Aos 51 anos, o ex-Armação Ilimitada faz um balanço dos seus excessos dos tempos de praia

O ano de 1985 é uma espécie de. 1968. A crista de uma onda perfeita. Espia: Rock in Rio, fim do regime militar, eleição de Tancredo, Gorbatchev assume a URSS, Ultraje a Rigor e Legião Urbana lançam seus primeiros álbuns, We Are the World toma as rádios e, em um inútil mas simbólico ato, a ONU declara 1985 o Ano Mundial da Juventude. Naquele maio, em uma sexta-feira, horário nobre da também jovem Rede Globo (com 20 aninhos de idade), um riff de guitarra de hard rock e letras piscantes anunciavam a primeira aventura de Juba e Lula. Estreava Armação Ilimitada – e uma geração de moleques ainda sem estandartes foi corrompida pela dupla de heróis biscateiros adepta do amor livre que ganhava a vida pegando onda, voando de asa-delta e lutando contra as forças da caretice. Em questão de meses, André de Biase tornou Lula, seu personagem, mais famoso do que o xará então sindicalista. Nunca na história deste país um surfista tinha ido tão longe. Célebre, campeão de audiência, capa de revistas. Nada mal para um rapaz de 29 anos sem segundo grau completo.

"O surf me alienou", admite hoje o cinqüentão André, fumando um cigarro, sem afrouxar o sorriso constante. O mar, as gatas e o pôr-do-sol do Arpoador não deixavam o André de 20 anos pensar na repressão, no AI-5. Ou na escola. Em meados dos anos 70 ele não tinha muitos planos fora surfar e fazer pranchas. Preferia a praia mesmo, e a turma de amigos como Evandro Mesquita e Sérgio Mallandro. Foi quando um cineasta viu, por acaso, uma foto de André. O corpo jovem e a cabeleira amarela de sol eram tudo o que Luiz Carlos Lacerda, o Bigode, estava procurando para seu protagonista. Ele queria levar ao cinema um roteiro sobre um moleque deslumbrado com o surf, com a cultura de praia que brotava no Rio, que sonhava em ir ao Havaí. Sem nunca ter atuado na vida, André hesitou. Mas assumiu a cadeira de ator por conta do cachê: uma passagem para o Havaí.

Nos Embalos de Ipanema era a película (a direção acabou nas mãos de Antonio Calmon). Três outras vieram nos anos seguintes, e André ganhou assim, meio por sorte, uma carreira. Só tinha um problema. Não conseguia levar a mãe ao cinema. Nudez, sexo, a coisa lúbrica de 9 entre 10 filmes nacionais daqueles tempos. Ele tinha vergonha. Eis que, meio por acaso, voando de asa-delta, teve a idéia de um filme para censura livre. Um ano depois de rodar com o roteiro debaixo do braço, deu em um dos maiores sucessos do cinema nacional. Menino do Rio, 3 milhões de espectadores, André como protagonista. As coisas aceleraram depressa, e, caminho natural, ele foi para a Rede Globo.

Fazer filmes era mole para nosso entrevistado. Novela era outra história. Gravar na rua, decorar textos diários, tomar esporro em megafones. Fazendo queixa da labuta com o amigo global Kadu Moliterno, André teve a idéia que foi ao ar um ano depois, em 1985. Uma dupla inspirada em Butch Cassidy e Sundance Kid, anti-heróis de escrúpulos elásticos, boas intenções e uma namorada para repartir. E, muito importante, um moleque.

