Bush se parece mais com um plantador de abacates que com um cowboy
O novo mainstream
Tenho ouvido e lido, de gente muito inteligente e articulada, palavras e textos bem pensados, raciocínios elaborados, fina ironia e elegantes silogismos, tudo em favor da guerra que vem por aí. Há também, dentre todos esses refinados pensamentos, uma tendência a jogar pro lado de lá, entre os "burros" do mundo, a defesa da não-guerra.
Fico pensando, depois de ler tudo isso, como o tal do "politicamente incorreto", essa corrente que nasceu como uma legítima reação às bobagens e aos modismos políticos e sociais acabou por virar lugar-comum, repetindo, à inversa, as mesmas leviandades que, em tese, nasceu pra combater. Faz parte do mainstream agora, assim como o "politicamente correto" dava o tom dos anos 90.
Não tenho vergonha, porém, de passar pro outro lado, assumindo essa minha condição de "politicamente correto" ou, se preferirem, dentre os "burros" do mundo.
Ouvia ontem à tarde um programa de rádio em Nova York (Jonathan Schwartz - The Sunday Show), o narrador, com imprevisíveis comentários, sempre curiosos e pessoais, disse, entre um Frank Sinatra e outro, que gostava muito de abacate, o fruto, mas que cada vez mais tinha dificuldade em comer um bom abacate em Nova York.
Todos sem sabor nem consistência, dizia ele. Os culpados seriam os plantadores californianos, que estariam "forçando" os abacateiros a fazerem algo que não queriam fazer, ao menos neste momento. Ou seja, não era a hora de os abacatinhos virem ao mundo.
Cada vez que vejo Bush na TV e as notícias todas sobre essa guerra contra o Iraque, tenho essa impressão de alguém indo além do limite do razoável. Há qualquer coisa lá que não soa bem. Mas não me parecia que a imagem do cowboy texano, dando esporadas e golpes de chicote na opinião mundial, era o portrait mais adequado.
Jonathan Schwartz, sem querer, me deu agora a charge perfeita. Na verdade, o estilo Bush, de alterar o curso natural das coisas, criando partos prematuros e riscos de deformação, é mais parecido com um plantador de abacate californiano, não com o cowboy texano.
A guerra em si
Há poucas chances de que esta guerra dos EUA contra o Iraque seja evitada. Pode ser que o seu início seja adiado, por algumas semanas a mais talvez, mas é praticamente impossível que não ocorra. É uma pena.
Não sou um pacifista, tampouco um defensor moral da paz a qualquer preço. Sigo a cartilha dos moderados, segundo a qual, às vezes, em nome dessa própria paz, é preciso declarar guerra, da mesma maneira que em nome da democracia, é preciso proibir os atos que são contrários e ameaçadores ao sistema democrático. Por pura perspectiva utilitária, damos um murro na mesa.
Reconheço, porém, que a declaração de guerra é sempre um fracasso humano. É uma constatação de que houve uma incompetência, entre ambas as partes, de encontrar uma forma menos traumática de superar um desentendimento.
Há gente, mais revolucionária, que vê na guerra algo romântico e encantador, uma manifestação necessária de tempos em tempos, enobrecedora do espírito humano, criadora e formadora de caráter que só a experiência da dor pode trazer. São, portanto, justificáveis, as guerras.
De fato, como não se encantar com aquela cena do General Patton, interpretado por George C. Scott, em que no day after da batalha, suspira, em excitação e mea-culpa: "God help me, I do love it so". Ou como negar os laços de amizade, honra, respeito e patriotismo que a guerra, por definição, aporta a uma nação? Não há charme em reformas, mas há muita "adrenalina" nas revoluções. Não é sem razão que líderes como Che Guevara continua um ícone juvenil, estampado pelo mundo afora em baratas camisetas de fundo verde musgo. E a Revolução Francesa é um best seller muito mais vendável do que a sua prima Inglesa, que merece somente breve comentário nas aulinhas de história.
