O MENINO E O MEDO
Fui um menino como outro qualquer. Como um rio, sabia, instintivamente, como contornar obstáculos. Aprendia rápido demais. Uma esponja a sorver o mundo. Jogava bola; bolinha, figurinhas a bafo e adorava empinava pipa com cortante! Tudo parecia dança no ar e os meus passos eram os do caçador implacável.
Toda certeza era que água apagava o fogo. O resto era um turbilhão. Meus olhos imensos a tudo tocavam com carinho, absorvendo com delicadeza. Voava como qualquer ave, e rastejava como todo réptil.
Roubávamos frutas no quintal dos vizinhos e corríamos de suas espingardas com seus tiros de sal. Roubávamos na feira e corríamos rindo dos feirantes que tentavam nos pegar. Nunca nos pegaram. Não tivemos mesada, dinheiro ou qualquer coisa de valor. E quando tinha, podia saber que era roubado.
Não podia aparecer galinha, pato, coelho, ganso na rua. Não importava de quem fosse. Estava solto na rua era nosso. Nós éramos os donos da rua. Matava a estilingada (eu era exímio com meu estilingue). Limpava na lagoa, salgava, levava para o campinho e assava no braseiro da fogueira que sempre fazíamos à noite.
Vestido somente com um calção largo feito de saco de farinha com elástico na cintura, pé no chão e estilingue no pescoço, eu vivia sujo de terra, barro e pintado de esperanças. Tomava do céu todo ar que me faltava. Caçava passarinhos no bambuzal e pescava traíras e tilápias na lagoa.
Não tinha medo da polícia. Nunca tive. Quando fazia “arte”: alguma mãe reclamando no portão de casa de seu filho machucado pôr mim, ou alguma denúncia de roubo , minha mãe ameaçava:
_ Na próxima te levo para a Delegacia! Lá você vai ver o que é bom para tosse! E nunca levou.
Eu nem ligava, sabia que eles não iam querer nada comigo; eu era muito pequeno, iam me prender onde? Mas tinha medo dela contar para meu pai. Era uma ameaça infinitas vezes maior. E ai eu tremia de medo. Pavor. O cara batia bem; parecia gostar de bater em mim. Sempre senti que havia algum prazer nele ao me espancar. Ele era minha polícia. As ameaças me controlavam um pouco. Evitava cabular aula para nadar ou pescar e não dava estilingada ou paulada em ninguém, pôr um bom tempo.
Vivi o resto de minha vida combatendo o medo que meu pai incutiu em minha mente. Sempre que o medo se agigantava, eu me atirava ao que me desafiava violentamente. Quebrei a cara quase sempre. Aprendi a não temer enfrentando perigos constantemente. Estive presente em trocentas rebeliões em que a faca comia, cabelo voava e a polícia entrava atirando em quem pegasse.
As paredes de nossa casa (alugada) eram finas, os pensamentos gelados, de estremecer. O abraço e o peito quente de minha mãe me protegiam.
Infinitos segundos se acumularam, as ruas de casa se fizeram no resto do mundo e a vida fluiu. Os sonhos foram mortos, abrindo espaços a pesadelos obscuros. Ultrapassei na dor o medo que me consumia. Jamais aceitei ser medroso. Os valores se inverteram na cultura das ruas que fui obrigado a aprender. Já não sabia mais sobre o certo ou errado. O real me escapou e mergulhei na ilusão de um mundo que não existia.
Hoje após décadas de aprisionamentos vividos, pensando naquele menino que os medos controlavam, percebo que ao vencê-los, me perdi. Pedaços de vento bloqueiam essa tristeza retardada. Fica aqui uma leve impressão de que tudo podia ter sido tão diferente...
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Luiz Mendes
17/12/2010.