O resto não é história. Pouca gente que viu as armações de Juba, Lula, Zelda e Bacana conhece os bastidores. Depois que a série saiu do ar, bem como um malsucedido programa de auditório da dupla, André de Biase sumiu da TV. Justamente quando a onda perfeita dos anos 80 estourou em uma longa ressaca. André largou a cocaína que o estava devastando. Foi trabalhar no governo do Espírito Santo até cair em um golpe internacional envolvendo muçulmanos e Nelson Mandela. Voltou ao Rio para ganhar dinheiro com a explosão da telefonia celular na Barra da Tijuca. E, de repente, após sete anos, voltou à TV no seriado jovem, mas nada anárquico, Malhação. Uma espécie de anti-Armação Ilimitada, em que uma espécie de anti-André de Biase, com rugas, barriga saliente e uma ampla careca, deu as caras para o papel de professor. Mais uma vez frustrado com a Rede Globo, estagnado na Malhação, ano passado André foi feliz para a Rede Record atuar na bem-sucedida novela Caminhos do Coração. Ou melhor, a novela dos mutantes. Empolga-se e dita ao repórter que seu "coração bate no caminho dos mutantes." Assim como fez há 23 anos com Armação na Globo, pretende emplacar novos programas para jovens na emissora do bispo Macedo. E voltou às telas mais amplas como um não menos mutante traficante de cocaína paraplégico no filme Meu Nome Não É Johnny, outro sucesso em seu currículo.

Quais suas primeiras lembranças, André? Nasci no Rio, mas meus primeiros sete anos foram no Espírito Santo. E foi uma infância muito feliz. Minha mãe era arquiteta e meu pai, economista. Fomos para o Espírito Santo porque ele comprou uma terra gigante em Guarapari. Eram 11 praias, ele vendeu sete e ficou com quatro. Então fez um condomínio lindo, dos mais bem montados que existem. O Aldeia da Praia. Meu pai era muito ecologista, tirou poucas árvores, só cortou onde construiu. É proibido ter muro, e ainda hoje é superpreservado. A gente morava por lá e era ótimo. Tivemos várias casas, era uma família grande, eu tenho seis irmãos.

E quando voltou ao Rio? Com 9 anos. Fui morar na Lagoa. Estudei no Padre Antônio Vieira em uma classe muito engraçada. Eu era colega do Sérgio Mallandro, do Luiz Antônio Almeida Prado, hoje dono do banco Icatu, e do Alberto Pecegueiro, que era o melhor aluno da classe e hoje é o presidente da Globosat. Era uma turma muito boa.

E quando começou a surfar? Quando eu conheci o Arpoador. Eu tinha uns 12 anos. Foi quando comecei a pegar onda.

Tinha uma cena forte de surf ou ainda era pouca gente? Era pouca gente. Tinha a turma dos Metralhas: Cauli, Broca, Ronaldo Ludovico. Acima da gente tinha o Betão, Bocão, Paulete, Maranhão, o Cecéu. A gente endeusava os caras. Depois dos Metralhas veio o Pepê. Aí começamos a conhecer os caras de São Paulo, pintaram os campeonatos, o Mundial começou a vir ao Brasil.

E você queria ser o que da vida nessa época? Eu não tinha a menor idéia do que eu ia fazer da vida. Nunca quis ser um profissional. Eu sei que comecei a fazer prancha.

 

E como virou ator? Um dia o Luiz Carlos Lacerda, o Bigode, viu uma fotografia na casa da avó da Diana Bouth. Engraçado isso. E me chamou para fazer um filme. Ele achou que eu tinha a cara do personagem do filme que estava produzindo, Nos Embalos de Ipanema. Eu disse que não era ator, mas pedi uma passagem para o Havaí, que era meu sonho, e foi esse o cachê.

E como era o filme? A história era de um cara da zona norte que sonhava em ser da zona sul. Então de dia ele pegava onda no Arpoador e de noite era garoto de programa. E era uma realidade isso. Volta e meia havia essas figuras na praia. E era uma coisa nova aquilo. Estava tudo aparecendo naquela época. Não existia essa história de garoto de programa, travestis.

E descobriu que queria ser ator? Aí vi que gostava muito daquilo. Não só de atuar, mas de todo o universo. Porque eu tenho uma alma artística. Adoro música, fotografia, cenografia. Aí eu fiz quatro filmes enquanto levava aquela vida na praia. Mas me incomodava uma coisa. Eram filmes que eu
não podia levar minha mãe para assistir.