Mas me parece que a idéia de guerra, na acepção romântica de outrora, já faz parte do passado, não? Guerras atualmente, em escala mundial, são cirúrgicas e digitalizadas. Não têm mais espaço para o apelo dos velhos clichês de honradez e heroísmo. É difícil, portanto, atualmente, justificar as guerras pelo seu viés romântico, pelo seu componente de formador e enobrecedor de caráter. Em tempos de ataques aéreos em pedal eletrônico, é pouco provável que o dilema entre a escolha entre o heroísmo e a covardia seja forjado no tabuleiro do computador. Não há mais trincheiras e corpos na lama que permitam os olhos nos olhos.
O outro comum argumento recorrente em nome da guerra são os laços de nacionalismo e estreitamento social de uma nação, que só o conflito com o inimigo comum proporciona. O senso comunitário e as costuras sociais seriam apertadas até o último nó, dizem, com ganhos e benefícios futuros. Há aí uma distorção. União nacional, nacionalismo, é premissa, não resultado.
Pode ocorrer inversamente, é verdade, mas é efeito colateral e, no mais das vezes, a dose do remédio mata antes de eventual benefício. O nacionalismo sempre nasce como a catapulta necessária, o instrumento de fácil manejo, a serviço dos governos ou dos grupos paramilitares, pra dar o pontapé unificador e fazer o chuveirinho na área. É sempre apelo rasteiro e vulgarizado dos laços comuns, da mesma etnia, dos tipos cruzados de sangue. Todo mundo conhece o truque e há centenas de exemplos históricos. Não preciso citar nenhum.
O Iraque, uma história diferente
Ainda que transpuséssemos os obstáculos acima, o que permitiria ver a guerra, digamos, de uma forma mais nobre, ainda assim fica difícil justificar essa guerra no Iraque. A razão é que aqui falta tudo. Não há "romantismo" envolvido, não há coesão social entre os americanos, não há sequer claros objetivos definidos. Do ponto de vista lógico, é falho. Do lado estratégico, não emplaca. Sob o aspecto moral, é manco. O problema maior desse potencial conflito não é nem sequer se os "fins justificam os meios". Nem se Bush é o demônio reencarnado. Tampouco se os EUA são uma real ameaça à paz na terra. O problema aqui, que salta aos olhos, é que sequer os fins foram justificados, quanto mais os meios. Não houve até agora nenhum sério debate a respeito do real objetivo disso tudo.
Enganam-se, pois, quem acha que as manifestações anti-guerra nos EUA são fruto de uma cândida massa de pacifistas, sempre disposta a evitar a guerra, em qualquer circunstância, por simples opção moral. Equivocam-se os que acham que há nesses movimentos um rescaldo dos anti-globalizantes, do movimento verde, ou de qualquer outra surreal manifestação anti-capitalista.
O que está ocorrendo nesse país e pelo mundo afora não é somente um ato antiamericano, ou anti-Bush, ou anti-McDonald's, ou, ainda, uma tentativa de velhas potências européias em defender o seu prestígio esmaecido, ou seus regionais interesses comerciais envolvidos nesse conflito.
O problema é que, como os abacateiros da Califórnia, esse é um parto prematuro e deformado. E as conseqüências aqui são um pouco piores do que abacates sem sabor e consistência. Há indicativos, claros e inequívocos, de que as variantes do tempo ainda não tornaram essa discussão suficiente madura e acabada. Anda tudo muito verde pela América. E as pessoas sabem disso.
Não é, pois, difícil imaginar que os malefícios e as conseqüências de uma safra apressada seriam desastrosos. Antes que se esqueça: há muitas vidas em jogo também.
E a vida humana, iraquiana, ou qualquer que seja, não pode ser relegada apenas como uma bandeira de apelo fácil e piegas, pertencente a pacifistas "alienados". Aos "politicamente incorretos" de plantão: às vezes é preciso se preocupar um pouco menos com estilo e formato, e aderir de vez às roupagens populares.
Se ainda assim lhe parecer repugnante demais sucumbir aos apelos do baixo clero e o grito nostálgico da guerra bater mais forte, lembre-se de que não precisamos de uma guerra pra vivermos toda a experiência humana. A vida, por si só, nos trará surpresas suficientes em nossos universos particulares, dores infinitas e silenciosas, e também emoções sem fim.
Sinceramente, não precisamos de uma guerra pra descobrir isso.
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