Caramuru: ”a paisagem turística é uma invenção ocidental, urbana e capitalista”
A paisagem turística é uma invenção ocidental, urbana e capitalista. As praias, que antes eram só lugar de embarque e desembarque de navios, começaram a ser frequentadas pela aristocracia europeia em meados do século 19
Quando eu era pequeno, em Ubatuba, havia uma coisa que me intrigava. Para mim a praia era o paraíso, mas eu via que os caiçaras não davam a menor bola. A praia, de certo modo, nem mesmo existia para eles. O turismo estava nascendo, ali, e a chegada dos paulistanos punha frente a frente duas visões completamente diferentes. Enquanto as famílias de fora buscavam avidamente um espaço nas estreitas faixas de areia entre a terra e o mar, os locais só iam à praia por obrigação. Os caiçaras, eu pensava, viviam num paraíso e não se davam conta. Não à toa, eram vítimas fáceis da especulação imobiliária e, a partir dos anos 60, foram vendendo a preço de banana terrenos à beira-mar que hoje valem fortunas. Eu não conseguia entender aquilo, e a ficha só foi cair anos depois, num insight, quando li que Paul Cézanne, que tem entre suas obras uma série de telas retratando o pico de Sainte-Victoire, na Provença, ficou pasmo ao perceber que muitos camponeses nunca tinham visto o monte. Olhavam, mas não viam. O pico estava lá e não significava nada para eles. Era uma parte quase transparente do cenário de vida dura que eles levavam.
A paisagem (a praia, a montanha, um vale nevado...) não é “natural”. É uma invenção ocidental, urbana e capitalista. A partir de um certo momento, primeiro na Europa e depois mundo afora, passou-se a vender paisagem, num negócio novo chamado turismo. Destinado originalmente às elites, ele logo se voltou para onde o povo estava, lucrando com a ascensão das classes médias e, um pouco mais tarde, com o proletariado assalariado e o direito às férias. Os salários passaram a comprar, além de roupas e objetos, “paisagens”. As praias, que até então eram apenas lugar de embarque e desembarque, começaram a ser frequentadas pela aristocracia europeia a partir da segunda metade do século 19, e o resto da população não tardou a aderir.
Foi quando uma série de cidades pobres do litoral sul da França, como Cannes e Mônaco, começou a se tornar fashion. Logo se criou uma “cultura da praia”, nascida não de quem vivia nela, mas de quem a visitava (e que gerou uma estética própria, da qual o biquíni e o surf são bons filhos, os Beach Boys e os espetinhos de queijo, nem tanto). O fenômeno atravessou o Atlântico, desembarcou nos Estados Unidos e, já entrando no século 20, no Brasil (você não verá imagens de Dom Pedro II tomando banho de mar). Aonde chegava, a “cultura da praia” atropelava as populações locais, que não a entendiam, mas que, por bem ou por mal, acabavam por se adaptar. Foi assim que pescadores viraram quiosqueiros, e objetos do dia a dia deles, aos quais ninguém dava valor, foram promovidos a “artesanato” (que será fabricado na China).
Inferno ou paraíso?
Ao longo do século XX a indústria do turismo explodiu e se tornou uma das mais importantes do mundo. Ela vende a praia como a materialização do paraíso. E a praia é um dos destinos mais democráticos que o turismo oferece: basta chegar e usar. Mas a praia é um recurso limitado e não renovável. Por isso mesmo, justamente quando é mais valorizada, ela nunca foi tão maltratada. Muita gente em busca do paraíso significa muita especulação imobiliária, muito lixo e muito esgoto.
A “cultura da praia” ficou tão poderosa que nem mesmo dorme: na Vermelha do Centro de Ubatuba, a “minha” praia, luaus acendem fogueiras e deixam na areia, de manhã, rastros de urina, de fezes e de outros lixos inomináveis, além de guaruçás (siris) insones e atônitos com o regime de utilização 24 x 7 que os turistas impõem ao seu lar.
Para os antigos caiçaras, a praia representava apenas o acesso ao oceano, onde se buscava, com grande dose de sacrifício pessoal e riscos, uma parte importante do sustento. Pessoas morriam com frequência no mar, e não era por esporte. A praia estava mais para inferno do que para paraíso. Os caiçaras obviamente não entendiam aquele gosto dos turistas por se deixar ficar na areia, tostando e se besuntando de bronzeador. Mas as coisas mudaram, e hoje os filhos e netos daqueles pescadores austeros incorporaram a “cultura da praia”: igualzinho aos turistas, eles tomam sol, surfam e jogam frescobol. E o paraíso, que era paraíso quando ninguém o via, nem mesmo quem morava nele, está se deteriorando, agora que todo mundo quer um pedaço para si.
É bom e justo que o paraíso seja de todos. Mas, mantendo-se o atual modelo de ocupação, será que ele aguenta? Ou será que, como para os velhos caiçaras que eu não entendia, o paraíso já não estará quase virando um inferno?
*André Caramuru Aubert, 50, é historiador e trabalha com tecnologia. Seu e-mail é acaramuru@trip.com.br