Hahahaha. Por quê? Eu ficava nu. Tinha um apelo erótico. Não era pornochanchada, com aquele sexo quase explícito. Mas meus filmes eram mais uma linha sensual, tinha nudez, transas. Então eu tinha vergonha de levar os amigos.

Naquela época todo filme nacional tinha que ter sexo de alguma forma? Era o que vendia. Depois do cinema novo, não tinha incentivo nenhum para filmes. Por causa disso, já em 1977, eu estava meio cansado. Aí percebi que não podia fazer algo que eu não gostava, que eu tinha vergonha. Então tive uma idéia para um roteiro.

Como era? Mais ou menos a história da minha vida. De um cara que pegava onda, fazia prancha, era apaixonado, que achava uma gata linda, que viajava, tinha ido para o Peru, Havaí. Eu estava começando a voar de asa-delta na praia do Pepino, tudo isso. Aí eu convidei meu irmão Tonico, começamos a bolar a idéia. Depois chamei o Antônio Calmon para escrever comigo, me ajudar a fazer um roteiro de cinema mesmo. Seqüência, planos. E fiquei com o roteiro na mão. Fiquei rodando com isso uns dez meses. E só topavam se eu colocasse cenas de sexo no filme, e eu não aceitava. E nessa época tive a idéia para o nome do filme, quando escutei a música do Caetano. Menino do Rio. Mas aí eu tinha que pedir autorização pra ele. E aí tinha um problema.

Qual? Ele gostava de mim. Até citou meu nome quando foi no Globo de Ouro cantar essa música. Foi quando eu liguei pro Petit [o surfista que inspirou a música de Caetano] e pedi para armar um encontro com ele. Mas antes, ali no Arpoador, eu não gostava dele. Nem dele nem da galera dele, do Gil, Gal. Eles fumavam bagulho no Píer e sempre chegava a patrulhinha, dava geral, mandava a gente sair da água. E os caras tudo com cabelão debaixo do braço, magérrimos, com aquelas sunguinhas, umas tangas de sei lá de quê. Então a gente enchia copinho com areia e ficava jogando neles direto. Dava briga.

E quando parou de ter raiva dele? Eu evoluí. eu evoluí. Quando comecei a fazer cinema passei a ter uma outra visão das pessoas. Conhecer homossexuais, hare krishna. Mas, enfim, fui encontrar o Caetano morrendo de medo de ele se lembrar dos copinhos de areia. Quando ele aparece logo fala: “Andrezinho, querido.” Sentou na mesa, mostrei o roteiro, disse que queria o nome da música dele. Na hora ele concordou. E eu já estava todo aliviado quando ele vira e diz: “Mas vê se pára de jogar copo de areia nos outros”. Eu todo sem graça, dando desculpa, e ele: “Eu me lembro, você me tacou copinho de areia.”.

E como conseguiu vender o roteiro, se não queria colocar sexo no meio? Queria censura livre, tinha que ser. Aí aconteceu de o Bruno Barreto se interessar, mas os produtores queriam comprar o roteiro e colocar outro ator no lugar. Um cara da Globo. Quem era o cara?

Quem? Kadu Moliterno. Porra. Ele é paulista, primeiro. Eu era o cara do Rio. No fim o Barreto comprou a idéia e chamou o Calmon pra dirigir. Legal, mas a gente achava que era um filme de verão para o Rio de Janeiro e algumas cidades de praia. De repente foi um sucesso estrondoso, 3 milhões de espectadores. Aí tudo começou a acontecer, e me chamaram para a TV.

Era difícil para você atuar? No cinema não. Mas na novela era difícil. Eu sofria muito pra gravar. Tinha muita cena na rua, juntava gente pra caramba, eu ficava nervoso e esquecia o texto. Aí tomava esporro pelo alto-falante, era uma merda. E eu desisti de fazer novela, não queria mais. E comecei a bolar um programa de TV que tivesse a ver comigo. Foi de onde saiu a idéia do Armação ilimitada.

