por Luiz Alberto Mendes

 

Estava aqui em casa pensando que, diante do que se observou nessas eleições, é quase impossível acreditar que só chegamos a esse ponto de civilização por conta da política. Ao fim e ao cabo, a política é a única forma conhecida de negociar a convivência e os recursos existentes. E, principalmente porque, o contrário, a falta de política seria a guerra. Quando ouvi um grito. Era mais um berro, um susto. Imediatamente me encaminhei para o quarto do Tio.

Ele esta pertíssimo dos 80 anos de idade. Aposentado duas vezes (se gaba de haver trabalhado 65 anos) como contador, viúvo, vive assistindo televisão, com sua cachorrinha, a Tule, dentro ou do lado de sua rede de armar. Gosta e acompanha vibrante todo tipo de jogo pela TV; é um jogador nato. Tem manias e neuroses que o tornam insuportável por momentos, mas esta bem mentalmente. Prefiro andar com ele ao volante do carro do qualquer outro. O Tio tem mais de 50 anos de carta de motorista, sempre teve carro. Alimenta-se bem, dorme melhor ainda e gosta de televisão. Seu problema é diabetes. Ele precisa aplicar insulina duas vezes ao dia e esta sujeito a ataques perigosos simplesmente por falta de açúcar em seu sangue. Estamos sempre atentos a ele: é família, esta conosco e nós o queremos bem.

Quando cheguei a seu quarto, ele estava caído ao chão, respirava com dificuldade, dava umas contorcidas no corpo todo e seu coração parecia querer rasgar seu peito de tão forte que batia. Tomei o maior susto. Sentei no chão a seu lado e tentei me comunicar. Ele queria responder, mas estava meio inconsciente, como houvesse bebido todas. Precisava levá-lo ao hospital, foi o que veio à mente instantaneamente. Mas eu estava sozinho com ele na casa e não sei dirigir. Claro, não sou burro de todo; conheço os rudimentos, mas não me atrevo.

Fosse em minha casa, em Embu das Artes, procuraria os vizinhos e alguém haveria de tirar o carro da garagem e nos levar ao hospital. O povo se vira, a solidariedade ali é natural. Mas aqui onde ele mora é classe média; não se tem relação com os vizinhos do lado ou em frente. No máximo é bom dia e boa noite. Enormes portões fechados, muros altos, câmaras de vigilância, cães que salivam de vontade de nos comer vivos e seguranças uniformizados pela rua. O medo individualiza espaços e separa pessoas.

Poderia ter telefonado para qualquer sistema de atendimento e socorro em casa, mas não sabia telefone e nem pensei nisso. Fiquei bloqueado, peguei o velho (ele é leve e eu faço academia) nos braços e fui levando para a garagem, sem pensar muito. Concentrei-me na escadaria; era uma tarefa e tanto. O Tio bufava tentando respirar, seu rosto estava vermelho como pimentão. Sentei-o na cadeira na varanda e acelerei atrás da chave do carro. Depois de procurar uns 15 minutos, fui achá-la no bolso dele, no chaveiro dele. Coloquei-o no banco de trás, abri o portão e... Só então fui lembrar que eu não sabia dirigir. O homem gemia, não havia ninguém nas ruas e eu ali com o portão aberto, de bobeira.

Nem foi uma decisão; o velho gemeu mais alto e eu me movi para atrás do volante. Liguei o carro e tentei me concentrar no que já havia aprendido observando e tentando aprender. Eram muitos movimentos e muitas atenções a serem desenvolvidas em um único momento. Finquei o pé na embreagem, coloquei em ponto morto e passei para primeira. Fui soltando o desembreio e pisando delicadamente no acelerador. O carro foi ganhando a rua e eu já estava querendo pará-lo, mas só tinha dois pés...Torci o volante, o carro respondeu. Por sorte, não passavam carros. Parei no meio da rua, o velho gemia, mas estava já mais consciente. Fechei o portão, tirei o Tio do banco de trás e coloquei do meu lado a pedido e com a ajuda dele. Ele estava entendendo tudo o que eu fazia, mas não conseguia falar direito. Quando pisei no acelerador e fui soltando o carro foi descendo, tive que tomar toda a rua e ainda bati a roda na guia, para fazer a curva e pegar a avenida.

Pisava no acelerador com vontade, mas o carro andava devagar e eu com medo de trocar de marcha. O Tio ensinava, mas eu estava apavorado, com carros passando a mil pelo meu lado e não conseguia executar como ele dizxia. Foi o velho quem viu a viatura da polícia e apontou. Eles estava bem à frente e iam pelo acostamento bem devagar como nós, policiando. Acelerei, mas o carro não andava muito e demorou uma eternidade para alcançá-los. De repente eles estavam em cima e eu não conseguia parar o carro. Poft! Encostei no carro da polícia, parando em cima.

Os policiais militares saltaram da viatura irados, correram para nós de armas embaladas, prontos a descarregá-las em nós. Encolhi e coloquei as mãos no vidro para me proteger com as mãos. Então o Tio gritou sei lá o que, que os fez parar. Minha porta se abriu e me senti sendo arrancado do carro por uma força descomunal. O velho gritou novamente e agora entendi e imitei: socooooorro!!! Acho que ele os surpreendeu; pararam na hora. Eu estava com meio corpo para fora do carro e um PM enorme estava em cima de mim, agora já me ajudando a me colocar em pé. O velho estava sendo observado. Então, de puro nervosismo, comecei a falar mais que o homem da cobra. E eles entenderam, de repente não eram mais hostis, estavam até cuidadosos e preocupados com o velho. Abriram a camisa do Tio, fizeram perguntas sobre seu estado e combinaram entre eles.

Eu e o Tio ficamos no banco detrás do nosso caro e um PM assumiu o volante. A viatura seguiu na frente de sirene fazendo o maior escândalo, e nós atrás voando. Eu segurava e ampara o velho e o PM olhava para trás preocupado. Invadimos o Pronto Socorro de Santana, já meu conhecido. Eu e o PM levamos o Tio até a cadeira de rodas e prontamente ele foi levado ao médico. O Sargento que comandava a viatura me procurou para colocar os nossos dados na prancheta de trabalho deles. Quando pediu o número de minha carteira de motorista, ficou espantado quando eu disse quem nem sabia dirigir. Quis saber como eu conseguira levar o carro se não sabia como. Não soube como explicar, para mim, naquele momento de apavoramento, foi quase um milagre eu conseguir me concentrar nas informações que possuía. O Sargento disse que eu poderia ter nos matado e ainda ocasionado um acidente com outras pessoas. Respondi perguntando se ele conseguiria fazer diferente, estando em minha posição. Bateu em meu ombro de leve e falou que iria omitir aquela parte do relatório: ninguém precisava saber que eu não sabia dirigir. Uma hora depois o Tio saiu do hospital dando as risadas características dele, como se nada houvesse acontecido e nos levou embora.

No caminho vim pensando na reação violenta dos soldados; pensei fossem nos matar ali mesmo. Depois de compreender o que estava acontecendo, amansaram radicalmente, nos ajudando, preocupados e humanos conosco. Foram de um extremo ao outro em poucos segundos. Quase nos matam e ao fim, nos salvaram. Jamais pensei que o fato de eu não saber conduzir um carro poderia colocar em risco a vida de outros. Pensava exatamente o contrário: que não sabendo dirigir estaria a salvo de tal cometimento. Concluo aceitando o conselho que o Sargento me deu: vou para uma auto-escola  para aprender a dirigir e tirar a Carteira de Habilitação.       

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Luiz Mendes

07/10/2014.

 

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