Miguel Nicolelis

por Bruno Torturra Nogueira

Um dos maiores cientistas do mundo usa a ciência numa cruzada social

Miguel Nicolelis não se contenta em ser um dos maiores cientistas do planeta. ex-militante do PT, se engajou em uma cruzada social que usa ciência de ponta como tranformadora de comunidades carentes de Natal. para ele, entender o cérebro e mudar o mundo é uma só missão

Bruno Torturra Nogueira

Debaixo da meninge, do crânio, da pele, de um não muito fértil couro cabeludo – tudo envolto por um boné do Palmeiras –, Miguel Nicolelis não guarda exatamente um cérebro. Pode-se dizer que dispõe de um metacérebro. Veja bem: um complexo sináptico dedicado em toda sua potência a entender como um complexo sináptico potente pode, entre tantas peripécias, entender como funciona os demais complexos sinápticos que pipocaram neste planeta. “Um acidente extraordinário”, ele define o aparente milagre que o cérebro representa, “dentro de um universo probabilístico”, enquanto reduz a velocidade de seu carro para não atropelar umas vacas magras que entraram na pista de terra.

É uma estrada pobre da periferia de Natal, que seria ordinária demais não fossem duas ocorrências: um secular baobá no acostamento e um extremamente sofisticado laboratório de neurociências. A improbabilidade do endereço onde cientistas do cérebro do Brasil juntam forças é tudo, menos um acidente. Em lugares como esse, no meio de populações sem acesso a educação, saúde e recursos materiais, é que Nicolelis quer semear alta pesquisa. Ele quer provar ao mundo, e a si mesmo, que ciência de ponta pode ser um dos mais poderosos transformadores sociais. E em curto prazo.

Seu nome na imprensa quase sempre vem acompanhado de superlativos: “maior neurocientista do mundo”, “o mais forte candidato ao Nobel brasileiro”, “um dos mais importantes cientistas vivos” e por aí vai. Isso por conta dos estudos que coordena na Universidade de Duke, na Carolina do Norte (EUA), que não só aprofundam muito o entendimento do cérebro como são uma das mais promissoras revoluções médicas para o século 21. Entre eles uma tecnologia que vai permitir a recuperação de movimentos de pessoas com paralisia (que já funciona parcialmente com macacos) e uma técnica inédita para tratar o mal de Parkinson. Mas o que pouco se fala sobre o cientista é que, nos anos 80, ele era um engajadíssimo militante do PT.

Como chamar de ingênuo um sujeito que já fez um macaco paralisado mexer um braço robótico?

“Eu era um dos poucos que tinham carro, então levava todo mundo pra cima e pra baixo, comício, essas coisas”, ele conta, dando um pouco do background político da revolução social que quer implementar. Tudo parte de um plano, uma missão na verdade, que ele retomou para si há sete anos, quando Lula venceu as eleições para presidente. “Vi que era um momento muito especial na nossa história e que era a hora certa de tentar fazer algo pelo Brasil. E foi como no surf... soubemos a hora exata de pegar a onda.”

Embalados pelo começo de mandato, Miguel e seus parceiros conseguiram verba e apoio do governo federal. E seu tempo começou a ser dividido entre o laboratório de Duke e os bairros pobres de Natal. Entre congressos da elite científica e canteiros de obras. Entre macacos com chips implantados no cérebro e crianças carentes participando da primeira feira de ciência de suas vidas.

Nada contraditório ou conflituoso na verdade. Ao contrário, o caráter palpável das iniciativas em Natal dá mais certeza e ânimo às pesquisas mais abstratas e de longo prazo dos laboratórios. O mesmo ímpeto de progresso que move seu projeto de dar fim à paralisia humana também vai colocar, em poucos meses, o mais potente computador da América Latina funcionando em Macaíba, um subúrbio de Natal. A máquina é uma recente doação suíça que Miguel cavou com parceiros da Universidade de Lousanne.

O 14-Bis-21, como vai se chamar, vai rodar seus 49 teraflops (ou 46 trilhões de operações por segundo!) em um dos locais com menor IDH do Nordeste e onde agora tratores, escavadeiras e caminhões abrem vastos buracos para as fundações do Campus do Cérebro. Um gigantesco complexo educacional e de pesquisas que vai ampliar em muito o trabalho feito no laboratório de Natal e servir de escola para mais de mil crianças e jovens. E será o mais avançado posto para o estudo de atividade cerebral em tempo real, capaz de rodar cálculos e modelos de bancos de genomas, atividade climática e complexas avaliações geológicas de poços de petróleo.