Foi idéia sua? Eu e o Kadu, que já éramos amigos da praia, da TV, conversamos de fazer um trabalho juntos. Eu era amarradão no Butch Cassidy e Sundance Kid. Então a idéia era essa, uma dupla, mas com o universo do surf, do vôo livre, da cultura toda da aventura. Aí eu chamei o Calmon de novo pra me ajudar, e ele não topou de jeito nenhum. O pessoal do cinema tinha muito preconceito com TV, e vice-versa. Mas foi nessa época que o Menino do Rio passou na Semana do Cinema Nacional. E acabou dando o maior ibope da história dos filmes na TV. E eu com essa história na mão.

Mas tinha um roteiro, um nome? Tinha a sinopse conceitual. Tinha que ter um garoto, uma supergata, e eles viviam de biscate. Foi quando o Kadu foi chamado pra fazer uma novela das oito e marcou uma reunião com o Boni. Ele não tava a fim do papel, queria mais que nossa idéia desse certo. Eu disse: cara, quando abrir a porta do Boni, eu entro atrás e a gente fala o projeto. E levei uma cola numa agenda da Energia pra lembrar bem a idéia. Quando entramos na sala, ele só perguntou: o que o André tá fazendo aqui? Eu só disse que tinha um projeto pra mostrar jovem na TV, que meu filme tinha dado o maior ibope. Aí ele me viu lendo a cola e tomou a agenda da minha mão. No fim estava escrito assim: se ele topar, ainda dou de gorjeta o slogan “entre nessa onda, entre na onda da Globo”. Ele me olhou com uma cara bizarra. Aí eu contei a história do Butch Cassidy, que eu sabia fazer. Aí ele me ofereceu para entrar na novela Partido alto, com o Kadu, e passar um ano no Havaí preparando a idéia da série.

Que vida mansa. E como foi? Foi uma doideira. Mas o projeto que estava sendo escrito era muito infantil. O grande problema é sempre o roteirista. Ninguém sabia escrever como o jovem fala. A coisa estava totalmente artificial. E, como o texto estava ruim, eu acabei convencendo o Daniel Filho de que tinha que chamar o Calmon. No fim das contas, ele e o Daniel ficaram amigos pra caramba, ele deu um jeito no roteiro, e gravamos o primeiro programa. Lembro que no dia seguinte eu fui na praia e todo mundo aplaudiu. O Armação ilimitada foi uma criação coletiva que abriu portas para muita coisa.

É engraçado você contando como essas coisas aconteceram. Tudo muito simples, meio mambembe. Acha que isso hoje é possível? A vida era muito mais romântica. As gatas tu tinha que conquistar, as mulheres eram diferentes. Usar drogas tinha um conceito diferente. As músicas eram mais ricas. Hoje é tudo muito mega, muito comercial, com uma batida forte.

Mas você não acha que toda geração diz isso? Que no seu tempo tudo era mais romântico, ingênuo. Não é porque você, quando era novo, era mais ingênuo e romântico, simplesmente? Eu acho mesmo que tinha uma coisa mais simples, no Rio de Janeiro pelo menos. Tem a ver com a perda do sonho. Hoje em dia não se sonha tanto. Tudo parecia mais ingênuo. Pensa no funk que toca hoje na rua. Nas letras, na batida, na violência. Mesmo a polícia era mais light até o fim dos anos 80. Era uma coisa muito mais ingênua.

Quando isso aconteceu? Você consegue ver uma causa, um ponto de ruptura nesse Rio mais simples? Eu acho que a violência em todos os níveis começou a crescer com a droga. Foi a cocaína que mudou e acabou com o Rio de Janeiro. Nos anos 90 a coisa piorou mesmo. E tem o descaso da política em deixar isso tomar o nível que tomou. Deixaram as favelas e o tráfico crescerem sem limites.

