O saxofonista que trabalhou com artistas de estilos variados, de Kendrick Lamar a Herbie Hancock, conversou com a Trip sobre a importância de quebrar barreiras na música e na vida
O saxofonista norte-americano Kamasi Washington, 38 anos, é um dos principais responsáveis por revitalizar o jazz contemporâneo. Ele já tocou tanto com gigantes do gênero, como Herbie Hancock e Wayne Shorter, quanto com expoentes da música experimental da atualidade, como o produtor Flying Lotus e o rapper Kendrick Lamar. Essa fluidez é evidente nos quatro álbuns solos do saxofonista tenor de 1,92 metro de altura, que funde jazz, funk, electro-funk, afrobeat, hip hop e música clássica, entre outros gêneros.
Seu disco mais recente é Heaven and Earth (2018), uma epopeia com mais de três horas de duração, no qual o músico (que sempre se apresenta de túnica) criou uma atmosfera sombria, psicodélica e espiritual. Sua verve foi de ordem política, um posicionamento frente os Estados Unidos de Trump, desigualdade social e racismo – o que fez com que fosse considerado o representante no jazz do movimento Black Lives Matter (vidas negras importam).
Em sua segunda passagem pelo Brasil, para uma miniturnê por Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo, Kamasi conversou com a Trip sobre a importância de não confinar a música a determinados gêneros e não restringir pessoas a certos estereótipos: “É um sinal de insanidade odiar alguém pela aparência”.
Seu mais novo disco, Heaven and Earth, vem sendo reconhecido por seu teor político. Como é possível entregar esse tipo de mensagem com um disco instrumental? Eu decidi me colocar na música, quem eu sou e no que acredito. Em música instrumental, há poucas ou quase nenhuma letra, mas se você colocar sentimento, pode tocar as pessoas tanto quanto as palavras.
Quais são as questões que mais te preocupam no momento? Existe tanta desigualdade no mundo. Uns com tanto, outros com tão pouco. Ninguém precisa de tanto e ninguém deveria ter tão pouco. Quando você pensa em como vivemos e como interagimos uns com os outros, quer ter o máximo que puder sem consideração por outras pessoas ou quer estar em um mundo onde todo mundo pode ser feliz?
O racismo está entre essas preocupações? Racismo é uma questão que afeta não só aos negros, mas a qualquer um. Não deveríamos querer viver em um mundo onde as pessoas se odeiam por causa da cor de sua pele. É um sinal de insanidade odiar alguém pela aparência. É como você passar a odiar alguém pela estatura dessa pessoa, pelo quão alta ela é. Quando o mundo é ruim para pessoas que têm certa aparência, um dia ele será ruim para você. O mundo muda e ninguém deveria querer que esse tipo de loucura determine o que acontece no mundo. Hoje em dia, nos EUA, quando saio na rua, vou aos lugares, encontro pessoas e interajo, parece que está tudo bem e todos espalham mensagens de amor. Mas, ao mesmo tempo, quando 50 milhões de pessoas votam em alguém como Trump, você percebe que ainda há muito trabalho a ser feito. Vejo que o mesmo está acontecendo no Brasil, no Reino Unido e em todo o mundo. Isso é horrível. Você percebe que as pessoas ainda estão alimentando esse tipo de sentimento. Mesmo que elas não se declarem assim, elas ainda são racistas. Ignorância é preponderante no ódio, então precisamos atacar a ignorância para acabar com toda essa onda de ódio.
O novo álbum tem uma atmosfera bem psicodélica. Isso de alguma forma é uma resposta aos tempos que estamos vivendo? Sim, com certeza. Tento, por meio da música, ir além da consciência. Trabalhei com um engenheiro de som incrível chamado Russel Elevado e ele trouxe muito desse som psicodélico.
Você é conhecido por misturar jazz com hip hop, música clássica, étnica e R&B. Como todos esses elementos foram incorporados ao seu som? Foi assim que aprendi música, tocando todos os estilos. Eu cresci tocando gospel na igreja, estudando jazz e música clássica e escutando hip hop, tudo ao mesmo tempo. Então é natural para mim combinar tudo isso. Nunca quis tocar um único gênero e, quanto mais velho eu fico, mais estilos conheço.
