Bem-vindo à terra santa

por Lia Hama
Trip #225

O desejo de importar Israel para o Brasil

Um Muro das Lamentações na zona norte do Rio, uma réplica do Templo de Salomão no centro de São Paulo e um kibutz na periferia paulistana mostram o desejo de importar Israel para o Brasil

Domingo, 8h30 da manhã. Nas frestas entre blocos de pedra de um muro alaranjado, Maria Geraldina Cavalcanti se esforça para colocar bilhetes pedindo pela saúde de sua família, pelo aumento de sua pensão e pelo retorno da filha que fugiu de casa. "Aqui é a minha Terra Santa, é o meu contato direto com Deus", explica a empregada doméstica aposentada de 73 anos. O muro em questão fica no bairro de Del Castilho, zona norte do Rio de Janeiro, na entrada do principal templo da Igreja Universal do Reino de Deus: a Catedral Mundial da Fé. Antes de entrar na missa, os seguidores do bispo Edir Macedo encostam as mãos no local e fazem orações. Alguns fiéis, como dona Maria, depositam papéis com seus desejos por escrito. Por causa da semelhança com o monumento sagrado de Jerusalém, o local ganhou o apelido de Muro das Lamentações carioca.

Trata-se de apenas um entre outros exemplos do desejo de importar a Terra Santa para o Brasil. O caso que chama mais a atenção – pela dimensão e pelas cifras milionárias envolvidas – é a réplica do Templo de Salomão que está sendo construída no bairro do Brás, no centro de São Paulo. Com previsão de ser inaugurado em junho do ano que vem, o complexo, também da Igreja Universal, vai abrigar até 10 mil pessoas sentadas. O prédio principal terá 126 metros de comprimento, 104 metros de largura e 55 metros de altura, "quase duas vezes a altura da estátua do Cristo Redentor", como gosta de destacar a igreja. Para revestir o templo, foram trazidas toneladas de pedras da cidade de Hebron, na Cisjordânia, num empreendimento que vai consumir um total de R$ 700 milhões. A ideia, segundo Edir Macedo, surgiu em uma viagem a Jerusalém. “Se eu não posso trazer o povo da Universal para cá, então vou levar pedaços desta terra para eles”, afirmou o líder da igreja evangélica.

O Templo de Salomão (o original) é um local de adoração tanto para judeus como para cristãos. Segundo a Bíblia, Salomão, rei de Israel e filho de Davi, mandou erguer o templo para que ele fosse a morada de Deus e abrigasse a Arca da Aliança, com os Dez Mandamentos. Quando os babilônios tomaram a cidade no século 6 a.C., o templo virou cinzas. Um segundo templo construído no lugar foi destruído pelos romanos em 70 d.C. O que restou dele é o Muro das Lamentações, daí o seu caráter sagrado. Judeus ortodoxos acreditam que um terceiro templo será construído onde hoje fica a Cúpula da Rocha, local de culto dos muçulmanos. Segundo a crença judaica, a construção acontecerá com a chegada do Messias.

Banho no Rio Jordão

Ao lado do Muro das Lamentações carioca, fica outro lugar inspirado na Terra Santa, igualmente construído pela Universal: o Centro Cultural de Jerusalém. A atração principal é uma maquete de 736 metros quadrados que pretende levar o visitante a "uma viagem no tempo" e mostrar a cidade na época do Segundo Templo. No vídeo de propaganda da instituição, o apresentador da TV Record Wagner Montes faz o convite: "Você, que não conhece, venha conhecer. Não é uma maquete, não é um cenário, não é uma cidade cenográfica. É Jerusalém dentro do Rio de Janeiro".