E as drogas mexeram contigo também? Porra, eu fui viciado em droga. Comecei na praia, há muitos anos, no Píer. Eu sempre fui muito tranqüilo, mas sem deixar de ser frágil. O que me salvava era o trabalho, mas uma hora começou a me afetar demais a vida. E eu resolvi me isolar, parei de sair na noite, parei de andar com as pessoas que usavam. Quando você é famoso as pessoas querem te oferecer, querem ficar perto, querem te levar para o buraco junto. Meus pais sabiam, mas não tocavam no assunto. Eu cada vez mais envergonhado de mim. Ser um viciado causa vergonha. Era uma coisa depressiva. O pós-uso era cada vez pior, durava uns três dias. Há mais de 15 anos que não toco em droga. Consegui sair disso, hoje posso dar aula da minha história. Hoje eu tô bem a fim de dar palestras disso. Se eu pudesse, não teria colocado nunca um cigarro na boca, nem cheirado cocaína.

Mas chegou perto de morrer ou de tentar suicídio? Não de botar em prática, mas de pensar que eu queria ir embora, não agüentar mais. Infelicidade mesmo. De não saber pra onde correr. E não tenho medo de falar disso não. Porque gente por aí acha que é brincadeira. É nada. Fora todo o mal da cocaína, alguma experiência com outra droga te fez bem de alguma forma? Sim. Quando eu era muito jovem tomei mescalina na América Central. Essas coisas de alguma forma abriram minha cabeça, me fizeram uma pessoa melhor. Liga muito com a natureza. Eu acho que todo mundo deveria tomar um ácido uma vez na vida. O cara que nunca tomou um porre, nunca fumou um baseado. parece que não viveu. Claro que tem gente que nunca mais volta. Eu mesmo, se não fossem as drogas, poderia ter produzido muito mais.

A sua geração, além de ter pego a onda e a ressaca da cocaína, foi a primeira que fundou uma cultura mais hedonista do que politizada, mais ligada ao bem-estar do que ao engajamento. Como você vê isso depois de 30 anos? Olha, eu acho, sinceramente, que o surf me alienou. Por isso é o esporte mais poderoso do mundo, mas é como uma droga. Pode te abrir a cabeça ou pode te destruir. Porque é tão legal, que se foda o mundo. Eu quero ter uma casinha, tocando violão, fumando bagulho e vivendo saudável pegando onda. Não é bem assim. Eu achava que era. Mas você tem que batalhar, produzir, ir pra frente. Quem pega onda tem que estudar, não pode largar escola pra “ser feliz”.

Você largou a escola? Larguei, não tenho nem o segundo grau completo. Se eu não tivesse conhecido o cinema, não sei o que seria de mim.

Então foi sorte mesmo, porque nem tentar virar ator você tentou. Cagada. Sorte total. O cara que me chamou para ser protagonista era gay, eu fiquei fugindo dele três meses por preconceito. Mas eu tenho uma opinião sobre sorte. Quando você tem uma intenção honesta, se você é do bem, uma hora a sua chance vai chegar. Eu só penso coisa boa, só quero o bem. Então eu atraio isso. Sorte está ligada em estar de bem com a vida.

Mas aí, de novo, estar de bem com a vida não teve a ver com o surf? Por causa do surf eu parti para um mundo muito diferente. Mais para o nascer do sol, pôr-do-sol, meio ambiente, me tornei um cara ecológico e me alienei totalmente para a repressão, para a política. Não tava nem aí. Só me incomodava quando os caras chegavam de baioneta, quebrando prancha, dando geral em todo mundo. Os soldados passavam a mão na bunda das mulheres, e ninguém podia fazer nada. Por isso mesmo cada vez mais eu me afastava desse universo. Me alienou, mas me abriu a cabeça para a natureza.

