abriu portas para desbravarmos o lance de ser uma banda internacional. Muitos anos depois, o Enxugando gelo viveu o auge no Brasil, foi o disco meu que por mais tempo circulou entre a galera.
Qual sua música favorita desse disco? "O opositor". É a diferentona. Tem jazz vanguarda com samba da Clementina de Jesus, falando de deus, do diabo. Mas amo todas as músicas, é o disco que mais me define, botei pra fora ali tudo que não tinha conseguido colocar em lugar nenhum. Se quiser saber o que passa dentro da cabeça e do espírito do sujeito aqui, está lá.
Vai lá: BNegão canta Dorival Caymmi
28 e 29 de abril | Sábado, 21h; domingo, 18h
Sesc Pompeia – Teatro (Rua Clélia, 93, Pompeia, São Paulo, 3871-7700).
Créditos
Imagem principal: Heitor Loureiro