A guia do centro Thassia Magalhães explica que o público é bastante eclético. “A maioria dos visitantes são fiéis de igrejas evangélicas, mas há judeus e católicos. Recebemos muitos pesquisadores”, comenta. Quando a reportagem da Trip esteve no local, havia um grupo de estudantes da Universidade Federal Fluminense. “Dou um curso de história do cristianismo. Viemos observar a arquitetura da época”, disse Manuel Rolph Cabeceiras, professor da Universidade Federal Fluminense, em Niterói. No mesmo complexo, há uma piscina rodeada por palmeiras, onde são feitos batismos na água que, segundo a instituição, vem diretamente do rio Jordão. Também há uma loja que vende suvenires, como menorás, Torás e estátuas de Moisés, símbolos da religião judaica.

Kibutz urbano

Não são apenas monumentos de Israel que são “importados” para o Brasil. A experiência de uma forma de organização coletiva do país serviu de modelo para a criação de um kibutz urbano no bairro de São Mateus, zona leste de São Paulo. O grupo, que existiu em três endereços diferentes de 2002 a 2007, chegou a reunir 20 pessoas, que dividiam os salários e as despesas igualmente e seguiam as tradições do judaísmo.

O idealizador é Marcos Moreira da Silva, 45 anos, um comerciante negro e ex-pastor da Assembleia de Deus. Moreira se identifica como descendente de cristãos-novos, judeus forçados a se converter ao Cristianismo na época da Inquisição e que migraram para o Nordeste brasileiro no século 16. Nos anos 90, ele adotou o nome de Mordechai Moré e, mais tarde, criou a sinagoga Beit Israel e uma federação com 1.500 descendentes de cristãos-novos espalhados pelo Brasil. Há dois anos, fez o chamado “processo de retorno”, uma série de estudos e práticas da religião, com o objetivo de ser reconhecido pelos outros judeus.

O kibutz em São Mateus foi desativado depois que o proprietário reclamou que o imóvel estava sendo sublocado. Mordechai agora pretende criar kibutzim agrícolas no Paraná e no Mato Grosso do Sul. “Os dois projetos devem ficar prontos no final do ano que vem”, afirma. A sinagoga na zona leste de São Paulo reúne atualmente 150 famílias. “A escolha de São Mateus não foi à toa. É um local com alta concentração de 'judeus em potencial', pois é um dos principais redutos nordestinos da cidade”, explica Carlos Andrade Gutierrez, do núcleo de antropologia urbana da USP, que fez uma pesquisa sobre o grupo. Segundo o antropólogo, boa parte dos seguidores de Mordechai são provenientes de igrejas evangélicas.

O Messias não chegou

E qual é a relação entre evangélicos e judaísmo? "O Antigo Testamento vale para os dois. Mas os cristãos reconhecem Jesus Cristo, e os judeus, não. Nossa crença é a de que o Messias nunca veio”, explica o rabino Michel Schlesinger, da Congregação Israelita Paulista (CIP). A igreja do bispo Edir Macedo afirma ter “profundo respeito e admiração” pelo judaísmo. “Respeitamos a fé judaica, pois ela serve de base para nossa fé cristã”, declarou a Igreja Universal, por meio de sua assessoria de imprensa.

Em Israel, as reações sobre a tentativa de replicar a Terra Santa no Brasil são diversas. “Alguns políticos acham isso bom, pois pode trazer novos aliados ao Estado de Israel; outros estão chocados, como se isso fosse um pecado; outros não se importam com esses projetos e veem neles apenas novas igrejas faraônicas”, conta Benjamin Seroussi, um dos curadores do projeto Nova Jerusalém, que reúne artistas israelenses e brasileiros para discutir essas questões (veja matéria no site). O rabino Schlesinger é do time dos que não veem problema: “Os evangélicos visitam Israel, admiram os rituais judaicos e até estudam hebraico. Eu me sinto lisonjeado ao saber que a nossa tradição é admirada. É complicado julgar a fé do outro porque, aos nossos olhos, ela sempre parece esquisita, e esse é o primeiro passo para a intolerância. Eu procuro respeitar”.

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