Tendo estudado música formalmente, você encontrou algum tipo de resistência na academia a esse tipo de transgressão? Sempre me cerquei de gente de mente aberta, e uma das premissas da escola onde estudei [Universidade da Califórnia] é misturar música de todos os estilos e de todas as partes do mundo. Tanto que meu diploma na faculdade foi em etnomusicologia.
Você se considera um discípulo de Miles Davis, no sentido de manter o jazz dialogando com a música contemporânea? Ele entendeu que música é infinita. Ao mesmo tempo que flertava com o contemporâneo, fazia o que havia mais de vanguarda na música. Ele estava sempre buscando. Eu definitivamente aderi a essa mentalidade, de manter a curiosidade e a criatividade abertas.
Você já tocou com medalhões como Herbie Hancock e Wayne Shorter. Como foi para você? Foi sensacional. Cresci ouvindo Herbie e ele é tão aberto. Quando toca com ele, você encontra todas as portas destrancadas, todas as possibilidades estão bem na sua frente e realmente te levam a lugares interessantes. O mesmo vale para Wayne Shorter, ter tocado com a banda dele mudou a forma como eu penso sobre música, tão livre e sem barreiras. Quando você toca com eles, a sensação é de que, independentemente do que faça, está expondo algo bonito.
Como você se sente com relação ao purismo no jazz? Acho que é um equívoco, pois não se separa música assim. Jazz é só uma palavra e música é música, não é confinada aos limites de uma classificação. Quando alguém diz que gosta de jazz purista, essa pessoa está dizendo que gosta apenas de uma parte do que a música pode oferecer, o que é infinito. Se você só gosta disso, tudo bem, mas não significa que todo o universo deva se restringir assim, o que me parece meio infantil. Como alguém que decide que só gosta de maçãs e quer que todos no mundo só comam maçãs. Tudo bem se você é assim, mas eu quero provar todos os tipos de frutas deliciosas que existem.
Você acredita que certos gêneros musicais são maiores do que outros? Não, acredito que só existem gêneros musicais diferentes uns dos outros. Estudando etnomusicologia entendi que cada estilo tem um propósito e você não pode separar isso propósito do som que escuta. Eu gosto de todos os estilos de música e não acho que um seja melhor do que outro. Eu simplesmente amo música e quero aprender mais. Tem tanta gente fazendo música incrível que eu não conheço, ao mesmo tempo que há tanta música incrível que ainda quero fazer. Não me preocupo se a música é pop ou erudita, mas, sim, se é boa. Não me prendo a limites e vejo que muita gente da minha geração também se sente assim. Acho que é um reflexo de como as pessoas são na vida e espero que isso signifique que elas não estejam se separando das demais, mas sim como partes de um todo.
A música étnica tem bastante espaço na sua obra. Como é o seu processo de pesquisa de ritmos tão variados? Bebo de todos os lugares, escuto a todos os tipos de música de todo o mundo. Às vezes esbarro nas coisas, como em lojas de discos, às vezes as pessoas me recomendam algo diferente para ouvir. Encontro músicos quando estou em turnê, toco e acabo aprendendo com eles. No Rio, conheci uma orquestra fenomenal vinda da Bahia [Orquestra Rumpilezz], o que me fez querer pesquisar mais sobre a música de lá. Conheci canções de umbanda e candomblé e achei muito bonito.
Do que você gosta em música brasileira? Música brasileira tem movimentos interessantes. Adoro os ritmos e as melodias. Um dos meus favoritos desde que eu era criança foi Hermeto Pascoal. Também amo Martinho da Vila, Céu, Milton Nascimento… Gosto de músicos brasileiros de todos os tipos.
Acabamos de ter em São Paulo a edição mais recente do Nublu Jazz Festival, no qual você tocou dois anos atrás. Vários dos músicos estão na cidade. Podemos esperar alguma jam? Sim, com certeza! Os organizadores do meu show estão tentando armar algo assim.