Seus pais não ficaram putos quando você parou de estudar? Ficaram apavorados. Mas, como eles tinham muito filho pra criar, deixaram. Eu sou da mesma escola que meu pai. A gente cria filho para a vida. Educa, aconselha. Mas a vida é deles, eles que decidem o que fazer. O fato é que essa liberdade de escolha é fundamental. Ele preferia que eu fosse um advogado, do mercado financeiro, mas não rolou. E eu sou um cara de muita sorte, qualquer coisa que eu fizer na minha vida vai dar certo.

Falando nisso, a novela que está fazendo está dando certo, não? Muito, é o maior sucesso. Caminhos do coração, a novela dos mutantes. Aconteceu a mesma coisa com Armação ilimitada. Era uma série sem pé nem cabeça, meio surreal, ninguém entendia. Eu aprendi uma coisa com TV, quando criança gosta, começa a prestar atenção em você, a coisa é boa. E está acontecendo isso com a novela.

E gosta de trabalhar na Record? Tô muito feliz. Foi uma coisa genial na minha área, a quebra do monopólio da Rede Globo. A novela que estou fazendo dá 22 pontos em São Paulo. Monopólios são nocivos a qualquer sociedade. É a oportunidade para grandes atores que na Rede Globo estavam encostados ou fazendo escada para garotos bonitos. Hoje uma das minha metas é fazer com que a Record dê certo.

E te incomoda trabalhar para uma emissora com uma ligação tão forte com uma igreja? Eu digo que o mais importante é que o bispo Macedo está dando oportunidade de trabalho para milhares de artistas e técnicos que de alguma forma estão deixando seu recado lá. Eu, particularmente, não sou fiel a nenhum tipo de religião. Não é minha meta. Eu quero trabalhar e colocar cada vez mais programas importantes dentro da emissora, coisas relevantes para jovens, coisas para fazer o Brasil se transformar. O veículo do bispo é importante para essa transformação.

Quando você saiu da Rede Globo estava se sentindo desprestigiado? Certamente. Eu fiquei seis anos fazendo Malhação, e querendo fazer uma minissérie, algo assim. Mas não. Eu ficava na Malhação. E eu não sou de briga. Eu tinha que trabalhar, sustentar a família. Mas quando apareceu uma outra oportunidade eu agarrei na hora. E assim vai ser na Record também, logo aparece lá dentro uma chance, e eu vou emplacar um programa, um projeto meu. Como fiz no cinema, na Globo.

Voltando um pouco, você passou um tempo afastado da TV. Como foi isso? Cara, eu fiquei muito decepcionado com a Globo. Quando acabou o Armação ilimitada, depois que a família toda se separou e a coisa tinha virado um programa de auditório diário, a Globo me esqueceu, não me dava trabalho. Eu não ia mendigar personagens e não merecia aquilo. Começaram a me dar um Você decide, depois outro. e eu larguei. Eu e o Kadu já estávamos fora, com uma produtora independente tentando fazer uma série por nossa conta do Juba e Lula. Mas o plano Collor ferrou a gente. Acabou com a gente.

Mas e essa história de ir trabalhar no governo do Espírito Santo? Cara, isso foi uma loucura. Logo que acabou o Juba e Lula, me chamaram porque eu era conhecido e tinha ligação com o Estado. Trabalhei durante seis meses por lá, em um alto cargo. Minha função era promover o Estado e o governador Albuíno Cunha de Azevedo. Era o primeiro governador negro, do PDT, linha do Brizola, populista, com umas idéias boas. Eu passei a montar uns projetos para trazer o Espírito Santo para o resto do Brasil através da ecologia, cultura e esporte. Fiz algumas ações e, no meio-tempo, fiquei sabendo que o Nelson Mandela ia passar pelo Brasil. Na hora comecei a mandar fax para a África do Sul, contando do primeiro governador negro, convidando o Mandela para ir ao Espírito Santo. E deu certo. Mas se eu te contar a história toda. foi foda.

