Goldman reconta suas experiências de adolescente com os revolucionários italianos
Acabo de voltar de Roma. Lá fui levado por velhos amigos a um bar em Trastevere, onde um conjuntinho mambembe tocava uma chatíssima bossa nova. Não conseguia conversar, a figura melancólica do percussionista consumia minha atenção. Conhecia de algum lugar aquele senhor magrelo e loiro, de olhos tristes, que tocava bateria com desânimo. Aproveitei uma pausa, me aproximei e elogiei o som só pra puxar assunto. Quando ele disse que se chamava Enzo e que tinha morado na Bahia na década de 70, tive que disfarçar e conter a emoção. Era o Enzo!
Em 1977, aos 16 anos, abandonei o colégio. Estava viajando pelo Nordeste de carona e fui parar numa espécie de comunidade de italianos em Itapoã, em Salvador. Muitos eram estudantes envolvidos com a luta armada e, com medo de serem presos, deram o fora da Itália. O líder era um homem lindo, inteligente e carismático - o mesmo Enzo, o percussionista sorumbático. Trinta e três anos antes esse cara mudou o rumo da minha vida. Mas agora ele nem se lembrava do adolescente espinhento que passou uns meses em Itapoã.
Aquela italianada me marcou profundamente. Tudo era dividido entre todos, inclusive namoradas e namorados. Cozinhavam pratos maravilhosos e eram sofisticados, engraçados e elegantíssimos. Me acolheram com muito carinho e em poucos dias virei uma espécie de mascote da comunidade.
Na minha fantasia, eu estava com os personagens do livro Porcos com asas, que fez o maior escândalo quando publicado em 1976. Era um diário político-sexual de dois adolescentes romanos. Os autores misturavam despudoradamente grandes ideais políticos com maconha e sexo anal. Era tudo que importava na minha vida. Porcos com asas tinha feito minha cabeça e agora um pedaço daquele sonho se oferecia a mim na Bahia.
Mas o que mais me atraía ali eram os maravilhosos peitos da Alice, mulher desse Enzo, italiana gatíssima, marxista-leninista, morena de olhos verdes - uma Sophia Loren revolucionária e porra-louca, que andava nua pela casa, me fazendo subir pelas paredes. Mas ela, como todos os outros, era pelo menos dez anos mais velha e me intimidava com suas citações de filósofos que eu não conhecia e raivosas imprecações antiburguesas. Com um mulheraço daqueles eu não tinha a menor chance. Me consolava no banheiro, me masturbando com seu diafragma.
Uma noite fiquei a sós com a Alice na sala e ela me ofereceu um baseado. Chapado, mal conseguia conversar, hipnotizado pela sua beleza. Fazia calor e fomos dar um mergulho na praia. Era uma noite de lua cheia e ali na água tomei coragem e agarrei-a. Dei o beijo mais desajeitado do mundo na sua boca. Ela correspondeu o mínimo possível, forçou um sorriso paciente e com uma generosidade maternal me deixou lamber um peito por alguns instantes antes de voltar para casa.
Quando acordei na manhã seguinte, os italianos estavam reunidos e percebi que falavam sobre mim. Disseram que eu era menor de idade e que não era bom ficar ali, que seria melhor que eu voltasse para a casa dos meus pais. Alice evitava meu olhar. Com certeza ela tinha contado o que aconteceu. Naquela tarde me levaram para a estação de ônibus, onde embarquei para São Paulo. Vendo-os desaparecer pela janela do ônibus prometi que um dia seria cabeça-feita como aquele pessoal. Ainda ia morar em Roma e participar de muitas orgias e passeatas.
Thatcher e próstata
No inverno de 1986 eu estava em Nova York desempregado, quando soube de uma vaga na Telemontecarlo, rede de televisão italiana que a Globo comprara, com sede em Roma. Fiz as malas e fui. Mas cheguei com pelo menos uma década de atraso. Nos anos 80 de Ronald Reagan, Margaret Thatcher e papa Wojtila, todos os ideais tinham se extinguido. Fellini, Pasolini, Visconti e Antonioni - meus ídolos do cinema italiano - já estavam mortos ou tinham perdido suas vozes. Eu também tinha mudado e revolução nenhuma fazia mais tanto sentido.
Perguntei para o Enzo o que tinha acontecido com a Alice. Ele me contou que eles casaram e tiveram duas filhas, hoje já grandes. Mas há muitos anos tinham se divorciado e não se falavam mais. Ela era gerente de uma agência bancária no interior. Com ar deprimido, começou a contar que faria uma cirurgia na próstata. Por sorte foi interrompido quando o chamaram para voltar ao palco. Tocaram uma péssima versão de "Chega de saudade". Acenei um tchau da porta do bar. Há muitos anos os porcos tinham deixado de voar.
*HENRIQUE GOLDMAN, 48, cineasta paulistano radicado em Londres, é diretor do filme Jean Charles. Seu e-mail é hgoldman@trip.com.br