Ciência social
Enquanto anda pela terra avermelhada do canteiro de obras em Macaíba, Nicolelis discorre largamente pensamentos que, a cínicos ouvidos, soariam ufanistas. Um discurso de largas esperanças no potencial do Brasil e do brasileiro. “É só dar a oportunidade e o povo deste país vai deslanchar. Já está deslanchando... mas vai muito mais longe”, diz e repete em diferentes reformulações. E nunca perde a oportunidade de apontar Lula e o governo do PT como os grandes responsáveis pela mudança de rumo. “Sempre ironizam o Lula porque ele vive dizendo ‘nunca antes na história deste país...’. Mas é verdade! Nunca antes o Brasil andou tão rápido para um lugar melhor como país”, desabafa. E não teme um governo do PSDB depois das eleições deste ano, Miguel? “Não... estamos em um caminho difícil de frear. Ninguém que assumir o governo vai ter como regredir. Quem tentar nunca mais se elege.” Soaria ufanista, insisto, mas como desdenhar de tanto otimismo vindo de alguém que, em sete anos, transformou de maneira quase surrealista a relação de uma comunidade pobre com a ciência? Como chamar de ingênuo um sujeito que já fez um macaco paralisado mover um braço robótico só com ordens de seu cérebro?

Enquanto o campus não fica pronto, em 2011, o Natalneuro, como é conhecido o projeto todo na cidade, envolve o Instituto Internacional de Neurociências Edmond e Lilly Safra, duas escolas para crianças e adolescentes e um recém-construído centro de saúde da mulher, também em Macaíba, para resolver uma questão grave por ali: a falta de atendimento pré-natal. As escolas já cuidam de mais de mil crianças de Natal e, em quatro anos de atividades, transformaram alunos pobres enfiadas em sistemas arcaicos de ensino em pequenos cientistas, literalmente. As instituições que ajudou a criar são mais do que séries de aulas e turmas. Equipadas com laboratórios de diversos tipos (física, robótica, informática, astronomia...), ensinam na verdade os princípios do método científico. Experimentos, raciocínio lógico e a exponencial curiosidade que nasce quando o mundo ganha novas dimensões nos jovens cérebros que passam por ali.

Clínica da mulher, escolas primárias, Campus do cérebro, laboratórios... “Na verdade o que queremos aqui é cuidar do cérebro das pessoas desde antes do parto até completarem todos os estudos.” Essa visão contínua e integrada do que aprendizagem e cérebro são é apenas a manifestação prática de sua mais importante teoria. Uma ideia inédita que virá a público também em 2011 no primeiro livro solo e destinado ao público geral que Nicolelis escreveu.

Aliás, literalmente acabou de escrever. No exato dia em que a Trip o encontrou em Natal, Miguel colocou o ponto-final na primeira versão da obra ainda sem título. Vai entregar à editora americana, passar o ano em revisões e tradução para o português (a Cia. das Letras já tem o direito no Brasil) e lançar. “Muita gente no meu métier vai pensar que eu fiquei louco...”, prevê. Isso por conta de sua proposta. A ideia de um cérebro relativista, algo com sérias analogias à teoria da relatividade geral.

Cérebro construtor
Assim como Einstein juntou tempo e espaço em uma só instância, batizada de espaço-tempo contínuo, Nicolelis quer quebrar a separação entre realidade e cérebro e criar um modelo contínuo, em que o cérebro é um construtor de realidade, com seus modelos e regras próprias. E que realidade é apenas o choque entre o que o cérebro quer ver e uma “verdade” exterior, intangível e que não existe propriamente sem... um cérebro que a leia.

Algo muito distante da visão de espectador, ou intérprete, que sempre foi atribuída aos cérebros. Mas não muito distinta de versões filosóficas e místicas que levam a ideia de realidade a outras profundidades. A diferença, no caso, é que Nicolelis é um neurocientista, e as bases para seu argumento são neurológicas e nada espirituais. “Não vejo nada místico ou transcendental no cérebro. A consciência é um produto dele, algo acidental, eu insisto.” Um materialismo que soa, ao menos a mim, estranho vindo de alguém tão dedicado ao bem do próximo ou, mais do que isso, tão ciente do poder irreproduzível do cérebro. “Eu acho o projeto de criar inteligência artificial fadado ao fracasso. Nunca uma máquina vai pensar como um ser humano. Porque vai muito além de processar dados em uma velocidade X ou responder a estímulos. Temos intuição, noção de beleza, sentimentos...” Tudo, de acordo com Nicolelis, uma manifestação desse caráter relativista, complexo e acidental do cérebro.

“É como aquele gol do Brasil na final da Copa de 70, com oito jogadores tocando a bola. Não dá para reproduzir aquilo, planejar, programar ou entender. É um ato muito mais sutil e improvisado. É assim o cérebro também”, elabora diante do açude de Macaíba. A inabalável fé no poder do improviso, da capacidade misteriosa de ações conjuntas servindo a princípios evolutivos, define muito mais do que o consórcio de neurônios que se define como cérebro para Nicolelis. Define seu projeto de vida e sua opinião do que o Brasil tem como vocação. Por um extraordinário evento cósmico, sem implicações místicas, Nicolelis sabe que o Brasil é como um cérebro também. Irreproduzível e de potenciais ainda insondáveis, que, com a devida lucidez e esforço, pode enfim se libertar dos misteriosos e nada previsíveis caprichos da sorte.

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