Conta, então. Começamos a planejar tudo, como seria a festa no estádio, um jantar em um restaurante simples, encontro com o governador. Eu produzi uma campanha de “Mandela vem aí”. Dez dias antes, chegam quatro sujeitos, muçulmanos, e se apresentam como do comitê do Mandela. Bem vestidos, falando vários idiomas. Colocamos eles no melhor hotel, reuniões, desenhando como seria o evento. Os caras tiraram do governo US$ 150 mil para o fundo de campanha do Mandela, dizendo que ele só viria se o Estado contribuísse. No dia em que o Mandela chegou, quatro horas antes do evento, o estádio estava vazio. Alguém fez um bingo em outro estádio para sortear cinco carros, e todo mundo foi pra lá. Eu voei para o estádio, obriguei o cara a me deixar falar no microfone. Me apresentei e disse que ninguém estava entendendo, que um dos momentos mais importantes da história do Espírito Santo estava para acontecer, consegui evacuar o outro estádio e arrastei o povo para ver o Mandela. Resultado: a festa foi um sucesso. Ele veio, rolou tudo certo. Mas aí é que a coisa ficou doida.

Como, como? Quando o Mandela sai de helicóptero, vem um cara me dizer que meu nome estava envolvido em um escândalo. Vai sair na capa da Veja. Foi aí que eu descobri o golpe dos caras. Os tais muçulmanos, do comitê, eram picaretas internacionais. Eles estavam fazendo isso pelo mundo. Onde o Mandela ia, eles passavam antes e tiravam uma grana. Cara, eu não tinha nada a ver com isso. Mas eu estava com o nome na coordenação de tudo. Eu nunca vou descobrir o que aconteceu de verdade. Mas, por eu ter sabido antes, consegui ligar pra todo mundo e não ser envolvido no caso. A imprensa me poupou. Mas nesse dia eu decidi que não trabalharia com política.

E, fora os seis meses de político, o que fez nesses anos antes de voltar para fazer Malhação? Eu voltei para o Rio, e o presidente da Telerj, que na época gostava muito de mim, me disse que estavam abrindo as primeiras franquias de telefonia celular, que ia explodir. Eu virei empresário mesmo, ganhei dinhei ro com isso. A Barra da Tijuca era meu território. Depois abri outras empresas de telecomunicações e tecnologia. Isso durou até 1999. Aí eu vendi tudo e voltei para a TV quando o Ricardo Waddington me chamou para Malhação. Aí eu reapareci careca. E todo mundo tomou o maior susto.

E como foi fazer Malhação? Era ótimo. No começo era. Depois ficou cansativo. Mas eu reapareci para um público que não me conhecia. E eu sempre me dou bem com jovens.

Falando nisso, você, que foi um ícone jovem fortíssimo, hoje, com 50 anos enxerga algo que possa definir a cultura jovem dos nossos dias? Eu acho que hoje é a velocidade da informação. O Bill Gates mudou o mundo. E os jovens compraram isso imediatamente. E acho que o mundo agora vai mudar muito mais rápido do que aquela transformação que durou décadas. Mas a velocidade simplesmente não define uma geração, até porque afeta a todos, não só a molecada. Eu pergunto se você vê algo cultural realmente novo. Você foi muito feliz em dizer isso, porque existe mesmo um buraco, algo que não está acontecendo. E eu acho que algo muito grande vai acontecer, e eu sinto que será uma perda de qualidade de vida muito grande. O mundo vai se deteriorar muito rapidamente. A minha geração viveu uma época muito boa, meus netos vão passar tempos difíceis. Então, sobre esse buraco, acho que algo também muito grande vai acontecer para o bem da humanidade.

Algo como? Eu acho que uma grande tragédia, muita gente vai ter que morrer. A população mundial tem que diminuir muito para que a mentalidade do mundo possa mudar. Para que a classe dominante possa entender. O presidente do maior país do mundo é um cowboy idiota, o da Rússia é um cara perigoso. Pelo menos 3 bilhões de pessoas vão ter que sumir para a Terra se salvar. O ser humano é uma espécie em extinção.

