por Redação

Relembra a menina de sorriso matador

Era, sem dúvida, uma coisinha inteiramente extraordinária. Um projeto de gente: mais graciosa que aquilo, impossível. Teria no máximo seis anos, toda tenra e rosada. Numa palavra: fofa. Seu sorriso era matador, era olhar e se apaixonar. Seus olhinhos eram da cor mais preta possível, vivíssimos sob longas pestanas. Parecia dominar todo o espaço circundante, a uma simples olhada. Cabelos sedosos, volumosos, da cor dos olhos. Estavam sempre na maior franja cerrada, ou em maria-chiquinha faceira. Era linda, se é que essa ou outra expressão possa traduzir a plenitude daquela existência.

Conquistava tudo e todos. Trago a impressão que até os cães balançavam o rabo ao vê-la passar, naquela micro saia, esbanjando simpatia e alegria. E a danadinha sabia o quanto era encantadora. Porém, não era como essas crianças chatas, cheias de convencimentos. Embora, é claro, usasse dos talentos que já dominava para seduzir e galvanizar todas as atenções.

Acontece que a garotinha acreditava, seriamente, que o mundo girava em torno de si. Apenas buscava conservar tudo assim a seu gosto e vontade. O que, para todos que a conheciam, parecia muito justo, escravos que éramos de seus encantos.

Não sei nem como e muito menos onde aquela menininha aprendera a desenvolver aqueles enormes poderes. Acho, nem os pais sabiam. Era inato, sem dúvida. A beleza já nasce com graça, desconfio que são interdependentes. O fato é que bastava chegar em algum lugar e, naturalmente, todos a estavam olhando. Interessadíssimos em cada gesto de seus poucos centímetros de humanidade.

E era completamente consciente disso, apesar de vivenciar tal processo na mais suave tranqüilidade. Distribuía sorrisos, às vezes até beijos e respondia a todos qual renomada artista, se relacionando com seus fãs. Poderia se jurar, havia algo de glamour e levemente sensual em toda aquela generosidade. A menina era demais.

Despertava em todos aquele velho pensamento: 'isso vai dar um trabalho quando crescer...'. Indubitavelmente, havia crianças mais belas que ela. Mas nunca vi nenhuma com aquela classe, com aquele ar de princesinha dos filmes de Walt Disney. Mas de mulherzinha feita de ternura e doçura, como existem igrejas feitas de sal; de ouro; de rocha...

Carregava sempre consigo uma boneca de pano. Chamava-se Gonegunda: Gundinha para os íntimos, segredava a garota. Não se sabia de que misteriosa fonte saíra tão exótico nome. E falava com a boneca qual essa fosse uma entidade viva. Sua filha, como esclarecia a todos nós, leigos, ignorantes que éramos de seu mundinho pessoal.

Provavelmente, era sua mãe quem tinha bom gosto. Mas quem a visse sempre tão impecavelmente vestida, sem querer, pensaria logo que era ela quem escolhia o que vestia. Sei apenas que tudo o que vestia apenas realçava sua beleza e a tornava mais atraente ainda. E tinha um pudor... Não mostrava o tórax de modo algum. Sei lá o que julgava esconder ali. Acho que só a mãe a via nua.

Era independente. Ah! Sim, era mesmo. E corajosa também. Sua curiosidade era como uma esponja a absorver todo o mundo à sua volta. Já lia quase tudo e escrevia por desenhos objetivos e bem definidos. Conversava com qualquer adulto de igual para igual. Gostava de inventar histórias.

Teimosa... Sempre queria ter razão e brigava quando contestada. Emburrava. Fazia cara feia, enchia as bochechas formando o maior bicão. Uma tromba. E... ficava mais linda ainda! Vencia sempre. Não chorava, era durona. Acho que só a vi chorar uma vez, e penso que foi de raiva.

As outras crianças, mais velhas ou mais novas, a aceitavam instantaneamente. Mas mantinham uma certa distância respeitosa. O bichinho era bravo, e como era bravo! Não media tamanho para brigar, caso a contrariassem. Seus olhinhos atiravam para matar.

Mas, em geral, não precisava brigar, liderava naturalmente. As outras crianças, jovens e até adultos, submetiam-se a seu comando com certo prazer. Eu mesmo, esse velho bobo, era mais um de seus inúmeros fãs. Quando a via visitando o pai no Carandiru, era como contemplasse uma estrelinha. A menininha brilhava sob meus olhos.

No pátio, onde ocorriam as visitações, não havia quem não a conhecesse. Pelo menos de vista, pois, com certeza, todos que passavam por ela a viam. Muitos paravam para admirar. Entre nós, presos e nossos familiares, possuía seu reinado. Éramos todos súditos de sua graça e seu encanto.

Chegava já seduzindo os funcionários, esparramando a luz de seu pequeno ser por todos nós. Sem distinção ou preconceitos.

Seu pai, parece, vivia para ela. Aquele homem tinha um orgulho de sua menina, que beirava ao fanatismo. Fora preso quando ela era apenas um bebê. Muitas vezes o surpreendi em lágrimas em sua cela. Seu lamento era por estar longe daquele serzinho tão amado. Quando ela teve sarampo então, nossa! Ele quase enlouqueceu aqui! Aquele, eu tinha certeza, jamais retornaria à prisão.

Sua mãe era a única que não se deixava escravizar pelos seus encantos. Claro que sentia o maior orgulho de sua produção, mas tratava-a com seriedade e até com certo rigor. Não podia ser seduzida e dominada. Era preciso educar. Mas às vezes cedia. Por dentro era a maior coruja, e o quadro era só de beijos e abraços.

Muitos de nós presos procurávamos conseguir balas, bombons, pequenos brinquedos e adereços. Mil coisinhas para presenteá-la e sermos premiados com sorrisos, um beijo e um 'muito obrigado', cheio de emoção. Eu mesmo era o tio da bala. Jamais deixei de ter a balinha dela. E tinha de ser daquela de mascar, de outra ela não gostava.

Quantos anos faz isso? Uns vinte, pelo menos. Nunca mais vi o pai da garotinha. Nem soube mais nada daquela família. Como estaria a garota agora? Crescera bela e encantadora como era? Não a esqueci jamais. Lá por dentro de mim, guardo a esperança de que algum dia terei notícias. Pois ela há de ser alguma coisa de destaque nesse mundo. Impossível tamanha graça e encanto permanecer obscurecido.

Aguardo nem sei por que.

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