Bush imita Collor e chama o povo às ruas. Contra ele mesmo
Sempre ouvi dizer, desde a época em que ouvia Thriller, do Michael Jackson, que os EUA eram uma nação decadente, sem valores, à beira de um colapso moral. E os comentários vinham de colegas brasileiros. Isso mesmo, nós, brasileiros, no auge da sacanagem dos anos 80 no Brasil, em que o bacana ?era levar vantagem em tudo?. Não só pela fonte em si, mas pelo próprio objeto da crítica, nunca comprei essa história, que mais parecia a raspa de um discurso pouco elaborado da esquerda nacional, recalcada e magoada com si mesma.
Há quase 2 anos vivendo em Nova York, noto que há uma certa verdade nisso tudo que se dizia dos EUA 20, 30 anos atrás. Embora não esteja certo de se à época a crítica procedia. E muito menos da legitimidade de seus críticos. Michael Jackson, porém, decaiu. E muito.
A verdade, contudo, é que algo se perdeu na América. O caminho em busca do sucesso foi tão obsessivo e custoso, que foi preciso deixar algumas idiossincrasias de lado, na expectativa que era possível pegar o guarda-chuva da moralidade mais tarde, lá na frente. O boom econômico pelo qual passou os EUA nos anos 90 fez então esquecer até mesmo que havia um guarda-chuva. Nem se acreditava mais em chuva. Tudo era um céu azul e límpido de prosperidade.
Mas, ironia do destino, foi nesse mesmo céu azul de brigadeiro que aquela manhã de 11 de setembro ocorreu. E, na verdade, nuvens já haviam se formado anteriormente, com a bolha que se explodiu na internet. Tudo após é história conhecida. Escândalos corporativos viraram lugar comum como nossos tupiniquins escândalos políticos pré-FHC. Mas, a queda foi se acentuando. E como em toda queda séria, veio o coice. A patada foi em forma moral, mas ainda não tinha deixado cicatrizes profundas. Embora houvesse, aqui e ali, sussuros entre os americanos, perguntando-se se as escolhas foram as certas, se os rumos estavam corretos, se o mapa não tinha falhas, havia uma certa inércia presente em toda a sociedade.
O debate político, por exemplo, tinha virado uma pasteurização ideológica tão grande, que o máximo de diferença entre democratas e republicanos era a questão de se cortar ou não impostos. Esse era o grande debate.
Faltava algo mais, portanto.
Mas eis que, de repente, algo ocorreu. Como sempre, foi preciso algo extremo pra chacoalhar a passividade dos cidadãos, que aqui, ao contrário do que comumente se pensa, também existe. Como em 91, quando assistíamos, perplexos, às barbaridades do Collor sem fazermos nada, foi preciso que o próprio verdugo, ele mesmo, o Collor, criasse uma oposição que começasse a falar. E chamasse o povo pras ruas.
Aqui não foi e não tem sido diferente. Foi preciso que o próprio Bush provocasse o debate anti-Bush. De fato, o presidente americano trouxe à tona tão grotescamente o tema da guerra, de forma tão arrogante, tão indelicada, tão insensitivamente, que o americano médio, que normalmente apóia qualquer ação militar em nome da pátria, começou a se questionar.
E então, debates caseiros, entre pais e filhos, foram tomando os intervalos nos escritórios, correndo pros bares e misturando-se na cerveja, se espalhando nos cafés, nas pausas dos cookies, se acumulando nas esquinas junto com a neve que não pára. E nos metrôs, nas esperas de ônibus, o assunto foi parar entre os best-sellers, superando até mesmo as conversas sobre o tempo nos elevadores.
Em poucas semanas, o que se vê por aqui é um renascer da velha América, aquela que estava adormecida entre o excitamento de ações em disparada das empresas "ponto.com". Os EUA que aprendemos a admirar por enfrentar seus problemas, aqueles EUA que vomitam o intestino de seus conflitos, de suas discordâncias, publicamente, parece estar de volta.
Foi assim que, em um sábado gelado de inverno, milhares de pessoas saíram às ruas dizendo não à Guerra. Famílias inteiras marcharam em protesto. Crianças e cachorros acompanharam. De repente, do nada, um debate moral se instalou. Um debate ideológico veio à tona, contra toda a corrente que dizia que a história tinha acabado.
Como em 91 com nossa marcha anti-Collor, Bush polarizou o bem e o mal e fez nascer entre os cidadãos a pergunta de que, afinal, se existe o tal do bem e o mal, é preciso questioná-lo. E é preciso lutar pelo bem.
Hoje é dia de feriado nacional por aqui, o "President's Day", que começou anos atrás com uma homenagem ao presidente Lincoln. Coincidentemente ou não, uma tempestade de neve trancou todo mundo em suas casas nesta segunda-feira. Se quiser simplificar, há duas formas de ver isso. Para Bush, com certeza, a tempestade é obra do mal, e Saddam já deve estar sendo culpado. Mas há, de outro lado, aqueles que vêem isso como um sopro de Lincoln, avisando que é tempo de ficar em casa e refletir.
Nas próximas semanas a resposta virá. Resta saber, porém, qual a resposta que emergirá entre os metros de neve nas ruas. Fica também a pergunta de quem limpará toda a sujeira. Além, é claro, de quem pagará a conta...
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