Você acha que isso vai ser uma guerra? Eu acho que vai ser o clima mesmo. Mas eu vejo uma guerra com gente armada também. Mas a solução está nos bairros, nas comunidades pequenas. O mundo vai ter que se organizar em comuni dades pequenas que decidem como querem viver. Aí o que a con tece? As pessoas vão se armar para defender suas comunidades. E os governos tratam de assuntos globais apenas. Muito doido isso que a gente está falando. Eu gosto muito mais de falar disso do que da minha história. Mas sabe o que me preocupa mesmo hoje?

O quê? A cor que vai ter a bougainvíllea que eu plantei. Porque eu não vejo solução a curto prazo. Porque o foda é que os bad guys fazem um estrago muito grande. A luta é desigual, fazer o mal é muito mais fácil. Por isso que a gente está se extinguindo.

Ainda assim você é feliz? Muito, pra caralho. Meu sonho se tornou realidade. E não estou satisfeito, eu quero mais. Ainda quero dar pra todo mundo aquilo que eu aprendi dentro d’água, naqueles pores-do-sol no Havaí, no Arpoador.

E o que aprendeu? Primeiro é respeitar tudo. A natureza e o ser humano. E segundo é não ter medo. Enfrentar.

Você pega onda ainda? Não, quase nunca. Em que eu sou viciado hoje é em vôlei de praia, de dupla.

E seus filhos o que fazem? Trabalham no mercado financeiro. São o que meu pai queria que eu fosse. Mas os dois pegam onda pra caralho. Surfam muito mais que eu. Por eles, iam morar no Havaí, e eu não deixei. Papai não paga mais. Não deixei eles fazerem o que meu pai deixou. Eu tive sorte.

Como você se sente envelhecendo? Rapaz, olha pra mim. Eu continuo mentalmente muito jovem. Com uma cabeça de adolescente, meu olho ainda brilha com novos sonhos. A única coisa é que meu corpo já não acompanha minhas idéias.

E essa juba, Lula? Eu não tenho muito pudor em contar as coisas. Quando eu voltei para a televisão foi completamente careca. E hoje eu não sou mais, coloquei essa prótese, tá vendo? Eu rejuvenesci uns dez anos. E isso é uma coisa genial, coloco de 30 em 30 dias para fazer manutenção, entro no mar, faço tudo. É com uma cola especial, super-resistente. Pra mim, como ator, é demais, porque posso fazer qualquer personagem. E me dá um visual mais bonito mesmo. Eu não fico mal com isso. Não me preocupo muito com aparência, roupa, essas coisas. Quando alguém me fala que estou cabeludo eu logo digo “é peruca!”. Tenho dente falso, que perdi fazendo cena de ação. Sem problemas de vaidade com o envelhecimento.

E você é amigo dos caras da Armação ainda, é amigo do Kadu? Somos amigos, claro. Ele me liga sempre.

E que história braba essa que aconteceu com ele e a mulher. Uma história muito ruim, né? Mãe dos filhos dele. Mulher é um bicho muito difícil. Eu conheço muito mais as mulheres do que ele. Ele tem pouca paciência para mulher. E tem um segredo aí, você não pode casar com a mulher errada. Senão tumultua tua vida inteiramente. Sempre tive muita sorte, escolhi pessoas muito boas para ficar do lado. Hoje estou no meu segundo casamento, com uma mulher maravilhosa, uma cabeça incrível.

E você e o Kadu estão armando algo juntos novamente? Ele me pressiona para fazer o longa-metragem da Armação ilimitada com toda a família. Tem uma história já, mas eu não posso te contar. É uma sinopse muito boa. Eu só não consigo mais ir atrás de dinheiro com o roteiro debaixo do braço. E hoje somos atores melhores, a técnica é melhor, efeitos especiais, dublês. Eu acho que vai sair. Pô, fazem Indiana Jones com o Harrison Ford aos 60 anos. Por que não?

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